Pandemia, trabalho e ‘desorganização’ do Enem estão por trás das histórias de quem desistiu da prova este ano
O número de candidatos confirmados nesta edição é o menor desde 2005: 3,1 milhões, muito abaixo do recorde já atingido em 2014, com 8,7 milhões
Vinicius Carvalho do Ó, 21 anos, é rápido e atento. Distribui frutas e verduras sobre os balcões de um supermercado na Zona Sul de São Paulo, andando para lá e para cá, em compasso mais acelerado que a trilha sonora matutina dos auto-falantes. Sob o uniforme, que inclui boné, máscara e rede para o cabelo, guarda o sonho de um dia se tornar um profissional da comunicação esportiva e cultural, pela paixão que tem por futebol e artes. A rapidez e a atenção cairiam muito bem no dia a dia de uma redação. O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), marcado para os próximos finais de semana, em 21 e 28 de novembro, poderia ser sua porta de entrada no ensino superior. Com a nota, ele pode disputar uma vaga em diversas universidades públicas do país por meio do Sistema de Seleção Unificado (Sisu), “se formar e mudar de vida”, como costuma dizer. Mas ele não vai fazer o Enem este ano. “Não fosse pela pandemia, eu faria.”
Vinicius se formou no ensino médio em 2017 e, desde então, focou no trabalho. A renda ajuda a pagar as contas da casa onde mora com os avós, a mãe e um irmão de sete anos. A ideia era voltar a se preparar para o Enem neste ano. “Mas a pandemia veio para atrapalhar tudo o que eu havia planejado”, desabafa. Com os sonhos interrompidos, segue a rotina como repositor.
Esta é a segunda edição do Enem sob a pandemia de covid-19. A primeira ficou marcada pela adaptação ao ensino remoto, pelo adiamento da realização da prova de novembro para janeiro e, depois, pelo recorde de abstenção: mais da metade (55,3%) dos alunos faltaram ao exame impresso, e 71,3% ao digital, que era oferecido pela primeira vez.
Os acontecimentos impactaram Vinicius. Para fazer a prova, ele precisaria retomar os estudos, mas não conseguiu. E não foi o único candidato a desistir de prestar a prova, permeada por incertezas neste ano. O número de candidatos confirmados nesta edição é o menor desde 2005: 3,1 milhões, muito abaixo do recorde já atingido pela prova em 2014, com 8,7 milhões.
As incertezas se ampliaram nas últimas semanas com a debandada de servidores do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), autarquia responsável pela realização do Enem e que é ligada ao Ministério da Educação (MEC). Trinta e sete funcionários, entre eles coordenadores e diretores de áreas, entregaram seus cargos em protesto às denúncias de assédio moral, desmonte de diretorias, acúmulo de trabalho e pressão. O Ministério da Educação (MEC) garante que a prova será realizada normalmente. “Mesmo diante dos desafios e sabendo da magnitude dos exames, reforço que as aplicações estão garantidas. Repito: reforço que as aplicações estão garantidas”, assegurou o presidente do Inep, Danilo Dupas, em audiência na Comissão de Educação da Câmara dos Deputados na quarta-feira (10).
Porta de entrada para o ensino superior
O Enem é considerado o maior vestibular do país e sua importância atinge tanto universidades públicas quanto privadas. Por isso, qualquer impacto neste exame reverbera por todo o ensino superior.
É com a nota do Enem que o estudante pode disputar uma vaga em instituições públicas por meio do Sistema de Seleção Unificado (Sisu), uma plataforma em que o aluno se inscreve em cursos e universidades diferentes com o desempenho de uma só prova. O sistema fica aberto por um período e a seleção é dinâmica —a nota de corte aumenta ou diminui conforme os candidatos vão se inscrevendo. Ao aluno, é permitido trocar a opção até o encerramento do prazo. A plataforma tornou acessível o ingresso em universidades variadas, sem que o estudante precise viajar para fazer cada vestibular. Além de ofertar vagas no Sisu, há federais que mantiveram os vestibulares próprios, e usam a nota do Enem como primeira fase de seleção ou para compor o desempenho geral do candidato.
Nas particulares, o Enem também é critério de seleção, e algumas faculdades usam a prova em substituição ao vestibular tradicional. Outras revertem o desempenho em desconto nas mensalidades.
O Enem é usado, ainda, em programas de acesso ao ensino superior, como o Universidade para Todos (Prouni) —que dá bolsas de estudos em universidades privadas— e o Financiamento Estudantil (Fies), que dá crédito para pagamento de mensalidades para quem tem renda familiar per capita de até 3 salários mínimos.
“Esses programas representam a democratização do acesso à educação superior”, afirma Sólon Caldas, diretor-executivo da Associação Brasileira das Mantenedoras do Ensino Superior (Abmes). “No Brasil 88% das instituições são privadas e elas concentram 75% de matrículas. Quem tem recurso próprio para investir na educação já está estudando. A grande maioria dos alunos que não está estudando precisa de política pública para ter acesso ao ensino superior”, defende.
“Na prática, a única chance que um estudante pobre tem de estudar Medicina, que tem uma das mensalidades mais caras, é por meio do Prouni, que dá bolsa de 100% conforme a renda do aluno. Como ele pagaria uma mensalidade de 8 a 12.000 reais? Nem por financiamento estudantil, porque desde 2015 o governo deixou de financiar 100% da mensalidade”, pondera.
Como o número de bolsas do Prouni tem relação direta com o número de pagantes nas privadas, a oferta têm caído. “De um lado, houve uma evasão grande por quem foi prejudicado [financeiramente] pela pandemia. Por outro, muitas das pessoas deixaram de ingressar na faculdade”, afirma. O incentivo à formação universitária não está entre as prioridades do Governo Jair Bolsonaro. Em agosto, o ministro da Educação, Milton Ribeiro, afirmou que a universidade “deveria ser para poucos” e que o caminho para o Brasil seria investir mais em formação técnica.
Desilusão
Frente aos desafios, a situação dos alunos no Brasil é de desilusão. “Eles estão desesperançosos e com receio de fazer a prova [do Enem] até por conta da pandemia. Foi necessário convencer vários dos totalmente vacinados a frequentar inclusive a escola”, afirma o professor Diogo Canhadas, 35, que dá aulas na rede pública estadual de São Paulo, e no Senac. O impacto se reflete até entre os mais novos. “Eu perguntei aos alunos do primeiro ano do Ensino Médio o que pensam sobre isso, e eles disseram que não fariam a prova se fosse a vez deles —também porque é como se tivessem ficado fora da escola por quase dois anos. Então, para todos os alunos, temos estes dois aspectos: o temor de como se comportaria a pandemia até a data do Enem, e o preparo que realmente tiveram neste período”, diz.
Toda essa insegurança se manifesta em episódios de ansiedade em Tainara Sousa, 20 anos. O quadro, que já existia, se agravou com a chegada da pandemia, e se intensificou ainda mais neste ano. Em 2020, ela deveria concluir o terceiro ano do ensino médio na rede pública da Bahia, mas não teve nenhuma aula, nem remota —sem coordenação do MEC, cada Estado e município respondeu de uma forma ao desafio na educação, e nem todos conseguiram se estruturar com as plataformas online. É quando a falta de política pública reverbera nas vidas privadas. “Nunca me vi sem estudar e entrei em desespero”, conta.
Neste semestre, entrou no cursinho pré-vestibular do Quilombo Educacional Gbesa, que prepara alunos negros para ingressar no ensino superior usando uma metodologia de resgate da auto-estima e da ancestralidade. A abordagem não foi suficiente para ancorar os sonhos da jovem. Com o passar do tempo e a proximidade da prova, a ansiedade piorou. “Eu ficava pensando com minha mente: tenho que entrar na faculdade, tenho que entrar na faculdade. E todo mundo perguntando: e aí a faculdade? e aí o Enem?”.
Tainara se divide entre o medo de passar e não conseguir cursar o ensino superior devido ao quadro de saúde mental, e também o de não passar e ficar ainda mais insegura para a prova do ano que vem. Por isso, não irá fazer o Enem desta edição. Tivesse tido aulas, conta, a situação poderia ser melhor. “Os outros pensam que pessoas pretas e periféricas não são boas, mas elas são mais dedicadas e inteligentes, só não têm a mesma chance de estudar sem se preocupar”, analisa.
Foco em outros vestibulares
Em Itapevi, região metropolitana de São Paulo, Maria Luiza Vieira Ferreira, 17 anos, desistiu do Enem por outro motivo: a desorganização da edição passada. “Na minha cabeça, este ano vai ser pior”, aposta, desiludida. “E optei por não fazer o Enem. O Inep sempre dá um migué [desculpa], mas sempre tem problema, questões da prova vazando, sala lotada… e eu não quero esses problemas me atrapalhando este ano”, afirma, citando casos de edições passadas.
O foco dela está na Fuvest, o vestibular da Universidade de São Paulo (USP), onde quer estudar Biomedicina. A inspiração ficou ainda maior quando descobriu que foi a biomédica brasileira Jaqueline Góes de Jesus quem liderou a equipe que sequenciou o DNA do coronavírus. “Quando soube, aquilo me encheu os olhos!” Motivada, ela está concluindo o ensino médio em uma escola privada, e faz o preparatório para o vestibular pelo projeto Maratona do Enem, uma iniciativa bancada pela prefeitura de Itapevi, que atende 500 alunos gratuitamente. Apesar da estrutura, também enfrenta dificuldades. “Começar a estudar é fácil, difícil é manter o foco. Não vejo a hora disso tudo acabar”, desabafa, cansada.
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