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Navalny: “Não tenho nenhuma dúvida de que Putin mandou me envenenar”

Oposicionista russo conta ao EL PAÍS como está sendo sua recuperação e acusa Vladimir Putin de permitir a fabricação de substâncias letais em laboratórios secretos

O oposicionista russo Alexei Navalni sentado em um banco de Berlim, em 23 de setembro.
O oposicionista russo Alexei Navalni sentado em um banco de Berlim, em 23 de setembro.AFP
Joaquín Gil

O ativista de oposição russo Alexei Navalny coloca Vladimir Putin no topo de uma engrenagem estatal encarregada de executar dissente políticos. “Não tenho nenhuma dúvida de que Putin mandou me envenenar”, diz em entrevista. Desde que o corpo desse advogado de 44 anos se paralisou durante um voo entre a Sibéria e Moscou, em 20 de agosto, em decorrência do contato com o Novichok, um agente nervoso concebido pela União Soviética nas décadas de 1970 e 80, Navalny atribui seu frustrado envenenamento ao presidente russo.

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Seu caso, o de um homem debatendo-se aos gritos num avião após entrar em contato com uma misteriosa substância, desatou uma tempestade diplomática contra Moscou. Embora o Kremlin rejeite as acusações e aponte esse flagelo das elites e da corrupção na Rússia como um agente da CIA, a União Europeia ficou ao lado dele e impôs sanções ao círculo próximo de Putin depois do envenenamento.

Três meses depois de receber alta do hospital Charité de Berlim, onde ficou durante mais de um mês entre a vida e a morte, Navalny concede sua primeira entrevista a um veículo de comunicação em espanhol.

Pedra no sapato de Putin, esse dissidente risonho e expressivo atende ao EL PAÍS por videoconferência da Alemanha. A conversa acontece em inglês, na sexta-feira pela manhã, três dias antes de o portal de investigação Bellingcat e este jornal revelarem nesta segunda que o Serviço Federal de Segurança da Rússia (FSB, herdeiro da KGB soviética) vigiou o opositor desde 2017. E que três agentes desse organismo especializados em substâncias químicas viajaram na véspera de sua intoxicação a Tomsk, a cidade siberiana onde o incômodo ativista se alojou quando foi envenenado.

Pergunta. Como você está?

Resposta. Estou bem melhor. Tenho alguns problemas menores. Meu esforço atualmente está centrado em me recuperar. Quero voltar para a Rússia. Infelizmente, não há muitos casos como o meu de pessoas que tenham sobrevivido ao Novichok. Os médicos estão bastante surpresos com a minha evolução.

P. Como recorda seu fatídico voo Sibéria-Moscou em 20 de agosto?

R. É bastante difícil de explicar. Quando subi no avião, estava bem. E, de repente, senti que algo ia mal. Nunca antes tinha passado por uma situação igual. Foi diferente dos perigos que a gente pode imaginar na vida cotidiana, como que atirem em você ou algo assim. É terrível. O ser humano não inventou palavras para descrever o que aconteceu comigo. O Novichok ataca o sistema nervoso. Dificulta a respiração. Deixa fora de combate. Eu conseguia ver, andar e falar. E, 15 minutos depois, achava que iria morrer.

P. Sua equipe disse ter encontrado restos do Novichok em uma garrafa de água no quarto de hotel da Sibéria onde você se hospedou. Tem mais detalhes sobre como você entrou em contato com a substância?

R. Graças à investigação do Bellingcat, da qual participamos, conhecemos muitos detalhes sobre como funcionam essas equipes de assassinos, mas ainda não está claro como foi o momento do envenenamento. Minha equipe recolheu tudo o que pôde do quarto do hotel depois do fato. Entretanto, não puderam levar algumas coisas, como os travesseiros e o resto da roupa de cama. Peguei uma garrafa de água e bebi durante minha estadia. Não me lembro se foi pela manhã ou antes de me deitar. O fato é que foram achados restos do Novichok na superfície da garrafa, que toquei depois da intoxicação. Mas talvez possam ter me envenenado pondo essa substância na roupa, ou na porta que toquei. Não está claro…

P. Você acusou diretamente Vladimir Putin após seu envenenamento. Que provas tinha na ocasião?

R. Não tive nenhuma dúvida quando saí do hospital de que [o envenenamento] foi ordenado por Putin. Eu me baseei num fato muito simples: o Novichok é o agente mais tóxico já inventado pelo ser humano. E para sua produção é necessário um laboratório estatal. Um enorme esforço do Estado. É uma arma química. Moscou declarou em 2017 a destruição de suas armas químicas. Portanto, embora oficialmente não haja Novichok na Rússia, o agente pode ter sido fabricado em um laboratório secreto sob as ordens diretas de Putin. É como o caso do ataque de Salisbury [tentativa de envenenamento do ex-espião russo Serguei Skripal e sua filha Yulia nessa cidade britânica, em 2018].

P. Por que acha que Putin tenta matá-lo?

R. Putin quer ser o czar da Rússia. Não gosta dos opositores. E considera como um perigo a nossa organização e qualquer um que denuncie a corrupção. Acha que me matando acaba com minha organização. É difícil entender o que pensa exatamente. Meu envenenamento não é o primeiro nem será o último. Putin chegou ao poder faz 20 anos. É muito tempo. E isso enlouquece qualquer um. A pessoa acredita que pode fazer o que quiser.

P. Não confia em uma investigação penal sobre seu caso na Rússia?

R. Não confio [ri]. Não há uma investigação na Rússia. É um fato fantástico. Não investigaram nem sequer depois de eu passar 18 dias em coma. E houve uma evolução muito divertida nas versões do ocorrido. Disseram inicialmente que o culpado de minha situação era a diabetes. Nunca fui diabético. Depois, que eu não fui envenenado. Outra versão, que chegou a defender Putin em público, é que eu mesmo me envenenei. Sério [ri]. Também disseram que foram os colegas da minha organização ou os serviços secretos da Alemanha, dos Estados Unidos, talvez da Espanha… É uma provocação. Não sei quem foi. Dou risada. É a posição oficial da Rússia. Não há investigação. Não houve envenenamento… O uso do Novichok [uma substância difícil de detectar em um organismo] permite que possam negar tudo. Se você perguntar a Putin por que envenenou esse homem, ele vai responder: eu não envenenei ninguém. Essa é a beleza do Novichok.

P. Que semelhanças o caso Skripal guarda com o seu?

R. O uso do Novichok e a participação de agências governamentais. No meu caso, foi usada uma nova versão da substância, segundo os especialistas. Como o envenenamento de Skripal foi investigado pela polícia britânica, eu não posso nem ter acesso ao lugar dos fatos. Tampouco às câmeras de segurança do hotel. O Reino Unido investigou e a Rússia trata de tampar. Skripal foi vítima de um serviço de inteligência. Eu, do FSB.

P. Acha que está sendo vigiado agora?

R. Na Alemanha? Não sei. A polícia alemã tomou muitas medidas de segurança. Embora a Rússia tenha muitas formas de vigiar, não detectei nada, honestamente. Há pessoas que me seguem quando vou ao exterior.

P. Está sendo protegido pela polícia alemã?

R. Sim.

P. Seu caso gerou atritos entre a União Europeia e a Rússia. Alemanha e França pediram imediatamente à UE que endurecesse as sanções contra o Kremlin. Tem se sentido suficientemente acolhido?

R. Sinto-me respaldado pela posição unitária da UE. É muito importante ter o apoio de quase todos os partidos políticos, apesar das suas diferenças. Embora os políticos estejam sempre discutindo, uniram-se neste caso. Sua postura não tem a ver comigo, e sim com a produção, desenvolvimento e uso de armas químicas para assassinar opositores com uma finalidade política. É algo totalmente inaceitável e muito perigoso. Qual é o problema? Se você começar a usar o Novichok, nada lhe impede de matar um crítico do Kremlin ou de qualquer outro lugar. Existe essa possibilidade. Um homem se aproxima de um carro, abre a porta e, duas horas depois, está morto. Ninguém sabe o que aconteceu. É um perigo global. Por isso agradeço o respaldo da UE. A humanidade não pode aceitar que isto aconteça.

P. O que pode contar sobre o programa russo de armas químicas?

R. Há três organizações na Rússia com cientistas da etapa soviética que produzem armas químicas. Uma destas instituições é o Centro Científico Signal (SC Signal), segundo o Bellingcat. Seus especialistas estiveram implicados em cada etapa do processo e nas comunicações, tanto no meu caso como no do envenenamento de Skripal. Esta instituição não está apenas produzindo Novichok como arma química, também se dedica em sua forma de neoencapsulação (aplicação da substância). Algo que é importante. Graças a isto, a ingestão de um café com o Novichok pode provocar uma morte em 20 minutos ou em dois dias. E neste último caso é impossível saber o momento exato do envenenamento. Daí a dificuldade do meu caso, que inicialmente pensou-se que pudesse ter origem no aeroporto. Por isso, eles [os cientistas russos] estão trabalhando muito para aperfeiçoar o uso do Novichok. Por que o Kremlin precisa destas armas químicas? Não sejamos ingênuos. Os Governos assassinam. Muitos Governos…

P. Quantos líderes internacionais o procuraram após seu envenenamento para saber da sua saúde?

R. No hospital eu não estava em condições de me comunicar com líderes… Mas apreciei muito a visita da chanceler alemã, Angela Merkel. Alguns dirigentes fizeram declarações públicas. Houve declarações oficiais, que é o mais importante.

P. Quando planeja reativar sua atividade como líder da oposição na Rússia?

R. Continuo trabalhando com a minha organização. Minha prioridade agora é me recuperar o quanto antes e voltar à Rússia. Talvez possa me recuperar em 90%. Seria muito bom.

P. Qual é a primeira coisa que fará quando recuperar sua atividade?

R. A prioridade, do ponto de vista tático, é traçar a estratégia para as eleições [legislativas de 2021]. Entendemos o partido governante de Putin, o Rússia Unida, que não deixa que outros candidatos se apresentem, os exclui. O importante agora não é só ganhar, que será difícil, e sim participar. Vamos utilizar nossas forças políticas com um objetivo: acabar com o monopólio do Rússia Unida, que controla o Parlamento nacional. Tentaremos atrair as pessoas com uma mensagem muito simples: a pobreza é o resultado de ter Putin no poder durante 20 anos. Ele está destruindo um país que é muito rico. E que tem 25 milhões de pessoas sob o limite da pobreza. A Rússia pode ser um país normal, europeu, bastante rico e com um bom nível de vida.

P. Como evitará que voltem a envenená-lo?

R. Não é possível. É o risco das armas químicas. Se fossem utilizados venenos como os de antes, você conseguiria vigiar o que come ou bebe. Entretanto, com as armas químicas, isso não faz sentido. O risco pode estar em tocar algo, como no caso de Skripal [onde a concentração do agente nervoso estava em uma porta, segundo a polícia britânica].

P. Quanto tempo prevê que ficará na Alemanha?

R. Até me recuperar. Não tenho uma data concreta [para voltar à Rússia].

P. Como avalia a situação política na Rússia?

R. [Ri] O fato de eu estar na Alemanha depois do envenenamento reflete bastante bem a situação política da Rússia, onde o poder foi sequestrado por um grupo de criminosos. Literalmente. Há uma corrupção extrema. Putin está rodeado de um círculo próximo, ex-colegas e vizinhos, que ficaram milionários. Não é um exagero.

P. Tem medo da morte?

R. [Ri] Não. Sou uma pessoa normal. Entendo que haja um risco. Um perigo bem mais alto do que acreditava, mas prefiro não pensar.

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