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Hamilton e Netflix aceleram o interesse do brasileiro pela Fórmula 1

Britânico, que decide o título neste domingo, protagonizou casamento de fã no Espírito Santo, enquanto adolescentes foram receber pilotos em São Paulo. Desde a estreia da série ‘Drive to Survive’, público da F1 entre 16 e 35 anos aumentou em 77%

A fã Beatriz Libardi com seu totem de Lewis Hamilton, em tamanho real.
A fã Beatriz Libardi com seu totem de Lewis Hamilton, em tamanho real.Brena Carvalho

Beatriz Libardi estava pensando em Lewis Hamilton no momento mais importante de sua vida. No altar, a estudante de medicina recebeu a notícia de que o britânico havia vencido o Grande Prêmio de São Paulo de Fórmula 1, em Interlagos, no dia 14 de novembro. A cerimônia em que se casou com o agora marido Henrique, em Vitória (ES), parou por alguns instantes para Beatriz celebrar a vitória do piloto da Mercedes, numa cena que viralizou nas redes sociais. Aos 27 anos, a torcedora representa uma geração de brasileiros fisgados pela F1 mesmo sem ter um representante do país para torcer. Os fãs vivem a expectativa da decisão de uma das temporadas mais emocionantes dos tempos recentes, protagonizada por Hamilton e pelo holandês Max Verstappen, marcada para o GP de Abu Dhabi neste domingo, às 9h30, com transmissão da Band na televisão aberta.

A atmosfera criada em torno da disputa ajuda a entender o ressurgimento do interesse por uma modalidade que já não emocionava tanto desde que o Brasil deixou de protagonizá-la. A virada ocorreu após a Liberty Media assumir os direitos da modalidade, de 2016 para 2017, analisa Felipe Giaffone, ex-comissário da F1 —responsável por julgar os incidentes na pista e determinar punições— e comentarista de automobilismo da Band. Segundo ele, a empresa “vende o produto de uma forma mais americanizada”. “Antes queriam mostrar pouco [os bastidores] para manter o segredo, agora querem escancarar e roteirizar a vida dos pilotos para atrair a atenção. E vem dando mais resultado”, resume Giaffone. A Liberty também adotou o slogan #WeRaceAsOne, que prega uma campanha de sustentabilidade, diversidade e inclusão, bem ao sabor dos tempos atuais.

Como em um roteiro cinematográfico, portanto, a capital dos Emirados Árabes Unidos sediará o capítulo final de uma temporada histórica. Hamilton e Verstappen chegam empatados em pontos (cada um com 369,5) na última corrida, algo que não acontecia desde 1974 —quando o brasileiro Emerson Fittipaldi foi campeão. O holandês abriu vantagem com um melhor início de temporada, mas viu o britânico encostar, com três vitórias seguidas, no Brasil, Catar e Arábia Saudita.

O triunfo do britânico em solo brasileiro teve sabor especial. Hamilton largou em 10º e ultrapassou nove oponentes até a liderança, sendo Verstappen o último deles. A atuação do piloto da Mercedes levantou as arquibancadas de Interlagos e lembrou os tempos de Ayrton Senna, ídolo do país no esporte. Assim que ganhou, Hamilton pegou uma bandeira do Brasil e deu uma volta erguendo-a para fora do carro, como Senna fazia. Para o delírio local, o britânico ainda levou a bandeira para o pódio, e ouviu os hinos da Inglaterra e da Alemanha (por conta da Mercedes) enrolado nela.

“Ele acertou em cheio com os brasileiros. A forma como ele venceu, com dificuldades, lembrou muito o Senna e criou essa identificação com os brasileiros”, afirma Giaffone. “E o Hamilton vem por um motivo diferente, traz lutas fora das pistas. Isso é o mais legal”, completa Giaffone.

Verstappen, em segundo, e Hamilton, em primeiro com a bandeira do Brasil.
Verstappen, em segundo, e Hamilton, em primeiro com a bandeira do Brasil.AMANDA PEROBELLI (Reuters)

A corrida de Interlagos, na tarde de um domingo, marcou a primeira vez em que a audiência da Band superou a da Globo no ano durante o horário na Grande São Paulo. A transmissão da F1 na emissora teve média de 7.3 pontos no Ibope, contra 6.8 do programa global Zig Zag Arena. Durante todo o ano, a modalidade —que trocou a Globo pela Band em 2021— permitiu à emissora do Morumbi competir nos domingos contra as principais concorrências. No dia 5 de dezembro, o GP da Arábia Saudita passou das 16h (horário de Brasília), invadindo o tradicional horário do futebol na Globo. Mesmo assim, a Band alcançou um pico de 6.8, ameaçando os 8.3 da emissora carioca. Cada ponto de audiência representa 205.377 espectadores e 76.557 domicílios na região da Grande São Paulo. O frisson é parecido nas redes sociais, onde assuntos relacionados à corrida dominam a maioria dos trending topics do Twitter durante as etapas.

No Catar e na Arábia Saudita, Hamilton correu (e ganhou) com um capacete com as cores do arco-íris, protestando contra os Governos que reprimem a população LGBTQIA+. Também foi às ruas para participar do movimento Black Lives Matter em 2020 e é militante do veganismo. Para a fã Beatriz, o ativismo do piloto é fundamental para sua admiração. “Se ele não fosse quem é fora das pistas, eu não torceria tanto. Não adianta nada ser bom piloto e não fazer diferença nenhuma no mundo”, pontua.

Beatriz conta que começou a assistir à F1 ainda criança, quando seu pai e seu avô transformaram em tradição as corridas no domingo de manhã. Ela nasceu três meses depois da morte de Senna. Mais madura, passou a acompanhar de verdade em 2016. “Eu sempre gostei de carro, cheguei a entrar em engenharia mecânica na faculdade porque queria trabalhar na Fórmula 1″, admite. “E de cara simpatizei com o Hamilton, porque não gostava do seu principal adversário na época, o [alemão Sebastian] Vettel”. O britânico acabou em segundo lugar naquele ano, e Nico Rosberg foi campeão. “Mesmo assim, as atitudes do Hamilton me conquistaram”, revela.

Calendário de Beatriz com as fotos de Senna e Hamilton, lado a lado.
Calendário de Beatriz com as fotos de Senna e Hamilton, lado a lado.Brena Carvalho

A torcedora deu sorte para o piloto, que foi campeão mundial em 2017, 2018, 2019 e 2020. A admiração só cresceu, a ponto de as madrinhas de Beatriz levarem um Hamilton em tamanho real de plástico para sua despedida de solteira, em novembro deste ano. Por azar, a cerimônia do casamento caiu no mesmo dia do GP de Interlagos. “A corrida estava marcada para 7 de novembro e o casamento no dia 14. Mas adiaram a corrida em agosto, e nós já tínhamos pago tudo. Ficamos muito chateados”, conta. Beatriz relata que estava sendo informada do que acontecia em Interlagos enquanto se preparava para o casório, já no local, mas foi ao altar sem acesso ao telefone.

Na hora dos votos dos padrinhos, sobrou para uma amiga avisar Beatriz e Henrique, de frente para o altar, que Hamilton havia vencido a corrida. Daí veio a celebração da noiva com o totem do piloto ao fundo, cuja gravação passou das 100.000 curtidas. O vídeo foi compartilhado pela Mercedes e por Hamilton, que desejou felicidades ao casal. “Eu estava indo devolver meu vestido de noiva quando soube que ele tinha visto. Meu celular travou e eu fiquei em choque. Demorei umas duas horas para absorver o que aconteceu”, relembra.

Público jovem

Hamilton é um pilar da popularização da F1 entre os brasileiros, mas não é o único. Nos últimos anos, surgiram também jovens pilotos que ainda não disputam a liderança do campeonato, mas geram identificação com os torcedores. São os casos do monegasco de 24 anos da Ferrari, Charles Leclerc (apelidado de monegato) e do britânicos Lando Norris (22 anos, da McLaren). Os dois causaram tumulto ao desembarcar em Guarulhos, para o GP de Interlagos, e serem rodeados por jovens fãs. Mesmo Verstappen, que tem 24 anos e corre pela Red Bull Racing, tem seus fãs pelo estilo mais arrojado que os dos outros pilotos. “Eles fazem parte de uma nova geração que, seja pela idade, pela simpatia ou pela presença nas redes sociais, se identificam mais com a molecada”, analisa Giaffone.

Verstappen tem 4,3 milhões de seguidores no Instagram, Norris tem 1 milhão de seguidores no Twitter e Leclerc acumula mais de 600.000 seguidores na Twitch, por onde faz transmissões ao vivo jogando videogames online, inclusive Fórmula 1. “Hoje em dia, há um peso gigante para o que o piloto é fora da pista. Muitos conseguem uma força maior do que a própria entidade que representam”, diz Renê Salviano, especialista em marketing esportivo e fundador da agência HeatMap.

Na sua área, Salviano ressalta a criação da série Drive to Survive, de 2019, que conta na Netflix os bastidores da elite mundial do automobilismo. “Isso é uma mudança muito grande em busca de atratividade. A F1 entendeu que estava perdendo audiência e foi atrás de soluções para garimpar um público novo”, diz o executivo. A produção cumpriu seu papel. Desde sua estreia, o público da F1 entre 16 e 35 anos aumentou em 77%, segundo a Nielsen Sports, empresa especializada na área de análise de audiência esportiva, e já representa metade dos espectadores da categoria. A Liberty Media ainda computa 73 milhões novos torcedores para a F1, um aumento de 20% de público no que eles chamam de “países-chave”, como Brasil, China e Estados Unidos.

Nas cenas dos próximos capítulos, o veterano campeão, Hamilton, enfrenta o novato promissor, Verstappen, empatados na liderança na última corrida. Um em busca do inédito octacampeonato, enquanto o outro tenta vencer pela primeira vez. “Só de pensar já estou com úlcera. Não sei se vou conseguir assistir”, resume a ansiosa Beatriz. “O Hamilton está num momento melhor, mas o Verstappen teve um carro melhor ao longo da temporada. Não dá para saber o que vai acontecer”, completa Giaffone. Um britânico e um holandês brigarão pelo título histórico no domingo de manhã, e o Brasil estará de olho.

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