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Colômbia encara a tragédia dos abortos involuntários associados ao glifosato, usado contra o plantio de coca

Dois estudos apontam o impacto do herbicida na saúde reprodutiva das mulheres. Casos agora chegam à Comissão da Verdade, que investiga denúncias ligadas ao conflito entre o Governo e a antiga FARC

Um avião fumiga uma lavoura de El Silencio (Colômbia) com glifosato, em março de 2002.
Um avião fumiga uma lavoura de El Silencio (Colômbia) com glifosato, em março de 2002.Daniel Muñoz (Reuters)
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Yaneth Valderrama estava grávida de quatro meses quando três aviões e quatro helicópteros da Polícia da Colômbia fumigaram com glifosato a localidade de Solitá, no departamento de Caquetá, no sul do país. Em 28 de setembro de 1998, quando a mulher lavava roupa em um riacho a 200 metros de sua casa, ficou empapada com o herbicida e teve que ser levada ao hospital de Florencia, a cidade mais próxima, com manchas na pele, dificuldade respiratória e uma intensa dor no corpo. Depois de ser exposta à fumigação, sofreu um aborto incompleto e precisou ser submetida a curetagem. A família não só perdeu o bebê como também meses depois ela morreu por falência de múltiplos órgãos e insuficiência respiratória.

Outra colombiana, Doris Alape, sofreu algo similar. Em 1999, uma fumigação maciça feita pela Polícia Antinarcóticos no município de Chaparral (Tolima) poluiu os cultivos e a fonte do aqueduto, fazendo 26 pessoas adoecerem. “Depois de vários sinais de intoxicação, deu à luz com apenas 28 semanas de gestação; seu filho morreu em 1º de junho de 1999. Doris sofreu outros impactos na sua saúde física que a impedem de trabalhar”, diz o relatório intitulado Saúde reprodutiva e glifosato no contexto do conflito armado.

Ambos os casos foram admitidos pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e apresentados formalmente à Comissão para o Esclarecimento da Verdade, a Convivência e a Não Repetição, a instância criada na Colômbia depois dos acordos de paz entre a extinta guerrilha FARC e o Governo, que é a encarregada de esclarecer as questões do conflito armado.

O Centro de Direitos Reprodutivos e o Grupo de Epidemiologia e Saúde Populacional da Universidade do Vale (GESP) documentaram esses casos em um relatório sobre como a guerra afetou a saúde das mulheres e, concretamente, sobre os efeitos nocivos do glifosato na vida reprodutiva. “Concluímos que existe de fato uma clara consistência dos efeitos do glifosato na saúde reprodutiva, com efeitos negativos que se traduzem em abortos involuntários, efeitos perinatais e transgeracionais (ou seja, efeitos nocivos em segundas gerações)”, disse Catalina Martínez, diretora regional para a América Latina e Caribe do Centro de Direitos Reprodutivos.

A importância do “princípio de precaução”

Além de reunir estes casos, os pesquisadores fizeram uma revisão sistemática de 79 pesquisas e verificação de estudos in vitro, em animais e em humanos. Concluíram que embora as pesquisas em humanos continuem sendo controvertidas, “os achados são evidência forte para que sob o princípio de precaução se tomem decisões que previnam a exposição ao glifosato das mulheres em idade reprodutiva, seus filhos e seus parceiros”.

O conceito do princípio de precaução ganha relevância porque o Governo de Iván Duque propõe retomar as fumigações com glifosato, conforme a política antidroga de Donald Trump. Recentemente, a Casa Branca certificou Bogotá em sua luta antinarcóticos, mas expressou preocupação pelo que chamou de “níveis inaceitavelmente altos” de cultivos de coca. De acordo com as Nações Unidas, ao final de 2019 a Colômbia tinha uma superfície total de cultivos de coca de 154.000 hectares. A insistência da administração Trump em reduzir esta cifra pela metade levou o Executivo colombiano a insistir na via da aspersão aérea.

A fumigação com glifosato começou a ser usada na Colômbia em 1992 e só em 2015, quando a Agência Internacional de Pesquisa do Câncer o classificou como uma substância “provavelmente cancerígena”, seu uso foi interrompido pelo Governo de Juan Manuel Santos. Atualmente, está suspenso por uma sentença do Tribunal Constitucional, mas o ministro da Defesa, Carlos Holmes Trujillo, disse que, “cumprindo todos os requisitos estabelecidos pela Corte Constitucional, a aspersão aérea hoje é mais necessária do que nunca para manter a redução dos cultivos ilícitos”. Também afirmou que a fumigação “teria um impacto positivo” na redução dos massacres, que já somam 60 casos neste ano.

Relatórios do Centro de Direitos Reprodutivos e do GESP advertem também sobre os possíveis efeitos do glifosato nos ecossistemas e na saúde humana, recomendando que as fumigações não sejam retomadas. Além dos abortos involuntários, eles citam estudos sobre os efeitos para a fertilidade das mulheres que estiveram expostas ao glifosato, os riscos de nascimentos prematuros e a duração da gestação, entre outros.

“As conclusões deste relatório concordam, além disso, com a Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO), que em 2009 manifestou que existem evidências para respaldar o efeito das exposições químicas para a saúde, especialmente nos índices de câncer, os transtornos do desenvolvimento neurológico, os resultados da gravidez ou possíveis deficiências. Portanto, baseando-se no princípio de precaução, recomendou que a exposição ao glifosato para essas populações termine com uma eliminação global completa”.

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