Bienal de São Paulo busca luz em tempos sombrios
Mostra brasileira reúne mais de mil obras de 91 artistas, incluindo um número recorde de indígenas brasileiros e estrangeiros
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A Bienal de São Paulo, o maior evento de arte contemporânea da América Latina, abre suas portas neste sábado aos visitantes vacinados contra a covid-19, que poderão visitar seus três pavilhões até o dia 5 de dezembro. Esta edição ocorre 70 anos depois da primeira mostra e de olho nos tempos sombrios vividos no Brasil, que sofre dos mesmos velhos males, aos quais se soma a erosão das instituições democráticas. Nesse cenário, cinco curadores liderados pelo italiano Jacopo Crivelli Visconti selecionaram 91 artistas de 40 países cujas obras sugerem diálogos variados para mostrar em que medida uma mudança no olhar, no tempo ou no contexto modifica o significado de obras, ideias ou ações.
Como todas as edições ganham um apelido, a deste ano estava destinada a ser chamada de Bienal da pandemia, que a obrigou a ser adiada por um ano e a modificar a programação. Mas talvez vá ser lembrada como a dos artistas indígenas. Nove deles, maior número até hoje (tanto de brasileiros quanto de estrangeiros), expõem nesta 34ª edição, que reúne mais de mil obras.
O lema escolhido, Faz escuro, mas eu canto, é um verso famoso do poeta amazônico Thiago de Mello, escrito em 1963. Com o início da ditadura no ano seguinte no Brasil, essas palavras foram adquirindo sucessivamente novos significados como expressão de protesto, de resistência, de luto ou de esperança, como lembrou um dos curadores nesta quinta-feira, na apresentação da Bienal,
Mais uma vez, a entrada será gratuita, importante em um país dilacerado pela desigualdade. Basta apresentar o certificado de vacinação contra a covid-19. A Bienal também polinizou a arte contemporânea por toda a cidade, com exposições em 20 instituições culturais de variados perfis. “É mais do que necessário termos mais arte para enfrentar o efeito devastador da pandemia na saúde emocional coletiva. Arte é garantia de sanidade”, ressaltou Eduardo Sarón, diretor do Itaú Cultural, uma das instituições parceiras do evento.
O prédio retangular enorme e delicadamente ventilado projetado por Oscar Niemeyer para sediar a Bienal parece perfeito para estes tempos pandêmicos. “As obras aqui reunidas falam também do momento atual. A perspectiva histórica é uma das coisas que mais nos interessava apresentar”, destacou Visconti. “É mais importante falar durante tempos conflituosos, desafiantes, do que falar em tempos de paz”, acrescentou, enfatizando que fazer isso é “uma responsabilidade civil”.
Dois exemplos: um sino e o diálogo entre as obras de duas mulheres. As peças que Carmela Gross expôs na Bienal de 1969, a do boicote ao regime militar, estão de novo em exposição junto com a sua Boca do Inferno, criada no ano passado. O contraponto, as silhuetas desenhadas por Regina Silveira, sombras distorcidas que lembram os tanques que o presidente Jair Bolsonaro chamou recentemente para desfilar no coração da democracia brasileira, em Brasília.
O sino é aquele que, num gesto de desobediência, badalou por Tiradentes, então considerado um traidor da pátria, em 1792, na cidade de Ouro Preto, em Minas Gerais. O mesmo que em 1961 foi levado a Brasília para homenagear como herói nacional o dentista que ousou liderar uma rebelião contra o império português.
Esse espírito de enfrentamento é a essência da arte de Jaider Eisbell, artista brasileiro da etnia makuxi, e o principal expoente da arte indígena contemporânea no país. “Quando fui convidado a expor na Bienal, insisti em que não gostaria de estar aqui como único representante da arte indígena. Ainda precisamos corporificar uma arte étnica porque temos uma urgência histórica em ocupar esses espaços”, disse ao EL PAÍS, diante de uma dezena de pinturas que relatam o mito de Makunaíma, a divindade do tempo imemorial.
Eisbell está acompanhado por outros artistas indígenas na exposição principal e também é o curador da mostra paralela Moquém-Surarî: arte indígena contemporânea, que reúne no Museu de Arte Moderna (MAM) obras de outros 19 povos originários do Brasil. Eisbell não concebe a Bienal como um simples espaço de arte, e sim como “um Parlamento” no qual ele conta a história de sua gente àqueles cujo olhar sobre esse tema têm o poder de mudar a realidade dos seus.
Os curadores enfatizaram que não buscaram especificamente artistas indígenas, mas eles apareceram com naturalidade à medida que a seleção avançava. O fato de a emergência climática estar na vanguarda da política mundial conferiu uma desconhecida atualidade à maneira de ver, preservar e captar o mundo desses artistas.
A ideia de diálogo é central nesta edição. A começar pela obra em destaque no primeiro pavilhão, historicamente considerado o eixo narrativo de cada Bienal: Deposição (2020), do norte-americano Daniel de Paula, é uma espécie de ágora de madeira e metal utilizada durante décadas na Bolsa de Valores de Chicago como lugar de negociação da compra e venda de grãos. Elevada ao estatuto de obra de arte, a peça convida à troca de ideias e ao confronto das diferenças.
Essa premissa também se reflete na proposta arquitetônica da Bienal, que adquire escalas bastante urbanas, com espaços separados por estruturas de acrílico, opacas, que simulam paredes de curvas orgânicas. A ideia, dizem os curadores, é provocar atrito entre as obras, permitir que invadam umas às outras, desencadeando milhares de interpretações possíveis entre o público. O corpo do visitante se torna quase parte da estrutura à medida que avança pela exposição, onde, mesmo em cantos aparentemente vazios, se depara com a arte em múltiplas formas. Porque, como observa Paulo Miyada, um dos curadores, o lema desta 34ª Bienal não é um paradoxo, mas um desafio. Afinal, o canto —e toda forma de arte—é uma maneira de ocupar a escuridão.
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