Afinal, onde está a estrutura do “racismo estrutural”?
O sociólogo Jessé Souza reconstrói, no livro ‘Como o racismo criou o Brasil’, a história do país e de sua identidade essencialmente racista a partir das muitas máscaras sob as quais o preconceito se esconde. Leia um trecho
O neoliberalismo disfarçado de lugar de fala emancipador não é o único obstáculo cognitivo e político no campo dos que imaginam estar lutando contra o racismo. No Brasil também virou moda nos últimos tempos falar de “racismo estrutural” como uma espécie de palavra-chave que supostamente abriria todas as portas do “segredo” do racismo. Encontramos aqui a velha estratégia: quando não sabemos muito sobre algum assunto, mas queremos passar aos outros a impressão de que sabemos muito, basta usar o adjetivo “estrutural”. Precisamente por ser uma categoria que promete muito —ou seja, o desvelamento profundo da essência do racismo na sociedade—, mas entrega pouco mais que um nome mágico e uma alusão ao que fica escondido, é inevitável despertar um sentimento de impotência e frustração em quem busca entendê-la. Em fevereiro de 2021, em entrevista à Folha de S.Paulo, o professor de Direito da UFBA Samuel Vida, ele próprio negro, deu voz a essa frustração nos seguintes termos:
Então as pessoas alegam, “olha, isso é resultado do racismo estrutural”, ponto. E não se discute, não se apresenta a lista dos responsáveis por isso. É como se houvesse uma condicionalidade invisível, imperceptível diante da qual nós não teríamos como diagnosticar adequadamente e atacar no sentido de erradicar o que produz o racismo. Então a expressão racismo estrutural tem virado nos últimos anos um álibi para justificar tanto práticas individuais quanto práticas institucionais.
A frustração de Samuel Vida costuma ser despertada por um tipo de procedimento intelectual que, em vez de reconstruir a realidade criticamente de modo a confrontá-la com a percepção espontânea e superficial criada pelos mecanismos de poder e dominação, se conforma com uma petição de princípio: a mera referência a uma “estrutura” indeterminada e vazia de conteúdo. Mais uma vez, quando lidamos com um fenômeno social e confundimos nomear com explicar, atribuindo um poder mágico à mera palavra, a confusão e a frustração são inevitáveis.
Obviamente, a constatação de que existe algo além da superfície, algo além da simples intencionalidade individual e da percepção ligeira da vida social cotidiana, é em si um ganho importante e um avanço científico real. Não devemos, portanto, confundir essa abordagem com a manipulação política óbvia e a prestidigitação teórica envolvidas no tema do lugar de fala. Mas, se vamos tratar desse assunto, é necessário explicitar o que significa a tal “estrutura” do “racismo estrutural”.
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O professor Silvio Almeida, que teve o mérito de chamar a atenção da esfera pública brasileira para essa dimensão mais profunda da questão racial e se tornou um dos maiores divulgadores do tema do racismo estrutural entre nós, define desta maneira o que compreende sobre o assunto:
Em resumo: o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural. Comportamentos individuais e processos institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra, e não exceção. O racismo é parte de um processo social que ocorre “pelas costas dos indivíduos e lhes parece legado pela tradição”. Nesse caso, além de medidas que coíbam o racismo individual e institucionalmente, torna-se imperativo refletir sobre mudanças profundas nas relações sociais, políticas e econômicas.
A afirmação de Silvio é perfeita e incontestável. É também, certamente, um passo importante no caminho certo. Realmente temos que analisar o processo social como um todo, nas suas manifestações políticas, históricas, econômicas e jurídicas, de modo a compreender como o racismo funciona na vida cotidiana. O racismo também não é um assunto individual ou mesmo apenas institucional, mas algo que está no âmago do processo de dominação social como um todo. Na realidade, eu não poderia concordar mais com Silvio.
O problema é que nem nessa passagem nem nas outras partes do livro, em que fala dos efeitos políticos ou históricos do “racismo estrutural”, o autor vai além da mera declaração de princípios, ou seja, da defesa da compreensão “estrutural” do racismo como já exposta na afirmação reproduzida. A circularidade do argumento é, portanto, completa. Afirma-se a necessidade da compreensão “estrutural” do racismo em todas as esferas sociais e quando, finalmente, chegamos à análise prometida em cada esfera, o que temos é, de novo e mais uma vez, a mera reafirmação da necessidade de uma análise estrutural do racismo. Apesar de correta e de indicar a direção certa, a mera repetição da petição de princípio não nos ajuda a compreender como o “racismo estrutural” funciona.
Mas Silvio não é o único que encontra problemas para definir a “estruturalidade” do racismo. Um ponto de partida muito semelhante é defendido por Achille Mbembe, uma das estrelas internacionais do chamado pós-colonialismo, no seu festejado Crítica da razão negra. Trata-se certamente de um livro elegante e bem escrito, mas não chegamos também a compreender o que é a “razão negra” como estrutura simbólica da modernidade, muito menos como o racismo é criado ou como funciona. Mbembe defende, por exemplo, que o racismo nos Estados Unidos foi construído historicamente por “práticas jurídicas e políticas” específicas. No começo, negros e não negros desfrutavam, inclusive, de paridade de tratamento, porém, a partir de certa altura, regras distintas, muito especialmente relativas ao poder de portar armas, algo que era facultado aos brancos e interditado aos negros, passaram a criar as condições que levaram à escravidão.
Ora, o que fica faltando na “explicação” de Mbembe é dizer por que exatamente os negros foram, de uma hora para outra, estigmatizados. A ideia de práticas sociais e institucionais que parecem surgir do nada apenas reafirma a necessidade de uma efetiva explicação. Por que, afinal, foram precisamente os negros, não os brancos ou quaisquer outros, os “escolhidos” para as ações discriminatórias? Mbembe parece querer mostrar com isso o caráter arbitrário do racismo, mas o que mostra, antes de tudo, é o caráter arbitrário de seu próprio ponto de partida teórico, que parece considerar desnecessário reconstruir também a genealogia da violência simbólica que engendra as práticas racistas em primeiro lugar. Alguma ideia acerca da suposta inferioridade dos negros tinha que existir para que “práticas jurídicas e políticas” racistas pudessem tomar corpo e se institucionalizar. Essa ideia de “práticas de sujeição” – ou seja, de comportamentos que institucionalizam a dominação e a repressão social, possibilitando a naturalização e a aceitação da opressão nas suas próprias vítimas —que surgem aparentemente do nada mostra as dificuldades de se lidar com um autor como Michel Foucault, que parece ser a inspiração principal de Mbembe, para os fins de crítica social. Ainda que Foucault seja um observador atento e precioso dos mecanismos tornados invisíveis do exercício do poder, sua atenção se torna unilateral ao não perceber a dialética entre aprendizado moral e opressão, ou, dito de outro modo, a luta por reconhecimento social sempre implícita em toda forma de assujeitamento e opressão.
Sem que o racismo e a opressão social sejam percebidos como formas de distorção de demandas por reconhecimento social historicamente construídas, as práticas de opressão e racismo necessariamente parecerão acontecer arbitrariamente, como se surgissem a partir do nada. Desse ponto de vista, a vida social vai tender a assumir a forma de um poder opressor indeterminado e totalizante que “escolhe” suas vítimas também de modo arbitrário. Não à toa, a análise de Mbembe assume um tom retórico, afirmando a “universalização da condição negra”, reduzida a mera metáfora sob o neoliberalismo. Uma metáfora que não só dispensa a análise do que está sendo destruído mas também parece inevitável e inescapável, como uma maldição inexplicável.
A meu ver, o único caminho para evitar não só o óbvio oportunismo político do lugar de fala mas também a circularidade de argumentos e a prisão retórica da simples metáfora quando tratamos do racismo, é reconstruí-lo, em primeiro lugar, como forma e estratégia de distorção e ocultamento de relações morais —que são o verdadeiro motor de toda ação social individual ou coletiva. Assim, para sabermos o que é racismo, temos que reconstruir e compreender as formas históricas de moralidade, ou seja, compreender as concepções de justiça inarticuladas e pré-reflexivas que existem em qualquer contexto social e motivam, em última instância, a totalidade do nosso comportamento social e político. Apenas desse modo poderemos compreender o racismo ou os racismos como um processo de distorção, repressão e negação de demandas morais consideradas justas no contexto de uma sociedade concreta.
Afinal, nem tudo é racismo no mundo. Essa seria uma ideia absurda. Se os atos de racismo produzem indignação, é porque eles ferem nosso sentido, ainda que implícito e inarticulado, do que é uma vida social justa, digna e aceitável. O racismo é sempre um ataque a uma certa concepção de vida moral considerada justa, ainda que de modo irrefletido e inarticulado. O problema é que quase nunca os intelectuais percebem a importância de articular e reconstruir o conteúdo moral da vida social. Precisamente para possibilitar e facilitar a exploração e a opressão social e as várias formas de racismo, esse conteúdo moral é tornado invisível e intencionalmente inarticulado. Mas podemos provar a existência e a importância decisiva das concepções inarticuladas de justiça das pessoas comuns não só nos outros, por meio do trabalho empírico, mas também em nós mesmos, na nossa vida cotidiana e no nosso comportamento.
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