Estante EL PAÍS | A vida de uma pediatra canalha e racismo no mercado editorial nas leituras de outubro
A lista de leituras recomendadas pelo EL PAÍS neste mês vai dos romances de humor mordaz e denúncia social até a nata do mais brasileiro dos gêneros literários
![A pediatra](https://imagenes.elpais.com/resizer/v2/MKQD3RSZBZCRTMMR6H6YI7DD2I.jpg?auth=b21b7540103a5d26e8d870b488df616e44e8b42b4502c021a4321b24b909d371&width=414)
A lista de leituras recomendadas pelo EL PAÍS neste mês vai dos romances de humor mordaz e denúncia social até a nata da crônica brasileira, passando também por um livro-reportagem. Em A pediatra (Companhia das Letras), Andréa del Fuego constrói o retrato de uma médica cuja única motivação para o trabalho é o poder social e financeiro que o jaleco branco e o estetoscópio lhe conferem. Em seu livro de estreia, A outra garota negra (Intrínseca), Zakiya Dalila Harris denuncia o racismo estrutural nas relações de trabalho através de Nella Rogers, única assistente editorial negra na renomada (e fictícia) Wagner Books. Já Adriana Negreiros faz uma investigação profunda e em primeira pessoa sobre a violência sexual no seio da sociedade brasileira, com A vida nunca mais será a mesma (Cia. das Letras). Por fim, a editora Autêntica publica uma antologia de textos de Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, Fernando Sabino, José Carlos Oliveira, Vinicius de Moraes e Stanislaw Ponte Preta.
A pediatra
Andréa del Fuego
Companhia das Letras
![Estante EL PAÍS](https://imagenes.elpais.com/resizer/v2/T5Z2DMY6HJEUVAXE43MLYW7XVQ.jpg?auth=97073b7a14b462766380d6d45f49ccc907aff29a4cacdeb523b4a4ca198632dc&width=414)
Uma pediatra neonatal que não gosta de crianças, não tem paciência para mães, odeia doulas e graceja internamente sobre a sagrada função de gerar e parir uma vida, sobretudo se esse processo é feito em meio a aulas de yoga e palestras sobre maternidade natural e intuitiva. Essa é Cecília, uma médica que vive sentada em seu trono de arrogância, validado pelo poder não apenas financeiro, mas de quem carrega um estetoscópio ao redor do pescoço. Ela é a protagonista canalha do romance A pediatra, de Andréa del Fuego (ganhadora do Prêmio Saramago em 2011), que, com um humor mordaz, narra o cotidiano de Cecília enquanto ela se envolve com um homem casado, pai de um de seus pacientes, e começa a experimentar sentimentos inéditos pelo filho dele, que ela ajudou a trazer ao mundo. Na contra-mão da romantização da maternidade, a pediatra cai em outro extremo: descreve com detalhes a rotura perineal (rompimento do tecido entre a vagina e o ânus), que pode acontecer em alguns partos vaginais, com uma sordidez capaz de fazer qualquer pessoa (com útero ou não) temer esse momento, e reduz mães e pais à sombras de suas crias. Cecília é cínica, egoísta, descarada. E apaixonante, pois revela em sua persona escancarada de rica mulher paulistana traços comuns que a maioria de nós, reles mortais, prefere crer ausentes em nossas próprias personalidades.
A outra garota negra
Zakiya Dalila Harris
Intrínseca
Algumas críticas comparam o romance A outra garota negra com uma versão política e socialmente consciente de O diabo veste Prada, mas isso não dá conta de todas as camadas do romance de estreia da norte-americana Zakiya Dalila Harris. O livro escancara as facetas do racismo estrutural através da vida de Nella Rogers, assistente editorial na Wagner Books e única funcionária negra em seu setor. Sem surpresas, a protagonista sofre uma série de práticas de racismo velado, desde a condescendência dos colegas, microagressões por todas as partes e a barreira invisível que bloqueia o ascenso econômico e profissional de mulheres negras em suas carreiras. Quando Hazel, outra editora negra passa a trabalhar na mesa ao lado da sua, Nella pensa ter ganhado uma aliada, mas esse sentimento logo é dissipado por uma urgência competitiva: a novata é rapidamente incluída em projetos de que ela mesma foi deixada de fora e, para piorar, post-its ameaçadores começam a aparecer em sua mesa: “Deixe Wagner agora”. Esse leve toque de mistério (que não chega a configurar um thriller) embala o romance, no qual tem protagonismo o boicote à diversidade racial no mercado editorial —Nella tem muitas ideias para mudar a forma como editores brancos (principalmente homens) veem a comunidade negra, mas é constantemente retaliada— e a denúncia sobre o mercado de trabalho como um todo. A leitura fica ainda mais interessante ao saber que a autora baseou-se na sua própria experiência trabalhando na Penguim Random House.
Os sabiás da crônica
Antologia organizada por Augusto Massi
Autêntica
![Estante EL PAÍS](https://imagenes.elpais.com/resizer/v2/R3HZIKB45JC5FEEUV32X6GDYTA.jpg?auth=4b2092f7b19ccf84494093fab03935e4837cfbd30debaaba3adbe9980b1db2ba&width=414)
Em pé, aparecem Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, Fernando Sabino, José Carlos Oliveira. Sentados, estão Vinicius de Moraes e Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta). A foto, em pose quase espontânea entre os amigos, foi tirada na cobertura de Rubem Braga, em Ipanema (Rio de Janeiro), em 1967, quando comemoravam a criação da editora Sabiá. Mais de cinco décadas depois, ela serviu de inspiração para a editora Autêntica publicar a antologia Os sabiás da crônica, com obras dos seis autores organizadas por Augusto Massi, professor de Literatura Brasileira na USP (Universidade de São Paulo). O leitor encontra 15 textos de cada autor, entre suas publicações de estreia e crônicas póstumas, da cidade natal de cada um até as peripécias na obtenção da “cidadania carioca”. Lá tem de tudo: a etnografia sentimental dos bairros e dos bares, os diálogos com a música e o cinema, os perfis de artistas e amigos, os tipos urbanos, as histórias de passarinho, de paixões e futebol. É um passeio em prosa pelo contexto histórico e cultural que forjou a amizade e a obra do grupo, em uma ode ao que é considerado o mais brasileiro dos gêneros literários.
A vida nunca mais será a mesma - cultura da violência e estupro no Brasil
Adriana Negreiros
Companhia das Letras
![Estante EL PAÍS](https://imagenes.elpais.com/resizer/v2/ZKSDMW6XIFBAJD7SGGHMNUALGI.jpg?auth=591d056adce2c31a003f40c380f40cbb85d617970b5089e042c704eae48f8966&width=414)
A jornalista e escritora já havia se debruçado sobre a violência sexual historicamente perpetuada na sociedade brasileira na obra Maria Bonita - sexo, violência e mulheres no cangaço (Objetiva, 2018). Agora, ela volta a fazê-lo de maneira mais crua e corajosa, a partir do relato de um estupro que ela mesma sofreu, no livro-reportagem A vida nunca mais será a mesma. Ao alternar entre depoimentos em primeira pessoa e casos verídicos de outras mulheres e meninas, noticiados na imprensa ou investigados por ela, Negreiros expõe as diversas formas de violência sexual que são, ao mesmo tempo, naturalizadas e constituem um tabu no país, desde o abuso sexual de crianças por familiares ao estupro no casamento. É uma leitura dura por vezes, mas necessariamente elucidativa.
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