Quem matou os garotos do Ninho? Justiça e Flamengo devem resposta às famílias
Desde o dia do incêndio se sabe que o clube havia ignorado notificações das autoridades sobre seu CT. Agora, quase 20 meses depois, é urgente identificar as pessoas que negligenciaram vidas de crianças
Logo que surgiu a notícia do incêndio no Ninho do Urubu, em fevereiro do ano passado, muitos torcedores do Flamengo e, inclusive, jornalistas se apressaram em cravar que havia ocorrido uma “fatalidade”. Não faltaram eufemismos para tentar afastar a responsabilidade do clube pelas 10 vidas de crianças perdidas em seu centro de treinamento, como se tratasse de um acaso da natureza. A tese de “fogo acidental” perdeu força no mesmo dia da tragédia, quando órgãos públicos informaram que dirigentes rubro-negros ignoraram notificações sobre a irregularidade das instalações onde os garotos da base estavam abrigados e até mesmo uma ordem para desativar o alojamento.
Mais de um ano e meio depois do incêndio, o registro de uma troca de e-mails em posse da Justiça, revelado nesta semana pelo UOL, atesta não apenas a responsabilidade do Flamengo no caso, mas, sobretudo, a de dirigentes e gestores que se omitiram diante de tantas negligências no CT. O clube sabia com antecedência, por exemplo, de problemas na parte elétrica da estrutura de contêineres que pegou fogo. Para a força-tarefa formada por Defensoria e Ministério Público que acompanha os desdobramentos da tragédia, a revelação é suficiente para indiciar os responsáveis por homicídio doloso (quando se assume os riscos de matar). Integrantes dos órgãos ainda observam que houve dolo tanto da antiga quanto da atual diretoria rubro-negra.
Rompidos politicamente, o ex-presidente Eduardo Bandeira de Mello e o atual, Rodolfo Landim, protagonizam um jogo de empurra para se eximir de culpa pela tragédia. Ambos, porém, coincidem em dizer que não sabiam das infrações tampouco dos problemas estruturais no alojamento. Landim havia assumido a presidência no mês anterior ao incêndio. Ele argumenta que não houve tempo para se inteirar da situação no reduto das categorias de base. Em sua primeira semana como mandatário, o clube anunciou a contratação do uruguaio De Arrascaeta, por 63 milhões de reais, até então a maior transferência da história do futebol brasileiro. Nos dias seguintes à catástrofe no Ninho, a diretoria comandada por Landim recusou acordo conjunto de reparação às famílias que totalizaria 57 milhões de reais. Cartolas preferiram negociar individualmente com parentes das vítimas. Até hoje, três famílias e a mãe de um dos meninos mortos não entraram em acordo por indenizações.
Na primeira versão do inquérito, a polícia determinou o indiciamento de oito pessoas por homicídio doloso, incluindo dois engenheiros do Flamengo e o ex-presidente Bandeira de Mello. Mas, após o Ministério Público solicitar mais investigações, ninguém foi indiciado até o momento. Enquanto as famílias que não se acertaram com a diretoria aguardam o inquérito para ingressar com processos, a Justiça do Rio negou pedido do Ministério Público do Trabalho pelo bloqueio de contas do time mais popular do país. Dois desembargadores já se declararam suspeitos ao avaliar o recurso, parado em segunda instância. De acordo com advogados e procuradores que atuam no caso, a força política do Flamengo tem contribuído para atrasar diligências e ações reparatórias, blindando dirigentes das consequências do incêndio. “É uma luta de Davi contra Golias”, compara a mãe de um dos garotos ao definir o cabo de guerra com o clube.
Uma CPI aberta na Alerj para apurar o caso ficou estagnada durante a pandemia e ainda não apontou culpados pelo incêndio. Mesmo antes das medidas de isolamento social, a lentidão para nomear os responsáveis já chamava atenção comparada a outros desastres de maior proporção no Brasil. Desastres como o rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho, ou o incêndio na Boate Kiss, que matou 270 pessoas, tiveram indiciamentos em bem menos tempo que o trágico episódio do Ninho. Por sua vez, embora ressalte colaborar com a investigação policial, o Flamengo hesitava, passados quase 20 meses do incêndio, em tocar uma auditoria interna para esclarecer as devidas responsabilidades e eventuais falhas de funcionários.
“Eu queria que o Landim ou qualquer outro dirigente do Flamengo olhasse no meu olho e dissesse que não teve culpa pela morte do meu filho”, diz Wedson Matos, pai do zagueiro Pablo Henrique, de 14 anos. “Mas nem isso eles têm a dignidade de fazer. Colocaram meu filho numa jaula, e ele foi consumido pelo fogo como se fosse uma mercadoria qualquer. É complicado, pra gente que é pobre, ter esperança na Justiça deste país.” A revolta de Wedson encontra eco na maioria dos desabafos de familiares dos garotos, incluídos os que já acordaram indenizações com o clube, angustiados pela letargia em punir a negligência.
Eles se sentem violentados cada vez que dirigentes saem a público para relativizar uma tragédia que poderia ter sido evitada, caso a vida de jovens promessas do futebol fosse tão valorizada quanto uma contratação milionária. Quem matou os garotos do Ninho? Justiça e Flamengo devem resposta às famílias. Para que suas perdas jamais sejam esquecidas. Para que a história não se repita como nova tragédia. Para que a impunidade não seja celebrada em mais uma farsa.