_
_
_
_
_

De ‘Brown Sugar’ às Dixie Chicks: quando a música é acusada de racismo

Os Rolling Stones não são as únicas estrelas que escreveram canções com conotações xenófobas. No passado, Elton John, David Bowie, Cher, Guns N’ Roses e Lorde se viram envolvidos em polêmicas parecidas

Cher, Elton John e Diana Ross posam no Rock Music Awards de 1975. Os dois primeiros foram acusados de incluir referências ofensivas em relação a minorias raciais em suas letras.
Cher, Elton John e Diana Ross posam no Rock Music Awards de 1975. Os dois primeiros foram acusados de incluir referências ofensivas em relação a minorias raciais em suas letras.Getty
Fernando Navarro

Os Rolling Stones decidiram tirar do repertório de seus shows a canção ‘Brown Sugar’, uma de suas composições mais emblemáticas. Essa decisão, tomada por uma das bandas mais irreverentes e importantes da história da música popular, evidencia as acusações de racismo que perseguiram durante décadas muitas canções que se transformaram em sucesso. A linha que separa a arte da polêmica é fina quando as composições tratam de temas como a escravidão e a raça. E é ainda mais quando nos últimos tempos um punhado de nomes ilustres da cena musical internacional decidiu rejeitar essas músicas para evitar novos conflitos e não lidar com a cultura do cancelamento. E, se não rejeitaram, pelo menos se viram envolvidos em explicações. Na sequência um repasse dos casos mais famosos.

‘Brown Sugar’ – The Rolling Stones

O último caso. ‘Brown Sugar’ sempre foi uma das músicas mais controversas dos Rolling Stones. Sua letra reúne um acumulado de imagens polêmicas ao se referir à escravidão, ao estupro, ao machismo e às drogas. De fato, a letra menciona diretamente a tortura e a escravização sexual a que foram submetidas as mulheres afro-americanas nas plantações de algodão: “Barcos negreiros na costa do ouro com destino aos campos de algodão / Vendidos no mercado na cidade de Nova Orleans / Velhos traficantes de escravos com cicatrizes sabem que estão agindo bem / Escutem-nos açoitando as mulheres por volta de meia-noite”. Keith Richards afirmou em uma entrevista ao Los Angeles Times: “Não perceberam que essa canção fala dos horrores da escravidão? Estão tentando enterrá-la. Por enquanto, não quero me meter em confusões com toda essa merda, mas espero que possamos ressuscitar essa beleza em toda a sua glória nessa turnê”.

‘China Girl’ – David Bowie

Essa música sempre trouxe polêmica para David Bowie, ainda que seu verdadeiro propósito tenha sido realmente condenar a visão degradante do Ocidente sobre o Oriente em seu conjunto. ‘China Girl’, escrita em parceria com Iggy Pop, era uma paródia do racismo e dos estereótipos. Nessa composição, um homem tenta submeter por amor uma mulher asiática —vietnamita, ainda que seu título faça referência a uma chinesa—. O próprio protagonista da canção é caucasiano —como Bowie— e faz algumas declarações racialmente sensíveis ao se apresentar como um invasor estrangeiro sobre ela. O próprio Bowie declarou que tentava assumir o papel de um mulherengo racista, mas Ellie M. Hisama, professora da Universidade Columbia, afirma que o vídeo causava mais danos do que benefícios ao apresentar estereótipos com pouca explicação. Em um artigo publicado em 1993, criticou a descrição da ‘China Girl’ como uma mulher sem identidade e autodeterminação. “Quando o ocidental se lamenta diante de sua pequena chinesa de que ‘arruinará tudo o que você é’, dá um enorme passo para perceber que está se apropriando dela. Além disso, ela permanece sem nome, reduzida a um sexo e uma raça”, escreveu Hisama.

‘Island Girl’ – Elton John

Foi uma das número 1 de Elton John, posicionando a canção três semanas na Billboard Hot 100 nos Estados Unidos. É o primeiro single publicado com o disco Rock of the Westies, lançado em 1975. Como costuma ser habitual, é uma composição que conta com a participação de Bernie Taupin, o grande colaborador e braço direito de Elton John nas composições. Desta forma, os dois dividem a autoria. A letra da canção fala de uma prostituta jamaicana em Nova York e um homem que quer levá-la de volta à Jamaica. De alguma forma, descreve como essa garota negra é maltratada pelos “brancos da cidade”. Assim como ocorre com outras composições de Elton John, há um diálogo interior do cantor com as andanças da jovem. Em todo caso, ao contrário de outras músicas, não há versos depreciativos.

‘One in a Million’ – Guns N’ Roses

Axl Rose, líder do Guns N’ Roses, sempre se caracterizou por não ter filtro e ser um personagem polêmico. Mas dessa vez passou dos limites. ‘One in a million’ tinha uma letra racista terrível e recebeu uma chuva de críticas posteriormente a ponto de cancelar a participação do grupo em um ato solidário na luta contra a Aids em Nova York. A canção é um ataque discriminatório contra as pessoas negras e os homossexuais. Usa os termos depreciativos “faggots” (viados) e “niggers” (crioulos). Rose disse que se inspirou em um assalto que um de seus amigos foi vítima em um posto de gasolina, mas a partir daí fez uma enxurrada de declarações desastradas em que chegou a afirmar que se sentia intimidado por negros quando fazia compras em alguns lugares e que homens tentaram seduzi-lo para roubá-lo. Em uma entrevista em 2010, Slash, guitarrista do Guns N’ Roses, disse que ele se opunha a gravá-la, mas que Rose fez questão e não pôde fazer nada. “Não me surpreendeu que tenha causado tanta controvérsia, acho que o tom da música era ofensivo. A maneira como o fez, as palavras que usou... Não costumo me arrepender das coisas. Não estava de acordo quando saiu e continuo sem estar, mesmo que já ninguém se importe. Foi infeliz em sua época, mas o que está feito, está feito. Já não penso nisso”. Por fim, Axl Rose acabou por rejeitá-la e não foi incluída no grande compilado do grupo.

‘Kung Fu Fighting’ – Carl Douglas

Essa música do jamaicano Carl Douglas é considerada uma das melhores canções disco de todos os tempos. É uma homenagem aos filmes de artes marciais, mas o músico Simon Ledger nunca pensou que sua interpretação em um show faria com que fosse interrogado pela polícia. De acordo com a BBC, Ledger tocou a música em um pub da Ilha de Wight, no Reino Unido, e dois espectadores chineses se sentiram ofendidos e chamaram a polícia alegando que continha mensagens racistas e depreciativas contra a comunidade chinesa. A polícia interrogou Simon Ledger do lado de fora do pub e o colocou em liberdade sob fiança na mesma rua.

‘Royals’ – Lorde

Canção incluída no primeiro álbum de Lorde, a artista disse que ‘Royals’ se refere “às expectativas irreais impostas aos adolescentes, como resultado de sua representação nos veículos de comunicação”. Escrita em apenas meia hora, Lorde fala sobre um estilo de vida repleto de riqueza e, para isso, enumera tudo o que a protagonista deseja: roupa cara, carros de luxo, muito álcool, possibilidades de reconhecimento pelo dinheiro... A cantora disse que se deixou influenciar pelo rap e todo o seu universo e que se inspirou ao ver pela televisão um jogo de beisebol do Kansas City Royals. Isso serviu para que ela falasse sobre o estilo em que o dinheiro é a única coisa que importa. Causou polêmica por suas zombarias ao mundo do rap afro-americano e ela se desculpou. Recentemente, entrevistada pelo The New York Times, reconheceu que escreveu ‘Royals’ a partir de “uma perspectiva ingênua” e que à época não sabia tudo o que sabe agora.

‘Half Breed’ – Cher

Foi o primeiro single do álbum Half Breed, lançado em 1973. Narra a história de uma mulher jovem, que é metade branca e metade cherokee, e conta como enfrenta diversos problemas por sua condição racial. A canção mostra um cenário de discriminação aos nativos americanos, já que a mulher afirma que os brancos a chamam de “índia squaw (em referência a um território pertencente aos indígenas norte-americanos)” e ela declara a si mesma “branca por lei”, como se ser indígena racializada fosse pior do que ser branca. Chegou à primeira colocação da Billboard Hot 100 e lá permaneceu por duas semanas. O problema com essa música veio em 2017 após ser recomendada por Kaya Jones, ex-vocalista da The Pussycat Dolls. Jones, de ascendência indígena, foi nomeada por Donald Trump como embaixadora americana na National Diversity Coalition para com os representantes indígenas e usou a canção de Cher para reivindicar sua condição. Ela nomeava a si mesma como #HalfBreed quando era incapaz de indicar a reserva da qual supostamente saiu seu pai. Isso causou um alvoroço nas redes sociais e acabou respingando em Cher, como autora da música. Cher comprou a briga com os que criticavam sua canção e acabou entrando em uma enorme confusão nas redes sociais pela que terminou por pedir desculpas.

The Dixie Chicks e Lady Antebellum

Causada pelo movimento Black Lives Matter contra o racismo, uma onda de compromisso se espalhou pela cultura norte-americana favorável à comunidade negra. A pressão dos fãs fez com que duas bandas mudassem de nome para sempre por termos relacionados ao racismo. O caso mais famoso foi o da The Dixie Chicks. Decidiram se chamar simplesmente The Chicks e tirar do nome artístico a palavra “dixie”, um termo associado aos Estados sulistas (a Confederação) que na Guerra de Secessão (1861-1865) defendiam a escravidão contra os territórios do norte. “Queremos estar antenadas com o momento”, disse a banda em um comunicado. Algo semelhante ocorreu com o grupo de country Lady Antebellum. Agora se chamam Lady A. “Antebellum” é uma palavra que tem um significado relacionado ao racismo e à escravidão no sul do país antes da Guerra Civil dos EUA.

Inscreva-se aqui para receber a newsletter diária do EL PAÍS Brasil: reportagens, análises, entrevistas exclusivas e as principais informações do dia no seu e-mail, de segunda a sexta. Inscreva-se também para receber nossa newsletter semanal aos sábados, com os destaques da cobertura na semana.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_