Colchicina, do papiro egípcio a possível tratamento contra o coronavírus

Estudo preliminar, que envolve o Brasil, mostra que remédio milenar e relativamente barato pode reduzir hospitalizações em 25%. Resultado anima cientistas, que também alertam para contraindicações

Profissional de saúde trabalha na UTI no hospital universitário de Milton Keynes, na Inglaterra, em 20 de janeiro.
Profissional de saúde trabalha na UTI no hospital universitário de Milton Keynes, na Inglaterra, em 20 de janeiro.TOBY MELVILLE (Reuters)
Manuel Ansede

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A humanidade perdeu sua capacidade de assombro no último ano, mas ainda há lugar para boas as surpresas. Há quase um século e meio, em 1873, o egiptólogo alemão Georg Ebers percorria o Alto Egito quando se deparou com um tesouro nas mãos de um antiquário cristão: um papiro de 3.500 anos, com quase 19 metros de comprimento quando desenrolado, que continha todo o conhecimento médico da época do faraó Amenofis I. Entusiasmado, Ebers adquiriu o papiro e o enviou imediatamente à Universidade de Leipzig, onde ainda é conservado. Esse documento, hoje conhecido como Papiro Ebers, descrevia 80 doenças e seus possíveis tratamentos, incluindo o açafrão silvestre como remédio contra inchaços. Um derivado desta planta medicinal, a colchicina, é agora uma esperança contra a covid-19.

Resultados preliminares de um ensaio internacional apontam que a colchicina, se administrada muito prontamente em pacientes recém-diagnosticados, reduz as hospitalizações em 25% —o estudo foi feito com mais de 4.000 pacientes de Brasil, Canadá, EUA, Espanha, África do Sul e Grécia. O medicamento também parece reduzir em 50% a necessidade de ventilação mecânica e em 44% as mortes por covid-19, embora essas cifras se baseiem em um menor número de casos, razão pela qual é mais difícil tirar conclusões. São dados que, além disso, precisam ser encarados com cautela, porque estão pendentes de revisão para sua publicação em uma revista científica. “O benefício está aí. E é um fármaco que tem um preço irrisório. Um tratamento de um mês custa uns três euros [no Brasil, uma caixa com 30 comprimidos é vendida a menos de 20 reais]”, afirma José Luis López-Sendón, cardiologista do hospital La Paz, em Madri, e pesquisador principal do ramo espanhol do estudo, com 250 pacientes.

Como já proclamava o papiro egípcio há 3.500 anos, a colchicina tem propriedades anti-inflamatórias. O açafrão silvestre é usado contra crises de gota desde os tempos do médico bizantino Alexandre de Trales, por volta do ano 600, e a colchicina continua sendo um tratamento de referência contra esse tipo de artrite. A hipótese dos pesquisadores é que esta conhecida atividade anti-inflamatória também controle a chamada tempestade de citocinas, uma reação desenfreada que aparece em alguns pacientes com covid-19 e pode ser letal.

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O ensaio clínico incluiu mais de 4.000 voluntários maiores de 40 anos, todos com covid-19 confirmada e algum fator de risco, como hipertensão, obesidade ou doença cardíaca. Os participantes tomaram basicamente um comprimido por dia durante um mês, em suas casas. O diretor da pesquisa internacional, Jean-Claude Tardif, do Instituto de Cardiologia de Montreal (Canadá), afirmou em um comunicado em 22 de janeiro que a colchicina é “o primeiro medicamento oral do mundo cujo uso poderia ter um impacto significativo na saúde pública e, potencialmente, prevenir as complicações da covid-19 em milhões de pacientes”.

A comunidade científica é muito cética quanto a afirmações desse tipo, sem nenhum estudo publicado que as avalize, sobretudo depois dos sonoros fracassos de outros fármacos promissores, como a hidroxicloroquina e o remdesivir. O cardiologista Alberto Cecconi, entretanto, é otimista. “A colchicina é usada há séculos na medicina, mas não deixa de surpreender. É um fármaco que foi resgatado da Antiguidade e agora está tendo mais aplicações”, diz esse médico italiano, do Hospital Universitário de La Princesa, em Madri. A fórmula química da colchicina é C22H25NO6: 22 átomos de carbono, 25 de hidrogênio, 1 de nitrogênio e 6 de oxigênio.

Fragmento do Papiro Ebers, guardado na Universidade de Leipzig (Alemanha).
Fragmento do Papiro Ebers, guardado na Universidade de Leipzig (Alemanha).Universidad de Leipzig

Cecconi, que não participa do novo estudo, recorda que a própria equipe de Tardif e López-Sendón já publicou em 2019 outro estudo sugerindo que a colchicina melhora o prognóstico dos pacientes depois de um infarto, graças à sua potente atividade anti-inflamatória. “Os fármacos que maior benefício mostraram contra a covid-19 são os corticoides, como a dexametasona. São fármacos anti-inflamatórios. E faz muito sentido que outro fármaco anti-inflamatório, que age por uma via diferente, também tenha sucesso”, opina Cecconi, que dirige outro ensaio em andamento com 250 pacientes, patrocinado pela Sociedade Espanhola de Cardiologia, para determinar se a colchicina também pode ajudar doentes hospitalizados. “A colchicina é como um bombeiro que vai apagando o fogo da inflamação que às vezes acompanha o coronavírus. A inflamação pode ser inclusive pior que a própria infecção pelo vírus”, resume o pesquisador italiano.

O remédio é contraindicado, por exemplo, em caso de insuficiência renal, além de poder interagir negativamente com outros tratamentos. A colchicina deve ser usada apenas sob supervisão médica

Há na Espanha nove ensaios clínicos em andamento para estudar a colchicina como possível tratamento contra a covid-19, segundo o registro da Agência Espanhola de Medicamentos e Produtos Sanitários. Os médicos Mar García Sáiz e Carlos Richard —do Hospital Universitário Marqués de Valdecilla, em Santander, no norte da Espanh— conceberam em março outro ensaio para investigar a eficácia da administração antecipada de colchicina em pacientes maiores de 70 anos, mas só conseguiram 16 voluntários dos 1.000 desejados.

A médica Mar García Sáiz salienta que a colchicina é “um medicamento muito antigo, muito seguro e muito barato”, mas adverte para o perigo da automedicação. O remédio é contraindicado, por exemplo, em caso de insuficiência renal, além de poder interagir negativamente com outros tratamentos. A colchicina deve ser usada apenas sob supervisão médica, salienta a pesquisadora. O ministério espanhol da Saúde, além disso, incluiu em 2004 as sementes de açafrão silvestre na lista de plantas cuja venda ao público está proibida ou restrita devido à sua toxicidade.

Flores do açafrão silvestre no jardim botânico da Universidade de Oxford.
Flores do açafrão silvestre no jardim botânico da Universidade de Oxford. Universidad de Oxford

Um comprimido diário de um remédio barato e seguro seria um tratamento perfeito para prevenir as complicações da covid-19, a se confirmarem os promissores resultados preliminares. O médico José Hernández-Rodríguez, do Serviço de Doenças Autoimunes do Hospital Clínic de Barcelona, comanda outro dos ensaios em andamento, este com 144 pacientes maiores de 65 anos e mais graves, já internados. “Os resultados de Tardif batem muitíssimo com os nossos. Eu acredito”, afirma.

O médico Julio Arrizabalaga, diretor científico do Instituto de Pesquisa Sanitária Biodonostia, encabeça outro pequeno ensaio em San Sebastián (norte da Espanha) para avaliar a eficácia da colchicina contra a covid-19. “É uma medicação barata, bem tolerada, salvo alguns casos de diarreias, e já se conhecia seu efeito teórico para diminuir a tempestade de citocinas. Só faltava demonstrar. É preciso ver o estudo científico completo de Tardif mas, assim que estes dados forem confirmados, seria uma medicação a utilizar contra a covid”, opina.

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