Imagem internacional autoritária é entrave para discurso moderado de Bolsonaro na Cúpula pela Democracia
Em discurso para mais de 100 países, presidente insiste em promover imagem de compromisso com a democracia diante de uma comunidade internacional ciente e preocupada com sua política contra os direitos humanos
Representando um dos governos mais autoritários e antidemocráticos a compor a Cúpula pela Democracia, o presidente Jair Bolsonaro ignorou, em seu discurso no evento promovido pelo presidente norte-americano Joe Biden, os ataques sistemáticos que faz aos direitos humanos, à imprensa e às instituições brasileiras, fundamentais à saúde do Estado democrático de direito.
O chefe de Estado brasileiro defendeu seu suposto compromisso com os direitos humanos, tecendo elogios ao trabalho do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, comandado por Damares Alves. Entretanto, a pasta tem atuado fortemente na política externa para retroceder na agenda de gênero e dos direitos sexuais e reprodutivos, apesar de que o próprio presidente disse defender os direitos humanos “sem qualquer forma de discriminação”.
Ao contrário de países que enalteceram em seus discursos a importância da imprensa livre e independente, Bolsonaro destacou a relevância de todos expressarem suas opiniões na Internet. Em setembro, o presidente apresentou um projeto de lei no Congresso Nacional que visa a dificultar o combate e a exclusão de notícias falsas nas redes sociais. O projeto veio após a tentativa do Executivo de mudar o Marco Civil da Internet por meio de uma Medida Provisória, devolvida pelo Senado Federal e barrada pelo Supremo Tribunal Federal por ser considerada inconstitucional.
Em seu discurso, Bolsonaro ainda enalteceu o trabalho do governo federal na administração pública “transparente e responsável”. Apenas nos últimos meses, seu governo aumentou a decretação de sigilos a documentos oficiais do governo federal; negou por mais de 30 vezes informações à imprensa sobre visitas ao Planalto, a despeito da decisão da Controladoria-Geral da União; e orientou seus ministérios a omitir informações solicitadas via Lei de Acesso à Informação (LAI).
Esta importante lei brasileira e mecanismo fundamental de transparência que acaba de completar 10 anos nunca esteve tão ameaçada quanto sob este governo. Em 2019, um decreto do Executivo tentou aumentar o escopo de autoridades que poderiam decretar grau máximo de sigilo a documentos solicitados via LAI. O decreto foi derrubado pelo Congresso.
No combate à pandemia, é importante lembrar do trabalho deliberado do Ministério da Saúde no apagão de dados sobre a Covid-19 —que só foi possível ser retomado por meio do trabalho do consórcio de veículos da mesma imprensa que Bolsonaro insiste, sistematicamente, em atacar.
A participação na Cúpula convocada por Biden presume a adesão a compromissos comuns em prol do fortalecimento da democracia tanto em níveis domésticos quanto internacionais pelos participantes do evento. Até o momento, não sabemos quais propostas concretas foram enviadas pelo governo Bolsonaro, nem quais serão as medidas adotadas para fortalecer a democracia no país e os mecanismos de acompanhamento dessas propostas e de participação social no âmbito de sua implementação. Para quem exaltou tanto a transparência, o Itamaraty já deveria ter divulgado o documento enviado ao encontro.
Não é uma chancela internacional a participação de Bolsonaro no mais importante evento mundial recente sobre a defesa da democracia. Foi, na realidade, mais um momento de exposição e constrangimento internacional do mandatário brasileiro. A comunidade internacional acompanha e está muito informada sobre os atentados de seu governo contra os direitos humanos, proteções socioambientais e ofensiva contra instituições democráticas. Essa participação hoje deve servir como um novo alerta aos países comprometidos com valores democráticos de que o Brasil, infelizmente, demanda atenção redobrada dados os ataques constantes sofridos por nossa democracia.