Após Bolsonaro sugerir interferência no Enem, Governo entra no modo ‘redução de danos’
Ministro da Educação, presidente do Inep e o próprio presidente da República deram declarações para tentar diminuir a desconfiança sobre o exame
A edição deste ano do Exame Nacional do Ensino Médio será a menos prestigiada da história. Por causa dos impactos da pandemia na educação dos adolescentes brasileiros, mas também pela desorganização dos últimos anos, segundo estudantes ouvidos pelo EL PAÍS. A desconfiança dos aspirantes ao maior vestibular do Brasil aumentou ainda mais depois que 37 servidores do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), autarquia responsável pelo Enem, alegaram interferências indevidas do Governo para entregarem seus cargos a poucos dias da prova, que começa a ser realizada neste fim de semana. E o presidente da República não ajudou ao dizer, na última segunda-feira, que a prova teria “a cara do Governo”. Agora, esse mesmo Governo tenta convencer o país de que o exame merece confiança.
Ainda em viagem ao Catar, Bolsonaro admitiu nesta quarta-feira que não viu as questões que deverão cair nesta edição do Enem. “Não, não vi. Eu não vejo, não tenho conhecimento”, afirmou a jornalistas, dois dias depois de dizer que “começam agora a ter a cara do Governo as questões da prova do Enem”. Quase ao mesmo tempo, aqui no Brasil, Danilo Dupas, presidente do órgão responsável pela prova, comparecia a uma audiência pública no Senado para afirmar que ele também desconhece o conteúdo do exame. “Não tivemos em nenhum momento acesso às provas”, garantiu em videoconferência à Comissão Senado do Futuro. Um dia antes, o ministro da Educação, Milton Ribeiro, já havia declarado que “não há como interferir” no teste, considerado o maior vestibular do país e porta de acesso ao ensino superior. Nesta quarta, ele também prestou esclarecimento a parlamentares —e já foi convocado para fazê-lo uma segunda vez, no dia 8 de dezembro.
A tentativa de reduzir os danos causados pela atrapalhada gestão do exame nos últimos anos é um desafio e tanto. Os 37 servidores que deixaram o Inep alegaram assédio moral, desmonte de diretorias, acúmulo de trabalho e pressão, inclusive sobre a elaboração da prova. Parte deles declarou ao Fantástico, da TV Globo, no domingo, que questões envolvendo contextos sociopolíticos e socioeconômicos foram vetadas. As alegações corroboram os ataques desferidos por Bolsonaro contra a prova antes mesmo de ele assumir a cadeira de presidente. No Enem 2018, Bolsonaro implicou com uma pergunta sobre patrimônio linguístico que usava como texto de apoio um exemplo do Pajubá, identificado como expressão cultural de gays e travestis.
Nesta quarta, outros servidores do Inep encaminharam aos diretores do instituto uma carta de apoio aos colegas que deixaram a instituição, na qual pedem “esclarecimentos oficiais relativos ao posicionamento do Ministério da Educação, responsável pela nomeação da gestão máxima do Inep, quanto a situação de vulnerabilidade em que nos encontramos nesse momento, que repercutirá nas ações do órgão para o ano de 2022, por começarem a ser planejadas e executadas em janeiro, e que nos causa grande preocupação”. “Reafirmamos a situação de fragilidade técnica e administrativa em que se encontra a gestão máxima do Inep e nos solidarizamos com os servidores que solicitaram exoneração/dispensa do cargo em comissão ou função comissionada e/ou dispensa do encargo de substituto(a), evidenciando que os mesmos sempre desempenharam suas funções com alta qualidade técnica, abstendo-se de questões ideológicas, remuneratórias bem como de fundo político-partidário, como pode ser comprovado em toda a conduta dos mesmos durante a permanência nos cargos, sendo que alguns os desempenharam por quase 10 anos”, diz a mensagem.
Em 2019, o Inep criou uma comissão para avaliar o conteúdo do exame e sugeriu retirar do banco de perguntas disponíveis 66 questões, além de trocar o termo “ditadura” por “regime militar”. No Enem 2020, Bolsonaro criticou uma questão que comparava os salários dos jogadores de futebol Neymar e Marta. Embora tenha negado “revisar” a prova antes da aplicação, nesta quarta ele voltou a criticar o conteúdo das questões: “Olha o padrão do Enem do Brasil. Pelo amor de Deus! Aquilo mede algum conhecimento ou é ativismo político? Ou é ativismo também na questão comportamental? Não precisa disso”, declarou no Catar.
As perguntas do Enem são elaboradas por professores selecionados e testadas previamente em escolas pelo Brasil, para nivelar a dificuldade e permitir que possam ser comparadas, mesmo em edições diferentes, seguindo a metodologia da Teoria de Resposta ao Item (TRI). Assim, fazer novas questões implica em uma preparação prévia, testagem e seleção. Alterar o conteúdo da prova também deve seguir critérios técnicos, para que o nivelamento seja mantido. O Enem foi criado em 1998 como certificação do ensino médio. Em 2009, a prova passou a ser elaborada com critérios que a tornaram semelhante aos vestibulares mais concorridos. Em tese, deveria ser imune a interferências políticas.
“O presidente da República colocou gasolina na fogueira quando disse que a prova agora terá a cara do Governo. ‘Dois mais dois são quatro’ não tem cara de Governo em canto nenhum, é ciência”, argumentou o presidente da Comissão de Educação, Esporte e Cultura do Senado, Marcelo Castro (MDB-PI), durante a audiência com Dupas. Mais tarde, o Senado aprovou um pedido de auditoria no Inep, a ser realizado pelo Tribunal de Contas da União (TCU).
Apagando incêndio
Aos senadores, o presidente do Inep, Danilo Dupas, minimizou as denúncias de interferência. Citando a TRI, disse que a exclusão dos itens seria “comum”. “A prova possui um conjunto de questões com diversos níveis de dificuldade”, declarou. “É comum, portanto, que durante a montagem tenha itens que são colocados e itens que são retirados, justamente para garantir o nivelamento das provas. Os itens utilizados para a elaboração do Enem 2021 já estavam prontos e disponíveis no Banco de Itens, pois foram produzidos em gestões anteriores. Não há qualquer interferência no processo de montagem do Enem 2021″, assegurou.
Dupas tentou traduzir que “cara” seria a do Governo, conforme declaração do Bolsonaro. “A cara do nosso Governo, no caso, da nossa gestão e do senhor ministro Milton Ribeiro, é da seriedade e transparência. Não houve interferência do Palácio do Planalto em decidir ou escolher qualquer item da prova ou tema de redação. Não houve qualquer tipo de interferência nisso.” A explicação foi reverberada pelo próprio ministro da Educação na Comissão de Educação da Câmara dos Deputados. “O Enem tem a cara do Governo, no sentido de competência, honestidade, seriedade, essa é a cara do Governo. Nós não temos nenhum ministro preso, nós não temos nenhum caso de corrupção, é isso que é importante”, disse Milton Ribeiro, que deve voltar à Câmara no dia 8 de dezembro para prestar esclarecimentos sobre as denúncias de assédio moral e os pedidos exonerações ocorridos no Inep, desta vez à Comissão de Fiscalização Financeira e Controle.
Ainda há pontos obscuros nas denúncias dos servidores. Entre eles, a presença de um policial federal, em 2 de setembro, na sala onde ficam armazenadas as questões e a prova do Enem. O local, chamado de “ambiente seguro”, tem acesso restrito e sem conexão à internet. “Por que esse agente estava ali? Por que a presença foi excluída do sistema eletrônico de informação?”, indagou o deputado Israel Batista (PV-DF), presidente da Frente Parlamentar Mista de Educação. “A PF foi averiguar o ambiente seguro”, falou Dupas. “Houve uma ampliação do espaço e a PF foi lá conferir.”
Ao EL PAÍS, servidores confirmaram que houve realmente uma ampliação do espaço, destinado a outros exames produzidos no Inep. Entretanto, as salas não são conectadas, e o policial federal esteve dentro do espaço destinado ao Enem —e seu registro foi excluído. Além disso, servidores foram chamados para dar “entrevista” a um diretor do Inep, tendo que responder perguntas vagas como “O que você faz?” e “Não acha que tem muita gente nessa área?”, sem que os motivos desses questionamentos tenham sido esclarecidos.
“Não é adequado, não é de bom tom e não é juridicamente correto que um órgão que produz dados que, em última análise, permitam uma avaliação do Governo tenha tamanha submissão. É uma confusão profunda, comum neste Governo, entre política e técnica”, criticou o deputado Batista. “Vivemos dentro do Inep um clima de desconfiança, insegurança e insatisfação generalizada com a gestão”, afirmou Alexandre Retamal, presidente da Associação de Servidores do Inep (Assinep). Ele defendeu a autonomia da gestão, para que servidores possam produzir estatísticas sobre as políticas públicas, além do Enem.
Apoie nosso jornalismo. Assine o EL PAÍS clicando aqui
Inscreva-se aqui para receber a newsletter diária do EL PAÍS Brasil: reportagens, análises, entrevistas exclusivas e as principais informações do dia no seu e-mail, de segunda a sexta. Inscreva-se também para receber nossa newsletter semanal aos sábados, com os destaques da cobertura na semana.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.