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Prostitutas e protagonistas no palco do Theatro Municipal

Trabalhadoras sexuais —e agora atrizes— do coletivo Daspu participam da ópera ‘María de Buenos Aires’, do argentino Astor Piazzolla, em montagem dirigida por Kiko Goifman

Espaço Daspu na ópera 'María de Buenos Aires', no Theatro Municipal de São Paulo.
Espaço Daspu na ópera 'María de Buenos Aires', no Theatro Municipal de São Paulo.STIG

Todas as noites, Betânia Santos, de 48 anos, se arruma, põe a maquiagem e sai para esperar seus clientes. Ela repete essa rotina há quase três décadas, e nas duas últimas semanas não foi diferente. Mas, em vez de ir para a “pista”, a trabalhadora sexual maranhense sai para esperar seu público, desde o dia 10 de setembro, no palco do Theatro Municipal de São Paulo. “Eu sou Betânia Santos, tenho 48 anos, sou prostituta, mulher, mãe, ativista, educadora”, diz aos presentes, em uma declaração que introduz María de Buenos Aires, a única ópera composta pelo mestre do tango Astor Piazzolla e que encerra uma temporada exitosa neste fim de semana, sob apelo de que volte aos palcos em breve.

O espetáculo, que tem direção cênica de Kiko Goifman, conta a história da prostituta María, de sua vida-morte entre sonho e vigília. Nascida em um dia “em que Deus estava bêbado”, María vive, mesmo depois de morta, ao dar à luz outra María que, assim como ela, vagará à noite. “A ópera já fala, por si só, da realidade das putas. Por isso eu digo que não faço uma interpretação, mas vivo a vida real no palco”, comenta Betânia. Ela é uma das quatro mulheres da grife e coletivo Daspu —criada por Gabriela Leite para dar visibilidade e fortalecer os direitos das prostitutas, como ela foi até a morte— que compõem o elenco da ópera. O quarteto atua ao lado colombiana Catalina Cuervo, solista da montagem, que já interpretou María de Buenos Aires mais de 50 vezes em vários países, mas nunca ao lado de trabalhadoras sexuais. Também estão em cena o barítono Gustavo Feulien (que interpreta o Cantor) e o ator Rodrigo Lopez (o Duende).

Betânia diz sentir-se muito honrada ao subir ao palco do Theatro Municipal de São Paulo, que já recebeu de Maria Callas a Ella Fitzgerald, e a semana de 22, de Mário e Oswald de Andrade, e outros artistas que inauguraram o movimento modernista no Brasil. Ela lembra que isso não seria possível sem o trabalho de Gabriela Leite e Lourdes Barreto, criadoras do Movimento Brasileiro de Prostitutas, há 30 anos. “Para mim, é de extrema importância reivindicar minha identidade como puta nesse palco, porque é uma palavra que corresponde à minha forma de vida, é o significado do meu trabalho, da criação das minhas filhas”, afirma.

O coletivo Daspu é conhecido por fazer sua política de corpão e é isso que Elaine, Betânia, Dannyele Cavalcante e Lua Negra apresentam no Espaço Daspu, composto por duas cadeiras, uma mesa, um abajur e uma tela de pelúcia numa lateral do palco, onde as quatro se revezam em performances.

Cena da ópera 'María de Buenos Aires' no Theatro Municipal de São Paulo.
Cena da ópera 'María de Buenos Aires' no Theatro Municipal de São Paulo.STIG

Na tela de pelúcia e em outra, gigante, ao fundo do palco, são projetadas imagens das velhas e novas Buenos Aires e São Paulo, e as da própria ópera, captadas em tempo real —Kiko Goifman fica o tempo todo num canto do palco, editando ao vivo as cenas selecionadas. É um cinema-vivo que pulsa ao ritmo do tresillo —um, dois, três; um, dois, três; um, dois— a célula rítmica de influência africana presente de norte a sul do continente americano, do baião ao tango argentino.

O uso da linguagem cinematográfica foi a primeira certeza do diretor ao aceitar o convite para realizar a ópera que abriu a programação dos 110 anos do Municipal e inaugurou o retorno do teatro às apresentações presenciais depois de quase dois anos fechado pela pandemia de covid-19. Cineasta, Kiko Goifman dirigiu com Claudia Priscilla o premiado Bixa Travesty, documentário sobre a artista transexual Linn da Quebrada, e conta que encontrou seu ponto de identidade com a obra de Piazzolla justamente por tratar de personagens da noite, considerados socialmente subversivos. “Aí decidi radicalizar essa ópera já subversiva em si mesma. Quis trazer essa sensação de surpresa, do acaso, com a performance de vídeo-arte”, conta ele. Com o arsenal de imagens que ele capta, edita e projeta ao vivo durante cada apresentação, o espetáculo se transforma a cada noite. Quem vai num dia não verá as mesmas cenas ao dia seguinte. O que não muda é a reação do público: sempre que as mulheres da Daspu voltam ao palco para agradecer à plateia, são ovacionadas de pé.

Tanto Goifman quanto sua parceira, Claudia Priscilla, já haviam trabalhado com o coletivo em outras apresentações culturais, como no Boteco da Diversidade do Sesc Pompeia. Quando ele ligou para Elaine Bortolanza, no entanto, com o convite para o Municipal, ela não acreditou. “Pedi para ele repetir várias vezes, o que estava dizendo, porque com a morte da cultura e da arte no Brasil, parecia quase impossível de se concretizar”, lembra ela.

Outra decisão política do diretor foi decidir trabalhar apenas com bailarinos negros do Balé da Cidade na ópera, depois de descobrir que a palavra tango tem sua origem na cultura de países africanos: em alguns idiomas, ela significa “lugar fechado onde as pessoas se encontram para tocar música e dançar”. Também tem destaque o bandoneón, instrumento-chave na obra de Piazzolla e no tango, em geral, ser executado pela argentina Milagros Caliva, quando normalmente é tocado por homens. Priorizar trabalhar com mulheres é um dos eixos da trajetória de Goifman. “Por isso entendo que a coisa mais importante de trabalhar com um coletivo como a Daspu é que seja importante para elas. Qualquer sentido da vida delas é mais importante do que qualquer ópera”, diz o diretor.

Para Elaine Bortolanza, diretora da Daspu, que também sobe ao palco, a ópera se assemelha à história da própria Gabriela Leite, que morreu de câncer em 2013. “Mesmo morta, ela continua a parir outras Marias no mundo”, diz, referindo-se ao trabalho da primeira rede latino-americana para o debate sobre trabalho sexual e direitos das prostitutas. “Quando pisamos no palco para o primeiro ensaio, o chão vibrava. Foi muito emocionante, choramos. Gabriela era contra a ideia de que a militância ter que ser triste, de não ter pulsão de arte e alegria. Nesse momento, é bonito estarmos criando novas formas de resistir, com beleza”, conta.

No palco de uma meca da cultura brasileira, é impossível tirar os olhos dessas mulheres e de suas lutas. “Essa transa entre Daspu e Theatro Municipal mostra que nós fazemos parte dessa sociedade, ela apenas é hipócrita ao se recusar a olhar para nós”, completa Betânia.

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