Jodie Foster: “Adoro falar de política, não gosto do cinema político”
Ignorado na lista de indicados ao Oscar, ‘The Mauritanian’ rendeu o Globo de Ouro para atriz por sua interpretação da advogada de um preso de Guantánamo
Quando a conexão é ativada, aparece Jodie Foster (Los Angeles, 58 anos) realizando uma careta. É um gesto divertido, quase infantil, que combina com seus fones com microfone ao mais puro estilo gamer, e um pouco menos com seu bagunçado cabelo grisalho. Deve ter se visto na tela. Cumprimenta sorrindo, pega de surpresa, e com sua habitual afabilidade começa a conversa. Foster aparece pouco, não porque fuja da imprensa, e sim por sua exaustiva seleção de trabalhos: fez somente 12 filmes nas últimas duas décadas, e deles cinco nos últimos 10 anos. Apesar de ter sido ignorado na lista de indicados ao Oscar de 2021, The Mauritanian, em que interpreta a advogada de um encarcerado da prisão norte-americana de Guantánamo, a devolveu aos cartazes e às premiações, com um Globo de Ouro de melhor atriz coadjuvante. E isso porque não é atraída pelos filmes políticos. “Adoro falar de política, não gosto do cinema político. Os personagens costumam se diluir na mensagem. Há exceções, como Salvador: O Martírio de um Povo, porque prioriza as pessoas em relação às ideias”, frisa. “Mas li O Diário de Guantánamo, de Mohamedou Slahi, e senti que queria estar nesta viagem. Quero que as pessoas conheçam sua história”.
Sua Nancy Hollander é uma advogada pétrea após anos de disputa contra o rosto mais insidioso do sistema judicial norte-americano. E por isso, perfeita para encarar a defesa do mauritano Mohamedou Ould Slahi, que ficou 14 anos preso em Guantánamo, a cadeia da base localizada em solo cubano, e anteriormente mais um entre o Afeganistão e a Jordânia, após ser preso em sua casa na Mauritânia. Tudo sem ter sido acusado de nenhum crime. Slahi, símbolo da injustiça da prisão, foi libertado três meses antes do fim da presidência de Barack Obama, e já era famoso porque aprendeu inglês escutando seus carcereiros e porque em 2005 escreveu em sua cela de isolamento O Diário de Guantánamo, compilação dos abusos que sofreu na prisão e que foram confirmados em investigações oficiais. O livro foi publicado em janeiro de 2015, após o Governo norte-americano censurar mais de 2.500 palavras “por segurança”.
Slahi era perseguido pela sombra de ser integrante da Al Qaeda. Motivo? Quando morou na Alemanha e no Canadá recebeu treinamento nos anos noventa em um campo da organização terrorista e combateu o Governo comunista do Afeganistão, à época inimigo dos EUA. O incrível — e é o que conta The Mauritanian, do multifacetado Kevin McDonald — é que em 2010 um juiz federal decretou sua libertação ao aceitar o pedido de habeas corpus feito por Hollander. O Governo norte-americano recorreu e o caso caiu em um labirinto burocrático-judicial até outubro de 2016. “O que me atraiu em Hollander é o fato de ser a mais dura da trama, reservada, enfática... A verdadeira Nancy é mais agradável, e ainda assim intimida bastante. Diria que Slahi a mudou durante seus 15 anos de amizade”, lembra.
Chama a atenção que Foster só tenha interpretado dois personagens baseados em mulheres reais ao longo de uma carreira que começou no final dos anos sessenta como atriz infantil em propagandas, explodiu com Taxi Driver (1976) e confirmou seu talento com Acusados (1988) — primeiro Oscar—, O Silêncio dos Inocentes (1991) — segundo Oscar —, Nell (1994), O Deus da Carnificina (2011) e quatro filmes irrefutáveis como diretora. “É incomum, sim. Esta de The Mauritanian e há tempos a Anna de Anna e o Rei”, lembra. “Na verdade, não gosto dos filmes biográficos, porque eu me relaciono com o cinema através dos personagens e as histórias, e os filmes biográficos costumam centrar-se em fatos e acontecimentos gloriosos”.
Luzes e sombras de Obama
Na divulgação em Madri, em 1999, de Anna e o Rei, ela se confessava desencantada com a indústria. “Certo, época ruim. Desde então mudei tanto em tantas facetas. Acho que agora há mais oportunidades, que os estúdios de Hollywood só se dedicarão às megaproduções, que muito cinema será feito nas plataformas, e não adianta nada chorar”. Isso abrirá “mais caminhos a diretores de filmes indies”. E sabe do que fala: Foster teve muitas dificuldades em levantar cada um de seus projetos como diretora. E mais, a produção de Mentes Que Brilham fazia parte de seu contrato para atuar em O Silêncio dos Inocentes. “Pois bem”, volta à atualidade, “quem prognosticava uma pandemia? Ninguém, e ela acelerou as mudanças, principalmente nos hábitos de consumo. Tenho interesse em ver até onde nos encaminharemos neste verão, quando as salas começarem a abrir”. Voltará a dirigir? “Claro. Certamente, quando interpretamos, os diretores-atores somos os mais disciplinados nas filmagens. Porque sabemos todos os desafios que o diretor enfrenta, e os ajudamos a levar adiante sua visão”.
A prisão de Guantánamo faz parte da face mais sombria da história norte-americana. “Por isso agora, em tempos de reconstrução e reconciliação, precisamos nos conhecer, ver de onde viemos e como mudamos. É o momento de fazermos muitas perguntas, porque somente assim as feridas cicatrizarão”. E The Mauritanian, por sua vez, ilustra a pior faceta da presidência de Obama, da que ele mesmo se arrepende em suas memórias, Uma Terra Prometida. “Começou seu mandato com a promessa de fechá-la, mas suponho que recebeu enormes pressões para mantê-la aberta. Guantánamo é um símbolo da injustiça, porque os EUA criaram um local fora da cobertura das leis, da Constituição. E foi um fracasso. De que adiantou? Por fim, os presos foram enviados aos seus países... Eu mesma não sabia bem o que acontecia lá antes de rodar o filme”.
O que não mudou é sua percepção de Obama. “Foi a maior inspiração de nossa época, vivemos anos de esperança. Mas é verdade que se você toma conhecimento de casos como o de Slahi percebe que há uma mancha”. E acrescenta: “Entendo que os europeus têm uma perspectiva muito diferente do 11 de Setembro, e que nos EUA o público verá The Mauritanian de outro modo. McDonald entendeu rapidamente: os militares não são os malvados, e sim pessoas que reagem aos acontecimentos, às ameaças e aos medos. Ainda que seus sentimentos provoquem reações catastróficas no restante do planeta. Sou uma atriz, afinal, não uma política”.
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