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Fernández empreende uma controversa reforma para despolitizar a Justiça argentina

O presidente investe contra os tribunais federais, responsáveis por casos de corrupção

O presidente argentino, Alberto Fernández, e a vice-presidenta Cristina Fernández participam da inauguração das sessões ordinárias do Congresso, em 1º de março.
O presidente argentino, Alberto Fernández, e a vice-presidenta Cristina Fernández participam da inauguração das sessões ordinárias do Congresso, em 1º de março.Juan Ignacio Roncoroni (EFE)
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“É necessária uma reforma do Poder Judiciário e dos serviços de inteligência, porque ambos serviram para o pior da política argentina nos últimos 30 anos.” É o que diz Hugo Alconada Mon, o jornalista investigativo de maior prestígio do país. Os próprios juízes admitem que as coisas não funcionam. A população desconfia dos tribunais. O presidente Alberto Fernández anunciou uma reforma do sistema de administração da Justiça para resolver um dos grandes problemas argentinos. Na ausência de detalhes, a grande questão é se os políticos renunciarão a se servir dos juízes e se os juízes deixarão de fazer política.

Vários dirigentes kirchneristas presos por corrupção estão livres desde que, em dezembro, o peronismo voltou ao poder. Enquanto Mauricio Macri estava na presidência, eles estavam em prisão preventiva aguardando uma sentença final. Com Alberto Fernández na presidência, os juízes decidiram que tanta prevenção não era mais necessária. É um reflexo automático: os tribunais se movem segundo sopra o vento do poder. E ninguém representa isso melhor do que os 12 tribunais federais de Comodoro Py, perto da Praça San Martín, em Buenos Aires. Fernández quer acabar com o “oligopólio” da Justiça Federal, responsável por instruir os grandes processos de corrupção política e crime organizado, criando dezenas de novos tribunais com as mesmas competências.

Embora as conversações sejam confidenciais, tanto um juiz quanto um advogado se referem ao “inexplicável padrão de vida” de certos juízes federais ou àquele arquivamento “por falta de mérito”, de pouco mais de uma página, pelo qual dois magistrados receberam um suborno de cinco milhões de dólares cada um, ou para que tal juiz aceite um recurso é necessário contratar os serviços de seu genro advogado. Obviamente, esses comentários desaparecem assim que o gravador é ligado. Mas o próprio presidente da Corte Suprema, Carlos Rosenkrantz, admitiu há um ano que os argentinos estavam “perdendo a confiança no Poder Judiciário” e que os tribunais sofriam de “uma crise de legitimidade”.

“Penso que o objetivo [da reforma] é otimizar o serviço de prestação de Justiça, porque temos uma imagem que deve ser corrigida”, comenta Marcelo Gallo Tagle, presidente da Associação de Magistrados da Justiça Nacional. “Não parece absurdo distribuir a carga de 12 entre 50”, diz, referindo-se aos tribunais federais, “porque lidam com causas de grande complexidade que exigem muita atenção. Mas se a intenção é simplesmente liquefazer o poder dos juízes federais e dispersarmos aqueles que fazem coisas mal, haverá mais coisas mal feitas.”

A suspeita do interesse político está sempre presente. Trata-se de uma vingança pelos vários processos de corrupção abertos contra a ex-presidenta Cristina Kirchner e muitos de seus colaboradores? Deseja-se estabelecer uma Justiça Federal com maioria de juízes peronistas? Em princípio, os novos tribunais federais serão criados aumentando o nível de tribunais criminais comuns já existentes. Mas cerca de trinta desses tribunais, quase a metade, estão vacantes e haverá mais baixas porque a reforma das pensões levará muitos juízes à aposentadoria: saindo agora, depois de uma vida inteira de trabalho sem pagar impostos, podem manter uma renda mensal muito elevada, de cerca de 230.000 pesos (cercaaproximadamente 17.000 reais no câmbio oficial).

Se os tribunais vacantes forem privilegiados na reconversão em tribunal federal, o poder Executivo poderia nomear seus juízes preferidos. O magistrado Gallo Tagle fala dessa suspeita. Carlos Rívolo, procurador federal e presidente da Associação de Procuradores também se refere ao risco de maior politização: “Que comecem despolitizando o Conselho da Magistratura [onde os parlamentares têm maioria] e a partir daí algo sério pode ser feito”. “Concentrar-se em Comodoro Py é errar o tiro, Carlos Menem já errou quando passou de 6 juízes federais para 12. Agora terão 50? O que farão quando o 47 fizer algo que não gostem?”. Para Rívolo, o poder dos juízes nunca deve ser reduzido: “O que teria acontecido em 2001 com o corralito [retenção de depósitos bancários]? Se os juízes não tivessem interferido, os aposentados teriam perdido tudo”.

“Alguns juízes federais estão acostumados a ser senhores feudais”, diz o jornalista Alconada Mon. “Agora são 10 [existem dois vacantes] que lidam com tudo o que querem e sentem que lhes retiram o poder.” Diante da possibilidade de que a reforma seja utilizada para anular processos de corrupção política, Alconada ressalta que “é algo irrelevante, os juízes e os procuradores são pró-cíclicos, eles se ajoelham quando você tem poder e te chutam quando você o perde. Menem sabe muito bem disso, deixou o poder e o colocaram na prisão. Macri foi processado por escutas telefônicas ilegais e o processo foi extinto 18 dias depois que assumiu a presidência.” Agora, assim que Macri deixou da Casa Rosada, desempoeiraram a instrução de processos como o do Correio Argentino, que envolve o ex-presidente e vários de seus familiares.

O advogado criminalista Gustavo Feldman, com mais de 30 anos de experiência, acredita que ampliar a Justiça Federal pode ser um bom mecanismo para acabar com a atual “venalidade e banalidade”. Mas aponta para um possível problema com os recursos. As quatro Câmaras de Cassação, criadas como filtro para que não chegassem casos demais à Corte Suprema, “se tornaram um filtro de si mesmas”, diz, e aplicam critérios de admissibilidade muito restritivos, rejeitando recursos inclusive sem audiências prévias. Mais tribunais significam mais sentenças e mais recursos diante de uma Cassação já quase bloqueada e com um funcionamento muito discutido. “Alberto Fernández trabalhou muitos anos como advogado criminalista e sabe como tudo isso está ruim, espero que faça uma boa reforma”, enfatiza.

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