Patrimônio cultural brasileiro vive sob “roleta russa”

Incêndio na Cinemateca coloca em evidência os efeitos do desprezo do Governo pela arte, três anos depois da destruição do Museu Nacional. Reduzido às cinzas em 2015, Museu da Língua Portuguesa acaba de reabrir em São Paulo

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O incêndio que há três anos devorou o Museu Nacional do Rio de Janeiro e destruiu milhões de objetos que contavam 200 anos de história natural é a pior calamidade que a cultura brasileira sofreu nos últimos tempos. Paradoxalmente, muitos cidadãos brasileiros só descobriram aquele tesouro quando foi transformado em cinzas. Jair Bolsonaro não estava entre aqueles que em 2018 lamentaram não tê-lo visitado enquanto ainda estava de pé. O então candidato à presidência declarou: “Já está feito, já está queimado, o que querem que eu faça?”. E depois usou sua desculpa favorita: “Meu nome é Messias, mas eu não faço milagres”. O fogo que há quase duas semanas destruiu parte do acervo da Cinemateca Brasileira colocou em evidência as ameaças ao patrimônio cultural do Brasil que, com o Bolsonaro no poder, são mais graves do que nunca.

O depósito em São Paulo que queimou no dia 29 de julho abrigava o acervo do cineasta Glauber Rocha (1938-1981), um dos pais do Cinema Novo dos anos sessenta, cópias de outros filmes e documentação histórica. A extensão das perdas ainda é desconhecida. Mas os brasileiros preocupados com o patrimônio cultural e histórico pouco se surpreenderam com essa nova tragédia. Eles —e inclusive o Ministério Público— já tinham dado o alerta sobre os riscos que pairavam sobre a Cinemateca depois que o Governo Bolsonaro ignorou a gestão do depósito e despediu o pessoal. Dali em diante, limitava-se a pagar seguranças, a luz e a água.

Já estão longe os anos dourados da Cinemateca. Maria Dora Mourão, que foi coordenadora da Sociedade Amigos da Cinemateca e que participou da gestão, lembra que entre 2008 e 2012 recebeu “subvenções importantes” do Ministério da Cultura e se tornou referência internacional. “O laboratório de restauração foi considerado o terceiro melhor do mundo graças à aquisição de equipamentos (de tecnologia) de ponta e à formação de uma formidável equipe técnica. Mas a falta de interesse em manter essa política pública cultural nos Governos seguintes nos trouxe à situação de desastre em que estamos hoje”, lamenta por telefone a também professora de cinema da Universidade de São Paulo.

Este é o quarto incêndio sofrido pela Cinemateca em sua história e a mais recente catástrofe entre as que causaram danos irreparáveis ao patrimônio. Os recursos sempre foram escassos. O diretor do Museu Nacional já se queixava do mau estado do edifício em 1844, 26 anos depois da inauguração: “A seção de numismática e artes liberais, arqueologia, usos e costumes das nações antigas e modernas encontra-se numa sala cujo teto ameaça desabar tendo em vista que as grandes rachaduras no estuque não param de aumentar”, escreveu, como lembra a historiadora e arquivista Eliane Rezende.

À crônica falta de recursos se juntam os efeitos nefastos de um Governo que despreza a cultura como poucos e de um presidente que a equipara ao comunismo mais perigoso. Assim que assumiu o cargo, Bolsonaro eliminou o ministério do ramo. E depois de alguns vaivéns, colocou o ator de novela Mario Frias à frente dos assuntos culturais.

Bombeiros tentam conter as chamas do incêndio em um dos armazéns na Cinemateca Brasileira em São Paulo, 29 de julho Ronaldo Silva (AP)

O desinteresse e a falta de proteção atingiram níveis sem precedentes com o atual mandatário, explica Rezende em entrevista por videoconferência. “Com Bolsonaro se dá a tempestade perfeita porque temos uma crise econômica, mas não falta dinheiro. Com o dinheiro que investe para conseguir o apoio de deputados no Congresso, poderia cuidar de toda a cultura do Brasil, mas não tem nenhum interesse. É a negligência absoluta”. Com o desaparecimento do Ministério da Cultura, o Arquivo Nacional, por exemplo, passou para a jurisdição do Ministério da Justiça.

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Para Rezende, o Brasil precisa abandonar o culto à ignorância e ao desrespeito ao passado. Dois dados ilustram o desinteresse político e cidadão: quando o Museu Nacional completou 200 anos, nenhum ministro aceitou participar da cerimônia. E em seu último ano aberto, o local viu um número de visitas inferior ao de brasileiros que estiveram no Louvre, em Paris.

A professora de cinema Dora Mourão compara o país com outra grande potência latino-americana: “O Brasil não cuida da sua história. O México, por exemplo, também tem milhares de problemas sociais, mas é um exemplo de preservação cultural e histórica, porque investe dinheiro nisso”.

O patrimônio de um país como o Brasil, com 210 milhões de habitantes em um território continental, é vastíssimo e segue disperso. Protegê-lo é um grande desafio, mesmo quando existe vontade política. Rezende lembra que os recursos sempre foram escassos para a preservação de arquivos e demais, mas destaca que todos os presidentes desde o fim da ditadura em 1985 mostraram interesse. O declínio se acelerou à medida que o poder de Dilma Rousseff foi sendo minado em meio a uma enorme instabilidade política que coincidiu com uma recessão econômica. Aí acabaram o dinheiro e a vontade política. A chegada de Bolsonaro foi a cereja do bolo.

O ultradireitista está seguindo na cultura a mesma estratégia que adota em relação à política ambiental. Não apenas não mantém o impulso de seus antecessores, como também desmonta as políticas existentes.

O incêndio que danificou o arquivo da Cinemateca causou uma notável polêmica no Brasil e repercutiu também entre os profissionais de cinema no exterior. Talvez para acalmar os ânimos, o Governo se apressou em convocar uma concorrência pública para entregar a gestão do depósito afetado.

O caso do Museu Nacional é a perda mais grave entre as várias que foram lembradas nos últimos dias. Outra instituição reduzida a cinzas, o Museu da Língua Portuguesa, acaba de reabrir em São Paulo; as chamas também varreram nos últimos anos 70.000 espécies de cobras, aranhas e escorpiões que o Instituto Butantan —uma instituição centenária que fabrica antídotos e vacinas, incluindo a usada contra a covid-19—armazenava em formol. Além disso, centenas de milhares de prontuários do arquivo de um dos principais hospitais psiquiátricos do Brasil sucumbiram ao fogo. Essas catástrofes são conhecidas porque ocorreram em São Paulo ou em grandes capitais. As perdas em lugares mais distantes são desconhecidas, à medida que enfrentam pouca ou nenhuma repercussão.

“A conservação de arquivos tem de ser uma política contínua, de Estado, porque se você a interromper, tudo o que foi feito se perde”, enfatiza a historiadora. E alerta para o efeito cascata da política de Bolsonaro frente aos atuais cortes na educação, que agravarão a escassez e a falta de formação dos técnicos encarregados da proteção do patrimônio. “Deixarão de ter mão de obra porque não fazem concursos há séculos”.

Durante décadas, o Brasil experimentou uma privatização progressiva da cultura que fez com que muitos dos acervos mais bem preservados estejam nas mãos de instituições privadas que recebem dinheiro público.

As chamas devoram o Museu Nacional no Rio de Janeiro, em setembro de 2018, quando o local histórico completava 200 anos de fundação Buda Mendes (Getty Images)

A reconstrução do Museu Nacional está sendo financiada por um banco público (BNDES), um banco privado (Bradesco) e uma das grandes multinacionais brasileiras, a mineradora Vale. O diretor do museu, Alexander Kellner, acredita que o desastre que destruiu a instituição científica mais antiga do Brasil serve de alerta: “Sempre houve enormes dificuldades para obter financiamento para instituições científicas e culturais. Com isso, esperamos mostrar à sociedade brasileira a importância de preservar seu patrimônio. Que o Museu Nacional sirva de alerta de que, uma vez perdido, esse patrimônio não pode ser recuperado”.

As chamas destruíram o crânio de Luzia, o fóssil humano mais antigo da América Latina, múmias, cinco milhões de insetos dissecados, um meteorito de cinco toneladas... Estão em andamento esforços para dotar o museu de conteúdo: “Em breve iniciaremos uma campanha de doação de coleções, tanto em nível nacional quanto internacional. Queremos ser um museu de história natural e antropologia inovador e acessível, que as exposições sejam entendidas tanto por quem tem doutorado quanto pela criança em idade escolar”, afirma Kellner. A previsão é que as obras na fachada e no telhado comecem este ano, mas o museu só abrirá por volta de 2026 ou 2027.

Como tantos brasileiros do mundo da cultura, o diretor do Museu Nacional é pessimista: “Ainda temos um longo caminho a percorrer para que nossas instituições científicas e culturais se mantenham adequadamente. Qual será a próxima a queimar? É como uma roleta russa”.

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