“Nosso objetivo é imunizar 60% da população africana”

O virologista John Nkengasong, codiretor do África CDC, aposta na coordenação entre países e prepara uma estratégia comum para garantir o acesso à vacina. O continente acumula 34.000 mortos, do um milhão em todo o mundo, mas o cientista pede cautela diante da periculosidade do vírus

O virologista John Nkengasong, vencedor do prêmio Goalkeepers 2020.Bill & Melinda Foundation
Madri -

As horas do dia do doutor John Nkengasong (Douala, Camarões, 61 anos) se prolongam para dar tempo para tudo. O codiretor do Centro Africano de Controle e Prevenção de Doenças (África CDC) vai de uma reunião virtual a outra atualizando na memória os últimos dados e tendências do coronavírus na África. Ele não esconde sua satisfação com a baixa incidência do vírus no continente [37.098 mortos e 1.526.000 infectados, números da quarta-feira, dia 7], mas é cauteloso: “Não se pode falar da covid-19 com tempos verbais no passado. Estamos diante de um vírus muito perigoso”. Desde janeiro, sua principal preocupação é vencer a batalha contra a pandemia trabalhando em bloco: “A única forma de sermos menos vulneráveis é colaborarmos e nos coordenarmos como continente, não como países individuais”, explica de Adís Adeba, Etiópia, nos 15 minutos que tem entre chamadas telefônicas e reuniões. Sua ambição e sua visão conjunta foram reconhecidas pela Fundação Bill & Melinda Gates, que lhe concedeu o prêmio Global Goalkeeper 2020 por ser “um dos muitos heróis durante a pandemia”.

Pergunta. Por que o senhor enfatiza tanto a colaboração entre as nações africanas?

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Resposta. Todos nós sabemos agora que este é um vírus que se move rápido e se propaga facilmente. Sabemos que é uma ameaça. Se houver qualquer resquício de coronavírus em algum lugar, se tornará uma ameaça para o país inteiro. Isso torna todos nós vulneráveis. Por isso percebemos que a melhor maneira de atacá-lo era conectando-nos. Agora nos comunicamos melhor, nos coordenamos melhor e colaboramos melhor. Isso é fundamental para lutar contra uma pandemia.

P. Em quais medidas exatamente estão trabalhando juntos?

R. A principal é uma estratégia comum coordenada pelos Governos, especificamente o de [Cyril] Ramaphosa ―o presidente da África do Sul― a partir de sua posição de líder da União Africana. A segunda mais forte é o grupo de trabalho que tem especialistas de todo o continente e se reúne semanalmente. Todas as terças-feiras, às 16h, nos reunimos para traçar novas estratégias e adaptá-las levando em consideração sua evolução. De fato, agora criamos uma plataforma comum que funciona como a Amazon ou o Alibaba, na qual se pode conseguir todo o equipamento e a maquinaria para lutar contra a covid-19. Essa plataforma é o exemplo da camaradagem no setor privado. O objetivo é ampliar a capacidade de diagnóstico.

P. É essa união que está por trás dos números tão baixos no continente?

R. Oito meses depois, podemos afirmar categoricamente que as medidas que tomamos com tanta presteza retardaram a propagação do vírus. Houve países na África que entraram em confinamento com apenas dois ou três casos de covid-19. Outros inclusive fizeram confinamento duas vezes. Se não tivéssemos feito isso, hoje teríamos milhões de casos. Graças à nossa rápida reação, ganhamos tempo para implementar medidas de saúde pública. No início não tínhamos capacidade para fazer muitos testes e ainda estamos aquém do ideal. Deveríamos fazer cerca de 12 milhões por mês, mas pelo menos conseguimos acumular mais de 14 milhões de testes. Soubemos reagir.

John Nkengasong. Bill & Melinda Gates Foundation

P. Na cerimônia de premiação do Global Goalkeepers 2020, o senhor falou sobre a importância de garantir o acesso às vacinas. A iniciativa Covax [uma coalizão de 172 países para garantir o fornecimento de vacinas aos países mais pobres] é suficiente?

R. Todos os nossos olhos estão voltados para isso. Confiamos no mecanismo da Covax e queremos que prospere, mas também estamos explorando outros caminhos, como a contratação direta e a negociação com empresas farmacêuticas para atingir nosso objetivo, que é imunizar 60% da população africana. O que a Covax nos proporciona são 220 milhões de doses de vacinas e isso é 20% da população. Estamos trabalhando nessa diferença. Se vacinarmos apenas os profissionais de saúde e a propagação continuar, o vírus acabaria interrompendo novamente a economia, a mobilidade das pessoas e sua vida social.

P. A África do Sul é uma exceção na gestão bem-sucedida da pandemia? Tem mais de 600.000 casos acumulados, quase a metade de toda a África.

R. De modo algum. Deveríamos ver na África do Sul uma história de sucesso. É um país de 60 milhões de habitantes. E garanto que, não fosse pelas medidas tomadas, seriam entre dois e três milhões de contágios. Lá foram detectados os primeiros casos e pouco depois o rápido aumento de casos. Então eles pararam tudo. Mas você não pode deter a economia de um país eternamente. Foi então que houve um aumento de casos e outro confinamento. E nas últimas semanas está acontecendo uma das reduções mais brutais. É nisso que deveríamos prestar atenção. Não no número de casos, mas nas medidas que o país tem atualmente e na tendência. E esses dados mostram políticas de saúde pública muito boas.

P. O senhor e seus colegas estão se preparando para um possível colapso sanitário ou é um cenário que não estão contemplando?

R. O verdadeiro problema é que, embora nossos casos de coronavírus não sejam tão altos quanto imaginávamos, bloqueiam outros programas contra a tuberculose, a AIDS e a malária. É um problema que vamos sofrer e que não podemos deixar de enfrentar. A tendência é pensar que “só” temos 34.000 mortos enquanto o mundo acumula um milhão. Mas não é assim que deveríamos ver. A AIDS matará mais 500.000 pessoas, a tuberculose outras 500.000 e a malária cerca de 400.000. Por causa do coronavírus haverá muito mais mortes relacionadas a outras doenças. No momento está ofuscando todo o resto e é preciso começar a levar em conta essas mortes também. O que está claro é que não podemos baixar a guarda nem escrever a história da covid na África no passado. Isso condicionará o futuro. É um vírus muito perigoso, com tendências muito radicais.

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