Trinta anos de fascínio por Hannibal Lecter
‘O silêncio dos inocentes’ mudou a história do cinema de terror em 1991. O filme ganhou os cinco principais Oscars e consagrou seus criadores: Anthony Hopkins, Jodie Foster e Jonathan Demme. “Um pouco de Clarice resta em mim”, admite a atriz ao EL PAÍS
“Começamos a rodar. E, quando Hopkins começou a falar, ele sacou aquele tom e aquele sotaque de Hannibal Lecter... Eu reagi surpreendida, porque nunca o tinha ouvido daquele jeito antes. Quando cortaram, até o técnico de som estava apavorado. Certamente lhe agradeço por não ter me avisado: minha reação foi genuína”, recorda Jodie Foster numa entrevista ao EL PAÍS. Há 30 anos, em 14 de fevereiro de 1991, estreava nos Estados Unidos o filme O silêncio dos inocentes. Foi um thriller de orçamento contido (19 milhões de dólares), que recuperou o investimento em sua primeira semana nas salas norte-americanas (acabaria superando os 272 milhões de dólares no mundo todo), e que em março de 1992 se tornou o terceiro e até agora último longa-metragem na história a ganhar os cinco Oscars principais: filme, direção, roteiro —no caso, adaptado—, ator e atriz. E, sobretudo, criou no audiovisual a imagem moderna do psychokiller, o assassino serial psicopata que Lecter transformou em um sujeito refinado, inteligentíssimo e gélido.
Hoje poucos se lembram, mas O silêncio dos inocentes é uma sequência. Em 1986, Michael Mann adaptou em Caçador de assassinos o primeiro romance da saga de Lecter escrita por Thomas Harris, Dragão Vermelho, publicado cinco anos antes. Era a primeira aparição do canibal Hannibal, encarnado por Brian Cox (nesse filme, o sobrenome de Hannibal é Lecktor, e ainda hoje ninguém deu uma explicação para a mudança). Foi um fracasso, e Dino Di Laurentiis, o produtor, decidiu não comprar os direitos cinematográficos de O silêncio dos inocentes quando esse volume foi lançado, em 1988. Quem o fez foi Gene Hackman, que poderia ter dirigido o filme e interpretado o protagonista, mas sua filha lhe advertiu que já vinha de muitos personagens violentos seguidos. Então seu amigo Arthur Krim, da produtora Orion Pictures, sócio dele na compra dos direitos, ficou sozinho no projeto. Diz a lenda que Paul Verhoeven recebeu uma oferta para encabeçar o projeto, mas hoje parece impossível que O silêncio dos inocentes fosse dirigido por outro realizador que não Jonathan Demme, que afinal de contas começou com Roger Corman. “Mexeu com tudo, e com sucesso. Na verdade, não era possível de etiquetar, exceto por dizer que não parecia ser muito americano. Estava como fora do resto do mundo”, recordava Chema Prado, ex-diretor da Filmoteca Espanhola e amigo do cineasta nova-iorquino, quando do falecimento deste, em 2017.
Sean Connery recusou-se a encarnar Lecter, e os produtores então pensaram em Anthony Hopkins, graças à sua interpretação do médico em O homem elefante (1980). Como lhe explicou Demme, “o doutor Treves é um homem bom, assim como Lecter, mas este está preso em uma mente doentia”. Para Clarice Starling, Demme propôs o nome de Michelle Pfeiffer, com quem acabava de trabalhar em De caso com a máfia. A atriz, com reticências em relação à personagem, resolveu dobrar a aposta: faria o papel por dois milhões de dólares. Essa quantia desequilibrava o orçamento, e a próxima na lista, Jodie Foster, que vinha de ganhar o Oscar com Acusados, topou o desafio. “Lutei por aquele papel”, recorda. “Tivemos uma entrevista, e ao final eu disse que ele seria meu. Jonathan gostou da minha determinação.” Foster ainda arrancou da Orion o compromisso de produzir seu primeiro filme como diretora: Mentes que brilham.
“Daquela rodagem, e logo depois da divulgação, ficou a imagem de um Hopkins muito humilde. Ele era um ator veterano, shakespeariano, eu era jovem, em pleno crescimento pessoal. E ele uma baita humildade. Tanta que me perguntei se não estaria atuando. Que nada! Ele é assim”, comenta Foster. A entrevista acontece, por teleconferência, dias depois da efeméride e de a revista Variety publicar uma conversa digital entre os dois atores, na qual Hopkins admitia também estar intimidado naquele primeiro dia de filmagem diante dela. “É verdade que aí se nota que nos gostamos, que nos respeitamos”, confirma a atriz. “Minha carreira, para o público, ficou ligada à dele, e é uma honra.” Na tela, o assassino sentenciado Lecter e a jovem agente do FBI Starling compartilham apenas quatro sequências; mais ainda, Hannibal só aparece durante 24 minutos e 52 segundos. Porque, na verdade, O silêncio dos inocentes conta a corrida para capturar outro assassino, Buffalo Bill (personagem que na época motivou queixas da comunidade LGBTI). Mas o coração da trama é impulsionado pela relação entre o homem que comeu o fígado de um recenseador, “acompanhado de favas e de um bom Chianti”, e a agente de “bolsas boas e sapatos baratos”.
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Harris baseou essa estranha amizade na do criminologista Robert Keppel e do famosíssimo serial killer Ted Bundy, que ajudou Keppel a investigar os crimes do assassino de Green River, em Washington. Hopkins criou Lecter como uma mistura de um amigo seu londrino que não piscava ao falar, um réptil (piscam quando querem) e HAL 9000, o computador de 2001: Uma odisseia no espaço, frio, inteligente e consciente de tudo que o cerca. Foster passou um tempo com uma agente do FBI, de quem aproveitou a ideia do choro em pé ao lado do carro, para descarregar a tensão.
Com sua violência implícita, com uma direção de arte —assinada por Kristi Zea— baseada em parte nos quadros de Francis Bacon, O silêncio dos inocentes é, ainda que alguns neguem, um filme de terror. Ao final de uma sessão em outubro de 1990 na convenção ShowEast, houve um silêncio sepulcral na plateia. Ted Tally, o roteirista, virou-se para Demme e lhe perguntou: “Não acha que talvez o filme provoque medo demais?”. Mesmo assim, a Orion decidiu adiar a estreia até fevereiro de 1991 para não atrapalhar a divulgação de outra de suas joias, Dança com lobos. Por isso, quando em março de 1992 ganhou os cinco Oscars (de sete indicações), tornou-se o primeiro filme a conquistar a estatueta principal depois de ser lançado em vídeo, e o único de terror a conseguir esse feito.
Thomas Harris não quis participar do roteiro. Estava escrevendo o terceiro dos quatro romances da saga de Lecter, Hannibal, e não queria que a interpretação de alguém contaminasse o seu personagem. Mas, acabada a temporada de prêmios, enviou a cada ganhador uma garrafa de vinho. Embora Hopkins tenha voltado a encarnar Lecter, Foster não retomou Starling: no cinema, foi substituída por Julianne Moore. Agora está sendo exibida nos EUA a série Clarice, que se passa um ano depois de O silêncio dos inocentes. Foster admite: “Não vi, mas fico contente de que Clarice inspire tantas adaptações. É uma personagem maravilhosa. Foi criada por Harris, todas as atrizes a interpretamos à sua medida. Mas eu a amo, um pouco de Clarice resta em mim”.
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