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Para que dormimos? O que a neurociência sabe e ainda desconhece da necessidade de dormir

Privação do sono impede a fixação das lembranças, a limpeza do cérebro e acelera a deterioração cognitiva

Crianças do ensino primário dormem no ginásio de sua escola em Wuhan (China) durante a soneca do meio-dia, em uma imagem feita em setembro.
Crianças do ensino primário dormem no ginásio de sua escola em Wuhan (China) durante a soneca do meio-dia, em uma imagem feita em setembro.PENG NIAN (Barcroft Media via Getty Images)
Miguel Ángel Criado

Em um experimento publicado em 1995, duas centenas de indivíduos estavam sobre esteiras que começavam a se mover quando um eletroencefalograma detectava que começavam a ter sono. No final da esteira havia um balde cheio de água. Nos casos mais extremos, foram privados de 99% do tempo de sono. Após alguns dias começaram a comer compulsivamente e, entretanto, perdiam peso. Seu ritmo metabólico havia disparado a 200% e tinham úlceras na pele. Seu sangue tinha níveis anormais de neurotransmissores e hormônios, como a noradrenalina e a tiroxina. Duas ou três semanas depois, todos morreram. A pesquisa foi feita com ratos de laboratório, evidentemente, mas mostra que não se pode viver sem dormir. A ciência está achando mais complicado saber para que o sono serve.

A revista Science publicou na semana passada uma série de artigos com as últimas coisas que se sabe sobre o sono. Umas das verdades científicas é a universalidade da necessidade de dormir. Que um animal feche os olhos e entre em um estado de inconsciência que o expõe aos perigos da noite não parece uma boa ideia. De modo que, do ponto de vista evolutivo, alguma função essencial deve ter. Há poucas espécies que são capazes de dormir não completamente, como os golfinhos, que relaxam um hemisfério cerebral, fechando o olho desse lado, enquanto o outro continua aberto e acordado. Outros, como as fragatas pelágicas, são capazes de voar dormindo durante dias. Mas a maioria precisa de um número determinado de horas e, se não as tiver nessa noite, as terá na próxima, com maior duração e intensidade.

Não se pode fazer experimentos tão extremos com os humanos como o que inicia este artigo. De fato, já não podem ser feitos sequer com animais. Mas com os realizados, enquanto as normas éticas eram menos exigentes, a conclusão geral é que a privação do sono tem um impacto generalizado no organismo, das capacidades cognitivas ao modo de caminhar.

Evolutivamente, parece que o sono se preserva muito bem, o que implica uma função básica essencial à vida”
Nick Franks, professor do Imperial College de Londres

Estudos em ratos, por exemplo, demonstraram que os que ficavam sem dormir eram incapazes de lembrar como chegar ao local em que horas antes conseguiram comida. Outro trabalho, com humanos, demonstrou no ano passado que o tempo de reação ao volante era maior nos que não haviam dormido na noite anterior do que entre os que superavam a taxa permitida de álcool. Uma pesquisa, essa correlacional, revelou meses atrás que a incidência de demência entre 8.000 funcionários britânicos quando se aposentaram era maior entre os que reconheceram ter dormido seis horas ou menos nas décadas passadas. Outro trabalho, esse do MIT, demonstrou na semana passada que os estudantes que dormiam menos tinham um caminhar pior em uma esteira ergométrica. E há estudos com roedores que demonstraram que deixá-los sem dormir debilita seu sistema imunológico.

O professor do Imperial College de Londres Nick Franks, que participou dessa edição especial da Science, diz que a necessidade de dormir deve ter uma base biológica muito forte. “Evolutivamente, parece que o sono se preserva muito bem, o que implica uma função básica essencial à vida. De modo que, quando nos privamos de sono, todo tipo de coisas relacionadas com nossa saúde e nosso comportamento são prejudicadas. Qual é o mecanismo básico que rastreia quão cansado está o cérebro e quando o sono deve ser ativado continua sendo um grande mistério”, diz.

E sabemos mais do mal causado ao cérebro ao não dormir do que os benefícios de fazê-lo. É um dos paradoxos da ciência do sono: as provas sobre as consequências negativas da privação do sono se acumularam, mas há mais hipóteses do que evidências sobre as vantagens de uma boa noite dormindo. A resposta mais simples e habitual é que, como outras partes do corpo, o cérebro precisa descansar após um duro dia recebendo todos os tipos de estímulos. O problema com essa analogia é que a atividade cerebral não cessa quando se dorme, só é diferente.

O cérebro ensaia durante o sono o que aconteceu na vigília. Acreditamos que esse processo de reativação permite o reforço gradual das lembranças ao longo do tempo”
Gabrielle Girardeau, pesquisadora do Instituto Fer à Moulin (Paris, França)

A pesquisadora Gabrielle Girardeau, do Instituto Fer à Moulin (Paris, França), é a autora do experimento com os ratos que se esqueceram de onde ir para procurar comida. “Nos seres humanos sabemos que a falta de sono é prejudicial às recordações. Nos animais, essa privação também afeta a consolidação da memória”, diz por e-mail. E sabendo o efeito negativo de não dormir, assinala o positivo de fazê-lo. Girardeau lidera um laboratório centrado em como o sono fixa o que aprendemos.

“Basicamente, o cérebro ensaia durante o sono o que aconteceu na vigília”, comenta a cientista francesa. “Acreditamos que esse processo de reativação permite o reforço gradual das lembranças ao longo do tempo. Particularmente, o hipocampo, que é uma estrutura crucial à memória de eventos contextualizados (o que, onde, quando ocorreu), reativa padrões neuronais de vigília durante o sono, em eventos curtos coordenados chamados ondas [ripples no original em inglês]”. Foi nas ripples que a equipe de Girardeau interferiu para que os ratos não lembrassem. “Essas ondas ajudam a fortalecer a marca das recordações e também permitem que o hipocampo se comunique com outras partes do cérebro, como o córtex e a amígdala, para associar, por exemplo, um valor emocional a uma lembrança e para transferir seus detalhes ao córtex para seu armazenamento a longo prazo”, detalha. E tudo isso não pode ser feito acordado com os estímulos do exterior não parando de chegar.

A consolidação das recordações não é a única missão do sono, mesmo sendo a melhor demonstrada. Laura D. Lewis é especialista em neuroimagem no Departamento de Engenharia Biomédica da Universidade de Boston (Estados Unidos). “Aneurociência do sono demonstrou que não há uma razão única pela qual dormimos: o sono tem efeitos incrivelmente amplos no cérebro e afeta tudo, dos processos moleculares à cognição de altonível”, diz.

Uma área recente de pesquisa, em que Lewis trabalha, está demonstrando que uma das funções de dormir é tirar o lixo do cérebro. “Estudos com roedores demonstraram que são eliminados vários metabolitos durante o sono”, diz Lewis. “Muitos desses metabolitos são gerados pelos neurônios durante a vigília, quando produzem diversos tipos de moléculas de forma natural enquanto consomem energia e realizam suas funções habituais. É o caso da beta amiloide, que se ficar acumulada e se juntar, aparece relacionada à doença de Alzheimer”, acrescenta.

Observaram um processo duplo: durante o sono, os dejetos da atividade cerebral são evacuados pelo líquido cefalorraquidiano e o fluido intersticial, ao mesmo tempo em que os neurônios produzem menos dejetos do que estando acordados. É como nos grandes edifícios de escritórios, a limpeza é feita de noite, quando os outros trabalhadores não estão. Nesse sentido, o sono manteria a saúde fisiológica neuronal.

Se dormir, portanto, tem tantos benefícios, por que se dorme tão pouco e mal? Heather Schofield é cofundadora do Laboratório de Desenvolvimento da Conduta da Faculdade de Medicina da Universidade da Pensilvânia (Estados Unidos) e pesquisa as dimensões sociais do sono. “A maioria dos estudos de laboratório demonstraram os efeitos positivos do sono”, diz. Mas em sua contribuição ao especial da Science também lembra que os indivíduos, por necessidades profissionais e pessoais, podem preferir dormir menos. “Algumas pessoas podem decidir que vale a pena fazer concessões e dormir menos do que o recomendado pelos especialistas”.

Na Espanha, a média de tempo que os adultos dormem é de sete horas. O médico Javier Puertas, vice-presidente da Sociedade Espanhola do Sono (SES), lembra que um terço dos idosos dorme menos do que essa quantidade, existindo também uma clara diferença entre campo e cidade, em que os moradores urbanos dormem pior. “O sono tem uma imagem de atividade improdutiva. Há certa mitologia de que os inteligentes, produtivos, os bem-sucedidos dormem menos”, diz Puertas. Além disso, em países como esse, os horários tardios não ajudam e o uso de telas piorou as coisas. “Há 80 transtornos do sono reconhecidos”, diz Puertas, que finaliza com uma pergunta: “Alguém se lembra de Un globo, dos globos, tres globos? [Era um programa infantil da RTVE da Espanha dos anos setenta] Mandava as crianças para a cama às oito da noite. Que criança se deita a essa hora hoje?”.

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