História
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Demagogos das novas ‘Aischrópolis’ são uma ameaça à vida e à democracia

Do século V a.C. aos nossos dias, o povo segue à mercê dos ‘idiotai’, que em grego antigo denomina aqueles que se importam mais com os interesses particulares que com os coletivos. A história mostra que o poder revela que tipo de pessoa governa a população

Uma estátua da deusa grega Atena, iluminada por um incêndio ao fundo, em Varympompi, norte de Atenas, na Grécia, em 3 de agosto.
Uma estátua da deusa grega Atena, iluminada por um incêndio ao fundo, em Varympompi, norte de Atenas, na Grécia, em 3 de agosto.GIORGOS MOUTAFIS (REUTERS)
Paula Vera-Bustamante

Era o verão do ano 430 a.C. e a epidemia recrudescia ainda mais com o calor em Atenas, assolando seus habitantes, que eram atacados dentro da cidade pelos iós (vírus) microscópicos, e fora dela pelos espartanos. A outrora Callípolis ―que florescera no arcontado de Péricles―, tinha se desfigurado em uma espantosa Aischrópolis (de aischron, feia, e pólis, cidade-Estado), onde os atenienses infectados pelo vírus sofriam ainda mais por viver em uma democracia agonizante. O desespero foi tanto que o demos (o povo) se voltou contra seu strategos (o líder do exército, de stratós, do exército, e ago, que conduz) ―o prudente Péricles― culpando-o pelas desgraças.

Conta Plutarco que Cléon, um dos adversários mais acérrimos de Péricles e simpatizante da oligarquia, “atacava-o aproveitando a ira dos cidadãos contra ele para conquistar a liderança do povo” (Vida de Péricles 33.8), e ambicionava se tornar o strategos da pólis. Cléon teria sido o acusador que o levou a julgamento para ser destituído. Péricles, sentindo a estocada da ingratidão e veleidade dos politēs (cidadãos), enfrentou estoicamente os ataques de Cléon e outros oponentes, que o acusavam, por um lado, de corrupção e roubo e, por outro, de incapacidade na estratégia de guerra, ao ter preferido uma tática defensiva.

Para conter a fúria de seus concidadãos, Péricles discursou para a Ekklesía (Assembleia do Povo) como o polítikós (estadista) que era, repreendendo-os por não estar unidos para salvar a pólis: “Vocês se revoltam contra um homem como eu (…), patriota e insubornável (…). Eu continuo o mesmo e não me afasto da minha decisão, mas vocês mudam, (…) seu pensamento não tem altura para perseverar no que decidiram, pois o repentino, o inesperado, e que acontece em grande medida contra o calculado, bloqueia a inteligência; coisa que aconteceu com vocês, ainda por cima pelas circunstâncias da epidemia. (…) Vocês devem ser insensíveis aos interesses individuais e esmerar-se por perseverar nos coletivos.” (Tucídides, Guerra do Peloponeso, II: 60-61).

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Demonstrators carry an effigy during a protest outside Greek parliament by actors and workers in the music industry in demand of state aid to mitigate financial losses due to the coronavirus disease (COVID-19) outbreak in Athens, Greece, May 7, 2020. REUTERS/Goran Tomasevic
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Platão, em Gorgias, afirmou que os cidadãos mais radicais, como Cléon, acusaram Péricles de roubo e até pediram sua execução, mas acabaram apenas multando-o e destituindo-o de seu cargo. Apesar de sua destituição, Péricles se manteve firme no propósito de defender Atenas, em meio à ominosa epidemia e à guerra contra os espartanos, sem perder o autocontrole, a parcimônia nem a dignidade que o destacavam. Virtudes inspiradas por Anaxágoras, que o ajudara em sua formação filosófica, e por Aspasia de Mileto, a hetaira e mestra oradora, “a quem amou com especial ternura”, sua musa na formação como estadista, devido “à sua inteligência e capacidade política” (Vida de Péricles: 24.5-8).

Embora Cléon e seus aliados tenham conseguido derrocar Péricles, convencendo a Ekklesía a assumir a condução da pólis, em poucos meses, os mesmos politēs que haviam votado contra ele o reelegeram novamente como líder do exército, “confiando-lhe todos os assuntos públicos” (Guerra do Peloponeso, II: 65). Já era o início de 429, mas o falecimento de seus filhos ―infectados pelo vírus― afetou sua têmpera, e a epidemia também o levou no outono daquele ano. Foi quando a Aischrópolis ateniense submergiu em um decadente processo de demagogias, que anos mais tarde desencadeariam uma guerra civil entre democratas e oligarcas.

Cléon, o demagogo da Aischrópolis ateniense

A Aischrópolis se define pela falsidade, ignomínia, doença (epidemia) e, sobretudo, pelos demagogoi (demagogos), caracterizados pela manipulação do povo em benefício próprio, sem areté (virtude) nem kritērion (discernimento), que é necessário para liderar com justiça. Os pseudostrategos que sucederam a Péricles foram também, antes de dedicar-se à vida política, comerciantes do agorā (mercado), como o demagogo Cléon que, segundo Aristófanes, era um reconhecido “curtidor de couros”. De fato, é graças a esse comediógrafo que se conhece algo mais de sua personalidade, porque foi objeto de sátiras em várias de suas comédias, por sua arrogância, virulência e pouca integridade.

A disputa entre Aristófanes e o demagogo surge na comédia perdida Os Babilônios, estreada em 426, em que o poeta alude à devolução de dinheiro que Cléon teve que fazer. Acusado de corrupção pelos Cavaleiros (cidadãos da alta hierarquia da Ekklesía), Cléon, para evitar ir a julgamento, preferiu pagar os cinco talentos exigidos por sua falta de probidade. Aristófanes aproveitou a comédia para criticar também a atuação dos metáboulos (volúveis) atenienses na guerra e fez isso nas Dionísias, o principal festival de teatro, ao qual iam justamente os aliados para deixar seus tributos. Cléon, enfurecido pela sátira sobre ele e sobre Atenas, acusou publicamente Aristófanes ante a Boulé (Conselho) por desprestigiar e injuriar a pólis, usando todas as argúcias para prejudicá-lo judicialmente.

Um ano depois dessa disputa, para não ser acusado de difamar a cidade, Aristófanes dá o troco em Cléon estreando Os Acarnienses no festival As Lêneas, ao que não iam estrangeiros. E inicia esta comédia precisamente com a cena da discórdia que enfureceu o demagogo: “Lembro-me de uma coisa que me encheu a alma de júbilo. Foi no teatro, quando Cléon não teve mais remédio que vomitar seus cinco talentos. Que alegria! Adoro os Cavaleiros por tão maravilhosa operação”. Com Acarnienses, Aristófanes revela o quanto foi perseguido pelo demagogo: “Sei por experiência própria o que Cléon me fez sofrer por minha comédia do ano passado, fazendo-me comparecer perante a Boulé, difamando-me com supostos crimes, pondo-me em risco de morrer, manchado por suas infames calúnias”. E descreve o estado lamentável de Atenas, onde imperava um ambiente de desconfiança e adikía (injustiça), fomentado pela conduta irracional de Cléon e seus sequazes, os sykophantas, delatores profissionais encarregados de denunciar qualquer opositor do demagogo ou estrangeiros. Afinal, esses falsos servidores públicos eram para Aristófanes a verdadeira epidemia de Atenas, e Cléon, seu verdadeiro inimigo. No ano seguinte, 424, o dramaturgo estreou Os Cavaleiros, obra em que os politēs de alta hierarquia decidem acabar com Cléon e sua hybris por não aguentar mais sua insensatez, violência e presunção. Tanto na farsa quanto na vida real, Cléon acabou sendo vencido.

Os demagogos das Aischrópolis do século XXI

Do século V a.C. aos nossos dias, não mudou muito o relacionamento dos comediógrafos com os demagogos, pois em pleno século XXI continuam expondo os desatinos dos idiotai; vocábulo que, em grego antigo, denomina os indivíduos que se importam mais com os assuntos privados (particulares) do que com os assuntos públicos (coletivos).

Mas, além dos autores de comédias, foi a própria pandemia de covid-19 que mostrou o quanto eles não tinham capacidade para enfrentar essa crise sanitária. Os iós não fizeram mais do que revelar a ignorância (ágnoia) e obstinação dos que rapidamente viram diminuir os índices de aprovação de suas gestões ineficazes. Por isso, como bons demagogos, tinham de buscar imediatamente uma “cura milagrosa” para não perder o controle do demos, que sentia na própria carne que fez um mau negócio ao votar nos demagogos da Aischrópolis.

Mas enquanto se afanavam para buscar tal cura ―em vez de colaborar com a comunidade científica e acatar suas recomendações―, acabaram desorientando ainda mais o povo. Povo que, diante do colapso dos sistemas públicos (e privados) de saúde, também iniciou sua busca desesperada por uma cura milagrosa. Assim, vimos nestes longos e difíceis meses uma variedade de remédios assombrosos para combater a doença, como: o “feijão mágico” na Aischrópolis brasileira (vendido por uma igreja evangélica por 1.000 reais); um vermífugo veterinário aplicado em mais de 5.000 pessoas na Aischrópolis peruana; o irresponsável consumo de dióxido de cloro (usado principalmente como desinfetante industrial) na Aischrópolis boliviana, o que causou alarme na OMS; e as insólitas injeções de água marinha na Aischrópolis equatoriana.

Quando já parecia tudo perdido para o demos, surgiram messias da demagogia com o remédio para todos os males. Como na Aischrópolis belarussa, onde seu líder defendia o uso da vodka como a melhor aliada para combater o novo corona-iós; na Aischrópolis tanzaniana, seu símile (já falecido) defendia o uso de banhos com ervas e o chá de limão com gengibre. Mas os mais tenazes em pontificar sobre o remédio do século foram os líderes das Aischrópolis brasileira e norte-americana: um promovia a cloroquina e o outro, a hidroxicloroquina. O mundo presenciava com estupor esta parafernália de panaceia universal, depois que esses mesmos demagogos passaram meses negando a gravidade da pandemia, rejeitando o uso da máscara, boicotando o distanciamento social, para seguir provocando, com suas idiotices (no sentido atual), dano à população. Foram tantas que os comediógrafos contemporâneos não demoraram em desnudar o momento absurdo que estávamos, e ainda estamos, vivendo.

No Brasil, o comediante Marcelo Adnet, em uma de suas já clássicas imitações do demagogo de Brasília, fez um brinde com “caipicloroquina” (‘é meio amargazinha, mas dá pro gasto’); o grupo de humor Porta dos Fundos apresentou o quadro Quarentena com Dona Helena, aquela parenta paranoica que vive compartilhando fake news com teorias conspiratórias no WhatsApp. Na Aischrópolis chilena, o imitador Stefan Kramer satirizou como o ministro da Saúde considerava “exagero e irresponsabilidade” decretar quarentena, mas o mais insólito foi que o verdadeiro ministro incluiu na lista de “pacientes recuperados” os falecidos por covid-19, argumentando que estes já não podiam contagiar e por isso foram incluídos na lista.

Nos EUA, quando o demagogo governava não se sabia se estava dando uma de humorista ao perguntar a seus assessores na Casa Branca se podiam, de alguma forma, administrar cloro nos contagiados ou expô-los a raios UV para que melhorassem. Com essas ideias inauditas, forneceu material de sobra para os comediantes americanos, como Alec Baldwin, do Saturday Night Live, e Jimmy Fallon. Os disparates do demagogo provocavam risadas, é verdade, mas provocavam ainda mais lágrimas de tristeza e impotência na comunidade científica, que via como seus esforços para ajudar a manter a salvo a população eram lançados despenhadeiro abaixo, como os opositores de Cléon, pois o pseudostratego tinha dado publicamente a fórmula de como acabar com a vida. Não demoraram para se intoxicar com o desinfetante vários cidadãos do demos americano, confiando na palavra de seu líder.

Esses próprios líderes idiotai, que rejeitaram medidas de proteção recomendadas pelas autoridades sanitárias, acabaram se infectando com o iós. Dava a impressão de que queriam realmente desafiar o vírus, ao não respeitar a quarentena, exibir seus rostos sem máscara e incentivar aglomerações. Infectados, vivenciaram a doença com certa expectativa para ver se era ou não uma gripezinha e, é claro, aproveitaram para promover sua “cura milagrosa”, desconsiderando que as “quinas” podem provocar alterações cardiovasculares. Melhoraram fisicamente, mas continuaram persistindo em suas outras idiomorphiai (peculiaridades), como a teimosia, ao pressionar e até remover do Governo funcionários que estavam fazendo bem as coisas, cientistas e especialistas. A Aischrópolis brasileira, por exemplo, demorou quase um ano para voltar a ter um ministro da Saúde especialista na área.

Mesmo em meio a uma segunda onda da pandemia (que também ocorreu em Atenas), os demagogos não encontraram nada melhor do que politizar as vacinas, em vez de unir esforços ―como diria Péricles― para imunizar a população o mais rápido possível. O pseudostratego brasileiro procurou semear a dúvida para desacreditar a vacina Coronavac chinesa, a primeira a ser aplicada no país. Seu Governo também atrasou a compra do imunizante americano da Pfizer. Sem se importar com o fato de serem opções concretas para conter uma pandemia que já deixou mais de 4,3 milhões de mortos no planeta, mais de meio milhão deles no Brasil.

Epílogo: strategos x demagogos

Uma manifestante participa de um protesto artístico contra a gestão do Governo Bolsonaro na condução da pandemia, em 31 de janeiro de 2021, em Brasília.
Uma manifestante participa de um protesto artístico contra a gestão do Governo Bolsonaro na condução da pandemia, em 31 de janeiro de 2021, em Brasília. UESLEI MARCELINO (Reuters)

O poder será o encarregado de revelar que tipo de pessoa governará o demos, se governará com justiça e consciência social ou se governará para benefício de uns poucos (os oligoi). Essa é a diferença fundamental entre a democracia e a oligarquia, os dois sistemas de governo que brigaram pela Hélade em uma disputa que, como aponta Tucídides, foi, em suma, o motivo da Guerra do Peloponeso (III: 82). Uma disputa que continua vigente, como vimos nas últimas eleições norte-americanas, em que houve uma contenda acirrada entre democratas e republicanos, entre os que querem melhorias sociais e ambientais (benefícios coletivos) e os que querem melhorias apenas para alguns, sem se importar muito, por exemplo, com o aquecimento global (benefícios individuais).

A disputa continuou até mesmo depois da votação, com o conflito desencadeado pelo demagogo de Washington ao não reconhecer sua derrota na eleição. Ele não duvidou em atacar o coração da democracia ao não aceitar o triunfo de seu oponente democrata. Chegou ao extremo de emular Cléon, usando desesperadamente todas as artimanhas comunicacionais e jurídicas para tentar invalidar a eleição, em seu afã de manter o poder a qualquer preço, sem respeitar a vontade do demos que não o reelegeu. Mas o pior foi sua retórica incendiária contra o resultado eleitoral, que incitou seus seguidores radicais a invadir o Capitólio no dia da certificação da vitória do candidato democrata.

Não será fácil curar as feridas deixadas pelo Governo do demagogo derrotado, que acabaram afetando o orbe inteiro. Não é fácil esquecer sua falta de humanidade quando ordenou a expulsão de imigrantes irregulares, separando-os de seus filhos, aos quais depois enjaulou como se fossem parte de zoológicos humanos; uma cena tão dantesca que nos fez retroceder ao final do século XIX. Também não é fácil demolir o muro que ele mandou construir entre seu país e o México, nem esquecer suas bravatas racistas depois do assassinato de George Floyd, entre tantas outras vilanias.

E como os demagogos das Aischrópolis delirantes se imitam entre eles, no modus operandi e na vilania, o de Brasília ameaça agora não realizar as eleições de 2022 se não voltar o voto impresso.

Já é tempo de que os eleitores do mundo assumamos nossa responsabilidade na hora de votar. Há muito em jogo para não pensar nas consequências ao escolher um candidato. Não esqueçamos que o verdadeiro strategos-polítikós, ou seja, o estadista, sempre zelará pelo bem comum, enquanto o demagogo zelará apenas pelo bem-estar dele próprio e de seu círculo, usando seus seguidores para conseguir seus objetivos. E nesta pandemia vimos como os líderes da demagogia pouco se importaram realmente com a proteção do demos, pois é muito tênue a linha que os separa do tirano, aquele que atropela o povo para satisfazer sua idiotéleia (egoísmo).

Depende da população discernir; assumir sua responsabilidade e votar em quem defende a democracia, a humanidade e o planeta, para afastar o risco de cair em tiranias-ditaduras, nas quais quem manda não se importa com o bem-estar das pessoas nem do planeta. Além de tudo, também está em jogo a própria vida. O preço de votar em quem não se importa com a vida é avalizar a morte, é escolher as necrópoles. Mas essa já é outra história.

*Paula Vera-Bustamante é pesquisadora chilena, licenciada em Literatura pela Universidad de Chile e doutora em Letras pela Universidade de São Paulo. Criou e desenvolveu o conceito de Aischrópolis para sua tese de doutorado, ‘A Cidade Fictiva’, de 2007.

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