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Após Bolsonaro sugerir interferência no Enem, Governo entra no modo ‘redução de danos’

Ministro da Educação, presidente do Inep e o próprio presidente da República deram declarações para tentar diminuir a desconfiança sobre o exame

Portões são abertos para o segundo dia do Enem 2017
Portões são abertos para o segundo dia do Enem 2017Marcelo Camargo (Agência Brasil)

A edição deste ano do Exame Nacional do Ensino Médio será a menos prestigiada da história. Por causa dos impactos da pandemia na educação dos adolescentes brasileiros, mas também pela desorganização dos últimos anos, segundo estudantes ouvidos pelo EL PAÍS. A desconfiança dos aspirantes ao maior vestibular do Brasil aumentou ainda mais depois que 37 servidores do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), autarquia responsável pelo Enem, alegaram interferências indevidas do Governo para entregarem seus cargos a poucos dias da prova, que começa a ser realizada neste fim de semana. E o presidente da República não ajudou ao dizer, na última segunda-feira, que a prova teria “a cara do Governo”. Agora, esse mesmo Governo tenta convencer o país de que o exame merece confiança.

Ainda em viagem ao Catar, Bolsonaro admitiu nesta quarta-feira que não viu as questões que deverão cair nesta edição do Enem. “Não, não vi. Eu não vejo, não tenho conhecimento”, afirmou a jornalistas, dois dias depois de dizer que “começam agora a ter a cara do Governo as questões da prova do Enem”. Quase ao mesmo tempo, aqui no Brasil, Danilo Dupas, presidente do órgão responsável pela prova, comparecia a uma audiência pública no Senado para afirmar que ele também desconhece o conteúdo do exame. “Não tivemos em nenhum momento acesso às provas”, garantiu em videoconferência à Comissão Senado do Futuro. Um dia antes, o ministro da Educação, Milton Ribeiro, já havia declarado que “não há como interferir” no teste, considerado o maior vestibular do país e porta de acesso ao ensino superior. Nesta quarta, ele também prestou esclarecimento a parlamentares —e já foi convocado para fazê-lo uma segunda vez, no dia 8 de dezembro.

A tentativa de reduzir os danos causados pela atrapalhada gestão do exame nos últimos anos é um desafio e tanto. Os 37 servidores que deixaram o Inep alegaram assédio moral, desmonte de diretorias, acúmulo de trabalho e pressão, inclusive sobre a elaboração da prova. Parte deles declarou ao Fantástico, da TV Globo, no domingo, que questões envolvendo contextos sociopolíticos e socioeconômicos foram vetadas. As alegações corroboram os ataques desferidos por Bolsonaro contra a prova antes mesmo de ele assumir a cadeira de presidente. No Enem 2018, Bolsonaro implicou com uma pergunta sobre patrimônio linguístico que usava como texto de apoio um exemplo do Pajubá, identificado como expressão cultural de gays e travestis.

Nesta quarta, outros servidores do Inep encaminharam aos diretores do instituto uma carta de apoio aos colegas que deixaram a instituição, na qual pedem “esclarecimentos oficiais relativos ao posicionamento do Ministério da Educação, responsável pela nomeação da gestão máxima do Inep, quanto a situação de vulnerabilidade em que nos encontramos nesse momento, que repercutirá nas ações do órgão para o ano de 2022, por começarem a ser planejadas e executadas em janeiro, e que nos causa grande preocupação”. “Reafirmamos a situação de fragilidade técnica e administrativa em que se encontra a gestão máxima do Inep e nos solidarizamos com os servidores que solicitaram exoneração/dispensa do cargo em comissão ou função comissionada e/ou dispensa do encargo de substituto(a), evidenciando que os mesmos sempre desempenharam suas funções com alta qualidade técnica, abstendo-se de questões ideológicas, remuneratórias bem como de fundo político-partidário, como pode ser comprovado em toda a conduta dos mesmos durante a permanência nos cargos, sendo que alguns os desempenharam por quase 10 anos”, diz a mensagem.

Em 2019, o Inep criou uma comissão para avaliar o conteúdo do exame e sugeriu retirar do banco de perguntas disponíveis 66 questões, além de trocar o termo “ditadura” por “regime militar”. No Enem 2020, Bolsonaro criticou uma questão que comparava os salários dos jogadores de futebol Neymar e Marta. Embora tenha negado “revisar” a prova antes da aplicação, nesta quarta ele voltou a criticar o conteúdo das questões: “Olha o padrão do Enem do Brasil. Pelo amor de Deus! Aquilo mede algum conhecimento ou é ativismo político? Ou é ativismo também na questão comportamental? Não precisa disso”, declarou no Catar.

As perguntas do Enem são elaboradas por professores selecionados e testadas previamente em escolas pelo Brasil, para nivelar a dificuldade e permitir que possam ser comparadas, mesmo em edições diferentes, seguindo a metodologia da Teoria de Resposta ao Item (TRI). Assim, fazer novas questões implica em uma preparação prévia, testagem e seleção. Alterar o conteúdo da prova também deve seguir critérios técnicos, para que o nivelamento seja mantido. O Enem foi criado em 1998 como certificação do ensino médio. Em 2009, a prova passou a ser elaborada com critérios que a tornaram semelhante aos vestibulares mais concorridos. Em tese, deveria ser imune a interferências políticas.

“O presidente da República colocou gasolina na fogueira quando disse que a prova agora terá a cara do Governo. ‘Dois mais dois são quatro’ não tem cara de Governo em canto nenhum, é ciência”, argumentou o presidente da Comissão de Educação, Esporte e Cultura do Senado, Marcelo Castro (MDB-PI), durante a audiência com Dupas. Mais tarde, o Senado aprovou um pedido de auditoria no Inep, a ser realizado pelo Tribunal de Contas da União (TCU).

Apagando incêndio

Audiência pública no Senado para esclarecer crise no Inep, órgão responsável pelo Enem. Em pronunciamento via videoconferência, está o presidente da autarquia, Danilo Dupas.
Audiência pública no Senado para esclarecer crise no Inep, órgão responsável pelo Enem. Em pronunciamento via videoconferência, está o presidente da autarquia, Danilo Dupas.Roque de Sá/Agência Senado

Aos senadores, o presidente do Inep, Danilo Dupas, minimizou as denúncias de interferência. Citando a TRI, disse que a exclusão dos itens seria “comum”. “A prova possui um conjunto de questões com diversos níveis de dificuldade”, declarou. “É comum, portanto, que durante a montagem tenha itens que são colocados e itens que são retirados, justamente para garantir o nivelamento das provas. Os itens utilizados para a elaboração do Enem 2021 já estavam prontos e disponíveis no Banco de Itens, pois foram produzidos em gestões anteriores. Não há qualquer interferência no processo de montagem do Enem 2021″, assegurou.

Dupas tentou traduzir que “cara” seria a do Governo, conforme declaração do Bolsonaro. “A cara do nosso Governo, no caso, da nossa gestão e do senhor ministro Milton Ribeiro, é da seriedade e transparência. Não houve interferência do Palácio do Planalto em decidir ou escolher qualquer item da prova ou tema de redação. Não houve qualquer tipo de interferência nisso.” A explicação foi reverberada pelo próprio ministro da Educação na Comissão de Educação da Câmara dos Deputados. “O Enem tem a cara do Governo, no sentido de competência, honestidade, seriedade, essa é a cara do Governo. Nós não temos nenhum ministro preso, nós não temos nenhum caso de corrupção, é isso que é importante”, disse Milton Ribeiro, que deve voltar à Câmara no dia 8 de dezembro para prestar esclarecimentos sobre as denúncias de assédio moral e os pedidos exonerações ocorridos no Inep, desta vez à Comissão de Fiscalização Financeira e Controle.

Ainda há pontos obscuros nas denúncias dos servidores. Entre eles, a presença de um policial federal, em 2 de setembro, na sala onde ficam armazenadas as questões e a prova do Enem. O local, chamado de “ambiente seguro”, tem acesso restrito e sem conexão à internet. “Por que esse agente estava ali? Por que a presença foi excluída do sistema eletrônico de informação?”, indagou o deputado Israel Batista (PV-DF), presidente da Frente Parlamentar Mista de Educação. “A PF foi averiguar o ambiente seguro”, falou Dupas. “Houve uma ampliação do espaço e a PF foi lá conferir.”

Ao EL PAÍS, servidores confirmaram que houve realmente uma ampliação do espaço, destinado a outros exames produzidos no Inep. Entretanto, as salas não são conectadas, e o policial federal esteve dentro do espaço destinado ao Enem —e seu registro foi excluído. Além disso, servidores foram chamados para dar “entrevista” a um diretor do Inep, tendo que responder perguntas vagas como “O que você faz?” e “Não acha que tem muita gente nessa área?”, sem que os motivos desses questionamentos tenham sido esclarecidos.

“Não é adequado, não é de bom tom e não é juridicamente correto que um órgão que produz dados que, em última análise, permitam uma avaliação do Governo tenha tamanha submissão. É uma confusão profunda, comum neste Governo, entre política e técnica”, criticou o deputado Batista. “Vivemos dentro do Inep um clima de desconfiança, insegurança e insatisfação generalizada com a gestão”, afirmou Alexandre Retamal, presidente da Associação de Servidores do Inep (Assinep). Ele defendeu a autonomia da gestão, para que servidores possam produzir estatísticas sobre as políticas públicas, além do Enem.

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