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Marina Abramović ganha o Prêmio Princesa das Astúrias das Artes

A artista sérvia de 74 anos é considerada uma das grandes precursoras da ‘performance’ e conseguiu fazer com que suas obras transcendessem círculos especializados para se integrarem à cultura popular

A artista sérvia Marina Abramovic na Universidade Trabalhista Marinha de Gijón em 2009, após apresentar uma videoinstalação
A artista sérvia Marina Abramovic na Universidade Trabalhista Marinha de Gijón em 2009, após apresentar uma videoinstalaçãoPaco Paredes
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Ela democratizou a performance, um híbrido baseado na improvisação e no contato direto com o espectador. Eliminou as fronteiras entre o corpo e a obra artística, conseguindo que suas experimentações transcendessem os círculos mais especializados para se integrar à cultura popular. A vida de Marina Abramović (Belgrado, 74 anos) é contada tanto nos livros de história da arte como nas páginas de papel couché. A criadora sérvia, agraciada nesta quarta-feira com o Prêmio Princesa das Astúrias das Artes, cultiva todos os gêneros possíveis: instalações, ópera, vídeo ou realidade virtual, ela não deixa nada de lado. Filha de um guarda de elite do marechal Tito, rompeu com o pai e se revoltou contra o regime iugoslavo. Primeiro uma criança complexada com seu aspecto físico, depois uma adolescente silenciosa, na casa dos 20 anos apresentou para um concurso sua primeira peça de arte conceitual.

Fez parte da burguesia vermelha, como ela mesma definiu sua classe social, e acabou assombrando os mesmos marchands que ela detesta. Na Academia de Belas artes de Belgrado, onde estudou entre 1965 e 1979, o mais interessante acontecia fora das salas de aula. Lá foi formado o Grupo 70, um sexteto de criadores que analisavam o trabalho de conceitualistas americanos como Lawrence Weiner e Joseph Kosuth, cujas peças exaltavam mais a palavra do que os objetos. Abramović era a única mulher do grupo. Conheceu seus colegas durante as revoltas estudantis de 1968, nas quais ocuparam o edifício da escola e se manifestaram contra a burocratização do regime iugoslavo. Em sua autobiografia, Abramović define essa época como uma das poucas em que foi realmente feliz: “Tratava-se de transformar a vida em arte”.

Abramovic, de vermelho, durante sua ‘performance’ do ano passado no MoMA.
Abramovic, de vermelho, durante sua ‘performance’ do ano passado no MoMA.SCOTT RUDD

Antes do sucesso, viveu cinco anos em uma caminhonete caindo aos pedaços com seu companheiro e cúmplice criativo, o alemão Frank Uwe Laysiepen, cuja morte por câncer linfático passou despercebida nos primeiros estágios da pandemia de covid-19. “Alguns namorados compravam panelas e frigideiras quando iam morar juntos, Ulay e eu começamos a planejar como fazer arte”, escreveu Abramović. Em 1977, projetaram para uma galeria de Bolonha aquela que talvez seja sua performance precoce mais emblemática. Nus, colocavam-se um de cada lado de um corredor estreito, obrigando o espectador a roçar seus corpos. Em Death self, também daquela época, uniam seus lábios em um beijo, inspiravam e expiravam um na boca do outro até cair desmaiados por falta de oxigênio. “Os limites fazem parte da obra”, lembrou a autora.

Pode-se dizer que sua obra mais popular foi uma performance de 2010 no MoMA, quando a artista ficou 716 horas sentada e em silêncio diante dos diferentes espectadores, que a observavam de um em um —e com quem não podia falar nem gesticular. Ao mesmo tempo, no museu estava sendo realizada uma grande retrospectiva, The artist is present, na qual voltavam a ser “representados” alguns de seus trabalhos clássicos. Foi seu grande desafio ao espectador, para tentar questionar os limites na exposição da arte. Abramović encarna de certa forma a imagem de artista total e entrou no imaginário coletivo do século XXI a tal ponto que rappers como Jay Z a incluíram em seus vídeos e letras.

Uma obra de Marina Abramovic exposta em 2020 na Factum Art, em Madri.
Uma obra de Marina Abramovic exposta em 2020 na Factum Art, em Madri. INMA FLORES

Uma mudança radical

“As pessoas acham, nostalgicamente, que antes as performances eram mais radicais. Você se cortava e se despia, mas agora elas são um processo mais mental. O público podiam ser 10 pessoas, então, na verdade, quase ninguém as viu. Hoje os museus aceitam as performances como o vídeo e a fotografia, mas levou muito mais tempo ganhar respeito. Houve uma mudança radical: quando comecei, queriam me internar em um manicômio porque achavam que estava louca, e hoje me elogiam”, comentou em uma entrevista ao EL PAÍS em 2015. “Na escola me chamavam de girafa, eu odiava meu nariz e tirava notas baixas”, lembrou em outra ocasião sobre sua infância na então Iugoslávia, onde foi criada por seus avós.

Em 1997, apresentou a peça Balkan Baroque na Bienal de Veneza, pela qual recebeu o Leão de Ouro de melhor artista. Em 2005, apresentou no Guggenheim de Nova York Seven easy pieces: em sete noites consecutivas, recreou trabalhos de artistas pioneiros da performance nos anos 1960 e 1970, além de duas obras próprias, Lips of Thomas e Entering the other side (1975 e 2005, respectivamente).

Em 2012, estreou Marina Abramović: a artista está presente, o documentário sobre a retrospectiva do MoMA. Dirigido por Matthew Akers, o longa-metragem foi indicado a melhor documentário no Independent Spirit Awards de 2013 e recebeu o Prêmio do Público de melhor documentário no Festival de Cinema de Berlim de 2012. Dessa experiência surgiu a ideia de criar o Marina Abramović Institute (MAI), um centro de arte em Hudson, Nova York, em que são realizados todos os tipos de eventos culturais, oficinas e exposições relacionados com a arte performática e contemporânea. Em abril de 2012, a artista levou para o Teatro Real de Madri o espetáculo The life and death of Marina Abramović, trabalho no qual colaboraram o encenador Bob Wilson, o ator Willem Dafoe, o cantor transgênero Antony e a artista. O Museu Reina Sofía, em Madri, tem obra de Abramović, e o Centro de Arte Contemporânea (CAC) de Málaga recebeu em 2014 uma exposição de seus trabalhos dos últimos anos.

Em vídeo, jurado anuncia o Prêmio Princesa das Astúrias pelas Artes.Foto: EUROPA PRESS

Em 2016, ela publicou sua autobiografia Walking through walls, lançada em português como Pelas paredes. Em 2018, estreou como encenadora operística com Pelléas et Mélisande na Ópera de Flandres. Em 2020, estreou Seven Deaths of Maria Callas, uma montagem operística em torno da figura da diva; para o mesmo ano, a Royal Academy of Arts havia programado uma retrospectiva sobre a obra da artista sérvia que teve de ser adiada para 2023 devido à pandemia.

O júri deste Prêmio —convocado pela Fundação Princesa das Astúrias— foi presidido por Miguel Zugaza Miranda e integrado por José María Cano de Andrés, María de Corral López-Dóriga, Dionisio González Romero, Blanca Gutiérrez Ortiz, Sergio Gutiérrez Sánchez, Lucas Macías Navarro, Ricardo Martí Fluxá, Fernando Masaveu Herrero, Hans Meinke Paege, Helena Pimenta Hernández, José María Pou Serra, Sandra Rotondo Urcola, Benedetta Tagliabue, Patricia Urquiola Hidalgo, Tadanori Yamaguchi, Aarón Zapico Braña e Catalina Luca de Tena y García-Conde, marquesa do Vale de Tena (secretária). Esta candidatura foi proposta por María Sheila Cremaschi, diretora do HayFestival Segóvia (Hay Festival of Literature and Arts, Prêmio Princesa de Astúrias de Comunicação e Humanidades 2020).

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