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Eleições EUA 2020
Análise
Exposição educativa de ideias, suposições ou hipóteses, baseada em fatos comprovados (que não precisam ser estritamente atualidades) referidos no texto. Se excluem os juízos de valor e o texto se aproxima a um artigo de opinião, sem julgar ou fazer previsões, simplesmente formulando hipóteses, dando explicações justificadas e reunindo vários dados

Por que não basta a Joe Biden ter mais votos do que Trump para ser presidente

Sistema eleitoral norte-americano é projetado para que nenhum Estado fique sem influência; ultimamente, isso prejudicou os democratas e beneficiou os republicanos

Cartaz com os dizeres "Vote" em Los Angeles, em campanha para aumentar a participação de eleitores no pleito presidencial de 3 de novembro.
Cartaz com os dizeres "Vote" em Los Angeles, em campanha para aumentar a participação de eleitores no pleito presidencial de 3 de novembro.MARIO TAMA (AFP)

Em duas das últimas cinco eleições presidenciais o candidato vencedor da presidência obteve menos votos do que seu rival. Donald Trump teve dois pontos percentuais a menos do que Hillary Clinton (quase três milhões de pessoas). Há duas décadas, George W. Bush praticamente empatou com Al Gore em uma disputa que precisou ser resolvida nos tribunais. O que estava em jogo à época eram as 29 cadeiras do Colégio Eleitoral correspondentes à Flórida, o terceiro Estado mais populoso da federação. Esses postos eram necessários para se chegar ao número mágico: 270. O número que realmente define o resultado das eleições. Entender como e por que isso ocorre é essencial para compreender o complexo funcionamento da democracia norte-americana, suas motivações históricas, e por que o que importa nos EUA não é tanto quantos votos você tem, e sim de onde vêm.

Por que um Colégio Eleitoral

1959. esse foi o ano em que o Alasca e o Havaí se juntaram à União. Estamos tão acostumados a pensar nos EUA como um todo a partir de fora que nos esquecemos que sua formação foi um processo longo e traumático, de mais de dois séculos. Cada um de seus 50 membros mantêm enormes diferenças de todo o tipo: econômicas, culturais, rotineiras, demográficas e geográficas. Do reconhecimento constante dessas diferenças, algumas das quais aumentaram nos últimos anos e moldam a vida política do país, nasce o Colégio Eleitoral. A instituição define a si mesma como “processo”, não como “lugar”, algo muito apropriado a sua natureza: a cada quatro anos, a população vai às urnas em cada Estado para indicar aos membros do colégio por quem devem votar entre os candidatos à presidência.

Um Estado dispõe de mais ou menos votos no colégio de acordo com seu tamanho: a Califórnia, o maior da União, tem 55. Quando o Alasca se tornou membro dos EUA, obteve três. O Havaí, 4. A Flórida, 29. E por aí vai até 538, a soma de todos eles. A metade mais um, 270, é o valor a que se deve chegar para ganhar. Os Estados não dividem seus votos no colégio de maneira proporcional, o candidato mais votado nele leva todos, sem exceção. E assim se decide quem ocupará a Casa Branca pelos próximos quatro anos.

Se um candidato ganha por apenas dois ou três votos em todos os Estados da União, levará os 538. Os mesmos que leva se vencer por 80% a 20% neles. As maiores vitórias em voto popular nacional desde que o colégio tem o tamanho atual também foram as maiores na votação colegiada: Lyndon Johnson, Richard Nixon em sua reeleição, e as duas de Reagan nos anos oitenta. Mas a correlação, mesmo forte, não é exata.

Bush Jr. e particularmente Trump são os exemplos mais extremos da falta de alinhamento. Mas esse resultado não é necessariamente uma falha do sistema, e sim uma característica mais ou menos antecipada por seu modelo: o fato de que se precisa da metade mais um dos votos em um Estado para levar não a metade, mas todos os seus espaços no colégio faz com que se chegue a um ponto a partir do qual cada voto a mais em um Estado em que já se venceu não seja produtivo. Da mesma maneira, terminada a apuração, os votos recebidos em Estados onde um candidato perdeu também não rendem um só favor no momento de se ganhar a presidência. O resultado é o de reduzir, em certa medida, as diferenças de poder de todos os membros da federação, que seriam muito maiores se simplesmente contássemos os votos no conjunto dela. Concretamente, nas últimas duas décadas, pelo menos duas vezes o Partido Democrata teria colocado seu candidato na Casa Branca. A última, Hillary Clinton, há apenas quatro anos.

Democratas dispersos

Os democratas desperdiçam mais votos do que os republicanos. Moral e constitucionalmente, cada voto conta. Mas a realidade estratégica é muito mais crua: um apoio demasiado em um Estado que já estava decidido de antemão para um partido é um apoio supérfluo. Nas últimas três eleições, o partido azul teve entre 11 e 14 milhões de votos redundantes; sempre mais do que seu rival.

Na última vez, além disso, os democratas venceram na contagem de votos insuficientes: aqueles obtidos em Estados em que por fim terminariam derrotados.

Um lugar como a Califórnia pertence à primeira categoria: de Gore a Clinton (de fato, desde que seu marido se candidatou pela primeira vez em 1992), o maior Estado da União se tingiu de azul. Ninguém espera que seja diferente dessa vez. No segundo grupo, o paradigma é o Texas: vermelho em 10 das últimas 11 ocasiões. É de fato nesse último onde desceram pelo escoadouro estratégico uma maior quantidade de votos azuis.

Após a inesperada e paradoxal derrota de 2016 alguns entre os democratas sugeriram meio de brincadeira que esse tipo de mapa pode ser um bom guia para que um eleitor progressista decida se precisa se mudar ou não, e para onde, para que seu exercício do direito fundamental comece a contar mais.

O mapa de votos com que o Partido Republicano ganhou Estados é o espelho parcial deste: além de seus feudos sulistas (o próprio Texas, Mississippi e Alabama) suas vitórias mais significativas se acumulam na Flórida e Ohio, que caíram três vezes do lado vermelho nos últimos 20 anos.

A consequência fundamental da dispersão estratégica do voto democrata é que, pelo menos nessa eleição, se espera que precisem no mínimo de uma margem de três pontos percentuais no voto popular para ter possibilidades reais de vitória. Vamos lembrar que para Clinton 2,1 não foi suficiente. Essa é a estimativa de Nate Silver, estatístico de referência em prognósticos eleitorais: é a partir dos 4-5 pontos que Biden começa a garantir a vitória.

Toda essa situação levou não poucas vozes liberais e progressistas a propor o fim do Colégio Eleitoral. A óbvia motivação estratégica se veste com um argumento de corte normativo, pelo menos tão sólido como o que justifica a existência do processo intermediário: hoje em dia, o sistema eleitoral outorga um poder desproporcional em relação à população de Estados com maioria de população branca, tirando de fato representatividade dos mais diversos. Desse ponto de vista, o mecanismo colegiado é apenas mais um entre os muitos que favoreceram o domínio de um segmento racial específico desde a fundação da União.

Um futuro diferente?

Cabe se perguntar, entretanto, se essas minorias continuarão a sê-lo por muito tempo, particularmente em certos Estados onde a inversão demográfica favorecida particularmente por segundas gerações de norte-americanos filhos de imigrantes latinos, a ocasional melhora do acesso ao voto dos afro-americanos (constantemente dificultado pelo Partido Republicano) e a paulatina mudança de eleitores brancos com estudos universitários em entornos urbanos e semiurbanos (os subúrbios) está reduzindo as margens.

Texas, o suposto escoadouro de voto azul, serve como exemplo: o partido está a várias eleições reduzindo margens, e ainda que poucos esperem que 2020 seja o ano em que voltem a vencer por lá após 10 eleições sem o fazer, a partir dessa perspectiva os apoios acumulados no segundo Estado mais populoso da federação já não parecem um desperdício, e sim uma inversão total para construir bases eleitorais.

Um relatório que dissecava a última derrota republicana, a de Mitt Romney contra Obama em 2012, enfatizou a irreversibilidade dessa onda de mudança demográfica, alertando que se o partido não for capaz de sintonizar com nichos de eleitores diferentes dos que há meio século baseia todas as suas vitórias, cedo ou tarde acabará engolido.

Em seu lugar, entretanto, os militantes conservadores escolheram Trump em 2016. Ele e seu discurso podem ser lidos como a versão mais extrema e afiada do medo do que pode vir; medo de se transformar em uma minoria política; medo de ceder uma parte do poder acumulado aos que sempre tiveram menos, os que sobre cujos ombros se construiu (e continua se sustentando hoje) o dia a dia dessa União.

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