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Opinião
Texto em que o autor defende ideias e chega a conclusões basadas na sua interpretação dos fatos e dados ao seu dispor

Lula na ‘banheira’, Chico fominha e um juiz a favor (finalmente)

Petista e cantor vencem peleja contra time do MST em ato político com militantes no papel de jogadores

Jogo Lula Chico Buarque futebol
Lula cobra pênalti em jogo ao lado de Chico Buarque, no campo do MST.Miguel Schincariol

Há poucas coisas tão enfadonhas de se assistir como as peladas de fim de ano dos boleiros. Os jogadores em atividade tiram o pé porque precisam se poupar nas férias. Os ex-atletas tentam mostrar que não esqueceram os atalhos do campo, mas as pernas desobedecem. Um tipo de evento que só desperta curiosidade quando o futebol, mesmo como pretexto da ocasião, é o que menos importa. O duelo Amigos de Lula e Chico Buarque x Amigos do MST, travado no último domingo, se encaixa justamente nessa categoria.

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A peleja sediada no campo Dr. Sócrates Brasileiro, inaugurado nas dependências da Escola Nacional Florestan Fernandes, em 2017, com a primeira edição do jogo, serviu de alavanca para o ato político organizado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em celebração à soltura do ex-presidente Lula. Pelas arquibancadas, cartazes de militantes e devotos do líder petista, como “Toca pro Lula que ele tá livre” e “Hoje tem gol do Lula, se o juiz deixar”, brincavam sobre sua libertação e cutucavam Sergio Moro. O próprio homenageado da festa ironizou a situação ao discursar antes da partida: “Eu preciso ficar livre, inclusive do goleiro, para marcar gol”.

Por mais que o futebol estivesse em segundo plano, algumas performances revelavam como cada personagem encara a pelada com sua respectiva dose de seriedade, deixando transparecer, ainda que discretamente, o desejo de viver um dia de craque. Em que pese o passado operário, Lula é o típico jogador banheirista. Não volta para ajudar na marcação e está sempre perto da área farejando um rebote. Para ele, bastava deixar sua marca. Uma meta facilitada pelo árbitro Juca Kfouri, que assinalou um pênalti mandrake, devidamente convertido por Lula ao abrir o placar.

Jornalista crítico e contundente em suas análises de futebol, sobretudo à arbitragem, Kfouri havia prometido uma mediação justa da contenda. Citou até mesmo Nelson Mandela como referencial de princípios. Mal colocado em campo, arruinou dois contra-ataques da equipe do MST. Teve a chance de rever o lance do pênalti por meio do VAR improvisado no celular de uma torcedora. Ainda assim, persistiu no erro. Deu cartão amarelo a Lula por tirar a camisa na comemoração do gol, rezando a cartilha moralista do “padrão Fifa”. Marcou faltas inexistentes, sem contar a penalidade no início, e picotou a partida. Pelo bem do espetáculo, acabou sentindo o mormaço de Guararema e precisou ser substituído por outro juiz. Se juntou, então, ao amigo José Trajano nos comentários do jogo.

Chico Buarque resumiria sua atuação no apito em “correu na contramão atrapalhando o tráfego”. O cantor, por sinal, é o famoso dono da bola. Falou, tá falado. Acostumado ao protagonismo em seu time no Rio de Janeiro, o Politheama, só saiu de campo para beber água. Apesar dos 75 anos, domina a meia cancha com invejável visão de jogo. Faz questão de carimbar toda a construção de jogadas. Os adversários o respeitam, evitam chegadas mais duras. Mas esqueceram de combinar com as mulheres que reforçavam o selecionado dos trabalhadores rurais, a exemplo da cantora ativista Preta Ferreira e a arquiteta Monica Benício, viúva de Marielle Franco, que teve o rosto estampado na camisa do MST. Cada vez que era desarmado por uma jogadora rival, Chico descontava a bronca nos companheiros por não o avisarem sobre a aproximação das implacáveis marcadoras, dispostas a mostrar serviço.

Apesar do físico imponente, à la Raí em seu auge nos anos 90, Fernando Haddad tinha dificuldades para coordenar as passadas largas e, ao mesmo tempo, se manter de pé. No papel, é o que chamam na Inglaterra de volante box-to-box, que corre o campo todo, de área a área. Na prática, perdeu na corrida em um de seus estirões para João Pedro Stédile, dirigente do MST, dez anos mais velho que ele, e defensor de rara consciência tática para ocupar bem os espaços no gramado.

Advogado de Lula, Cristiano Zanin remete aos beques alemães da década de 80. Seu jeito robotizado de correr, porém, se mostra eficiente e pragmático. O jogo não era de campeonato, mas chutou ao menos duas bolas para o mato. Já o ex-ministro Alexandre Padilha, seu parceiro de zaga, tomou dura dos companheiros por querer sair jogando bonito, sem dar chutão. “Tá achando que isso aqui é Barcelona, pô?”, protestou um dos colegas.

Entre personalidades convidadas, menções honrosas à classe dos ex-jogadores Afonsinho, Nei Conceição e Nando, irmão de Zico, que se notabilizaram por enfrentar a ditadura militar na época em que atuavam como profissionais. Seguem jogando o fino da bola sem precisar dar carteirada de boleiro nem lição de moral aos companheiros. E também ao arisco gingado de Chico César na ponta direita. Coube a seu xará dar números finais à partida. Aproveitando-se de outra marcação duvidosa e recompensado pelo espírito fominha, Chico Buarque decretou a vitória por 2 a 1 em cobrança de pênalti. “O jogo só acaba depois que o Chico marca”, gritaram da arquibancada, na mesma hora que soou o apito final.

Além dele e de Lula, que pediu para sair simulando uma lesão, logo depois de anotar seu golzinho, outro nome que levantou a torcida foi o do canhoto Eduardo Suplicy. Com preparo em dia e fôlego de boxeador, o ex-senador quase octogenário aprontou um carnaval pelos flancos. Subiu de cabeça como se fosse um pássaro e, por pouco, não marcou um belo gol batendo cruzado. Sob o deslumbre geral diante de uma comovente arrancada em marcha lenta, teve torcedor arriscando comparar Suplicy a Bruno Henrique, do Flamengo, ou a Neymar.

Saiu de seus pés, ou melhor, de sua voz, o grand finale da confraria de esquerda. Terminado o duelo, ele assumiu o microfone e desatou a cantar. Parecia emocionado ao entoar com eloquência jovial os versos de Blowin’ in The Wind, de Bob Dylan. Não era Lula nem Chico. Mas dançou e gargalhou como se fosse o próximo.

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