Escândalo da Prevent Senior ganha rosto com depoimentos de médico e paciente à CPI da Pandemia
Sessão desta quinta reforçou tese de que plano de saúde pressionou médicos a receitarem ‘kit covid’, usou usuários como cobaias e tentou retirar tratamento intensivo de pacientes graves. Empresa nega
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O escândalo da Prevent Senior tem um rosto. Ou dois. A CPI da Pandemia ouviu nesta quinta-feira o ex-médico do plano de saúde Walter Correa de Souza Neto e o beneficiário Tadeu Frederico Andrade. Com seus testemunhos pessoais, ambos reforçaram as teses de que a empresa pressionava médicos a receitarem o ineficaz kit covid, experimentava o uso de medicamentos em pacientes sem autorização e indicava a retirada dos cuidados intensivos a pacientes graves precocemente, encaminhando-os aos cuidados paliativos. O médico e o paciente desvelaram detalhes sobre as ações da operadora durante a pandemia. “Sou testemunha viva da política criminosa dessa corporação e seus dirigentes”, disse Andrade aos senadores. A empresa nega e reclama de “denúncias infundadas”.
O usuário do plano contou que foi orientado a usar o kit covid com cloroquina nos primeiros dias de sintomas mesmo sem teste que comprovasse a infecção pelo coronavírus, um protocolo defendido pelo presidente Jair Bolsonaro. Achou estranho o fato de os remédios terem sido entregues gratuitamente em sua casa, mas não tinha opinião formada sobre a cloroquina e os tomou. Ao final dos cinco dias, piorou e precisou buscar o pronto-socorro. Foi então hospitalizado e intubado. Ficou grave a ponto de precisar ser submetido à traqueostomia e a várias sessões de hemodiálise. Andrade diz que, no seu prontuário, consta que foi administrada a flutamida, uma medicação usada em pacientes com câncer de próstata, durante seu tratamento contra a covid-19, sem que a família autorizasse o uso experimental do remédio.
Após um mês de internação na UTI, ele narra que uma médica telefonou para sua filha informando que ele seria direcionado a um “leito híbrido” para ser submetido a “cuidados paliativos”. As sessões de hemodiálise e a administração de antibióticos seriam interrompida. “Lá teria, segundo a doutora Daniela, maior dignidade e conforto e meu óbito ocorreria em poucos dias”, contou a senadores. A família não aceitou, mas ainda assim Andrade diz que o procedimento foi incluído no prontuário. A Prevent Senior nega que o procedimento tenha sido iniciado. Segundo a empresa, a adoção desses cuidados foi sugerida, e não imposta pela médica, diante de uma piora no quadro de saúde de Andrade. Segundo o usuário, só quando sua família disse que iria à Justiça e à mídia denunciar o caso, a operadora de saúde recuou.
“Tentaram convencer a minha família de que, pelo prontuário na mão, que eu tinha marcapasso, que eu tinha sérias comorbidades arteriais e que, enfim, eu tinha uma idade muito avançada. Só que esse prontuário não era meu, era de uma senhora de 75 anos. Eu não tenho marcapasso, a única coisa que eu tenho hoje é pressão alta, sempre tive pressão alta”, conta Andrade. Ele foi questionado se tinha conhecimento de outros casos como o seu e disse acreditar que existiam. “Uma das minhas filhas relatou que fez amizade com uma mulher que estava acompanhando a avó dela em um leito de UTI próximo ao meu. Pelo que a gente sabe, esta senhora foi para cuidados paliativos e veio a óbito”, relatou, destacando que não teria mais elementos. A falta de confiança na operadora fez a família de Andrade contratar um médico para fiscalizar a assistência dele a partir dali. Ele ficou hospitalizado por cerca de 120 dias. “Acredito que tenha uma procuração moral e cívica para falar em nome de vítimas que agora não têm mais voz”, acrescenta.
Ao depoimento de Andrade, somou-se o do ex-médico da operadora Walter Correa de Souza Neto. Ele, que já havia falado com a TV Globo, relatou que a Prevent Senior instituiu médicos paliativistas no pronto-atendimento, uma estratégia que considerou “macabra” e com potencial para induzir ao direcionamento precoce de pacientes a estes cuidados com a avaliação feita já no pronto-socorro. “A Prevent não é Auschwitz: não vão levar todo mundo que vai entrar ali e eles vão paliar, mas, às vezes, pela gerência de recursos, que é extremamente rígida e com essa hierarquia rígida, isso muitas vezes induz o médico ao erro”, afirmou ele, que atuou na operadora durante cerca de oito anos.
Neto ainda reforçou denúncias que já haviam sido trazidas a público pela sua advogada, Bruna Morato. Afirmou que os médicos não tinham autonomia e que eram pressionados a prescrever medicamentos do kit covid. Ele diz que, mesmo antes da crise sanitária, não havia autonomia na empresa, com uma hierarquia que se aproximava de assédio moral. “Vivíamos num ambiente que as pessoas ficavam receosas de contrariar as orientações”, conta. Ele diz que, com o passar no tempo durante a pandemia, os médicos foram ficando mais resistentes a prescrever os medicamentos e a pressão cresceu.
Enfermeiros atendiam como médicos, diz depoente
Neto apresentou elementos novos: contou que enfermeiros ficavam em três ou quatro consultórios atendendo como se fossem médicos. “Esses enfermeiros estão logados no sistema de prontuários com login e senha do médico; esses enfermeiros digitam toda a anamnese como se fossem o médico”, conta. Em tese, explica, o médico que deveria girar entre estes consultórios poderia sentar e atender, mas a imposição da empresa por agilidade induzira o médico a deixar o atendimento a cargo do enfermeiro. “Alguns colegas chegavam ao absurdo de nessa prescrição fazer carimbos extras e deixar os carimbos com os enfermeiros para que eles já fossem assinando e carimbando as coisas por eles ali”, narrou.
Em nota, a Prevent Senior disse que Neto “não trouxe fatos, apenas narrativas que faltam com a verdade”. “O médico faz parte de um grupo que tentou firmar acordos milionários com a operadora para que a advogada Bruna Morato não levasse as acusações à CPI. A denúncia mais grave é sugerir que os médicos da empresa optem pela adoção de cuidados paliativos para matar pacientes e economizar recursos, o que tanto os médicos quanto a direção da empresa veementemente contestam”, diz a empresa, que promete colaborar com os órgãos de investigação.
Os dois depoimentos ocorreram concomitantemente nesta quinta-feira (7) e seriam os últimos da CPI da Pandemia, mas os senadores decidiram convocar pela terceira vez o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, por não ter respondido no prazo questionamentos sobre o atual estágio da pandemia e da campanha de vacinação, além de não detalhar oque o Governo planeja para o ano que vem. O novo depoimento, marcado para o próximo dia 18, foi convocado num momento em que Queiroga é pressionado pelo presidente Bolsonaro e quando, coincidentemente ou não, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) teve adiada a reunião que baterá o martelo sobre a contraindicação do uso da cloroquina em pacientes infectados pelo coronavírus. Enquanto Queiroga tenta acenar para seu chefe, conflitos tomam seu ministério. A secretária de Gestão do Trabalho e da Educação do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, conhecida como Capitã Cloroquina, registrou um boletim de ocorrência por ameaça contra João Lopes de Araújo Júnior, chefe de gabinete do ministro, que a teria acusado de tramar a queda de Queiroga. “Ele está cada vez mais se Pazuellando”, alfinetou o vice-presidente da CPI, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP).
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