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Câmara força votação do Distritão, que mudaria forma como o brasileiro elege, mas derruba na última hora

Projeto implementaria modelo que facilita eleição de político tradicional e ameaça participação de mulheres, mas, durante sessão muito tumultuada, relatora do texto concordou em retirar proposta

Deputados na sessão da Câmara desta quarta-feira.
Deputados na sessão da Câmara desta quarta-feira.Cleia Viana/Câmara dos Deputados
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Menos de 24 horas após a rejeição do voto impresso, a Câmara dos Deputados voltou à carga em ritmo de “passar boiada” e queria aprovar, em uma sessão açodada e muito tumultuada, a proposta de emenda à Constituição da reforma política, que incluía até a noite de quarta-feira o chamado Distritão, um novo modelo de votação que alteraria radicalmente a forma como os brasileiros votam nas eleições. De última hora, os deputados concordaram em derrubar a proposta do Distritão durante a votação dos destaques ao texto aprovado. Sem essa mudança basilar, o texto-base da reforma, cujo maior destaque agora é a volta das coligações partidárias, foi aprovado em primeiro turno por 339 votos contra 123. Posteriormente, o Distritão foi retirado por 423 votos a 35.

Durante a sessão desta quarta-feira, a oposição chamou a atenção para os poucos exemplos de sucesso do Distritão. “Só quatro países adotam o Distritão em países com poucos habitantes”, tentou argumentar o deputado Helder Salomão (PT-ES) durante a sessão presidida pelo presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), que antecipou em um dia a votação, inicialmente programada para quinta-feira. “O Distritão aumentou a corrupção no Japão, e por isso o país abandonou o modelo”, avisou. “Estamos decidindo no afogadilho o destino da democracia brasileira”, reclamou o deputado Tiago Mitraud (Novo-MG). “Qual recado esta Casa quer passar a sociedade ao mudar as regras antes de começar o jogo?”, completou.

O Distritão era defendido pela maioria da Casa, incluindo a base bolsonarista, e parecia destinado a seguir para o Senado, onde teria destino incerto. O presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), já havia dito que não havia chances de passar no Senado. Se fosse aprovado por senadores até outubro, o Distritão valeria nas eleições do ano que vem. “Deputados não podem decidir as regras eleitorais para suas próprias eleições”, disse o deputado Marcelo Ramos (PL-AM), vice-presidente da Câmara. “Temos que parar de legislar em causa própria”, reclamou a deputada Adriana Ventura (Novo-SP).

Mas, antes de determinar uma mudança profunda já para as próximas eleições, os líderes partidários resolveram dar um passo atrás, fazendo um acordo de última hora pela volta das coligações partidárias, que haviam caído em 2017. O sistema beneficia, por exemplo, acordos entre partidos para garantir tempo de propaganda nas campanhas eleitorais, abrindo espaço para os chamados “partidos de aluguel”, que existem para vender seu apoio. Vários deputados foram à tribuna para apoiar a nova proposta em nome de “um mal menor”.

Hoje a eleição é feita com base no sistema propocional, que não é perfeito, e requer ajustes. Ele leva em conta o chamado quociente eleitoral, a soma do número de votos válidos (feitos em candidatos ou na legenda, excluindo-se os brancos e nulos) divididos pelo número de cadeiras em disputa. Apenas partidos que atingirem o quociente eleitoral têm direito a uma vaga. Mas para definir quantas vagas são de cada partido, o número de votos de um partido ou coligação é dividido pelo quociente eleitoral. O resultado é o número de cadeiras a serem ocupadas. Por essa equação, os mais votados podem puxar eleitos com votações menores, o que não aconteceria pelo Distritão.

Com a nova proposta, deixaria de existir o quociente eleitoral e o voto na legenda, quando o eleitor opta por não escolher um candidato específico, e sim votar no partido. Assim, só os mais votados nos Estados e municípios seriam os eleitos. Na prática, o Distritão beneficia os políticos que buscam a reeleição ou os candidatos-celebridades e influencers que poderiam capitalizar seu sucesso nas redes sociais. “Querem transformar os likes em votos para se eleger”, reclamou o deputado Tiago Mitraud, do Novo. “Esta não será mais uma casa de ideias, será de popularidade”, completou. Ao fim e ao cabo, conseguiram evitar um cavalo de pau assumindo o ônus das coligações, alvo de críticas pela profusão de pequenos poderes de partidos menores, que deformam o projeto inicial do candidato eleito.

O especialista em direito eleitoral Arthur Rollo explica que o voto nominal [em um candidato] do Distritão enfraqueceria os partidos políticos e eliminaria o voto na legenda. “Ele torna mais fácil a reeleição, uma vez que estes deputados e vereadores já possuem uma base política e um bom recall [quando o eleitor já conhece o político]”, analisa Rollo. “Existe uma forte tendência de que este sistema também facilite o sucesso eleitoral de personalidades mais conhecidas da mídia, por exemplo.” O especialista aponta ainda que o Distritão dificultaria a “renovação política”, e prejudicaria a “representatividade”, que é um dos objetivos da lei eleitoral: “Todos os segmentos da população devem estar representados no Legislativo, mas com este modelo corremos o risco de ter só celebridades e políticos profissionais entre os eleitos”.

Alguns deputados federais de campos opostos, como Talíria Petrone (PSOL-RJ) e Marcel van Hattem (Novo-RS) fizeram coro à tese de Rollo. “O Distritão é um sistema que, se aprovado, vai perpetuar no poder os políticos já eleitos, não permitirá a renovação na política e fulminará a esperança de que mais jovens (...) possam participar das eleições e se elegerem”, disse o gaúcho na sessão da comissão especial. Petrone foi na mesma linha: “A mudança do sistema político para o Distritão dificulta ainda mais a participação de mulheres, negros e indígenas no parlamento. É o fim da renovação política e o fortalecimento dos coronéis dos partidos!”, diz.

O atual sistema não é perfeito e precisa de ajustes. O que chamou a atenção foi a ansiedade da Câmara para colocar o assunto em pauta e sem debate público com a sociedade. “Estamos “Não existe sistema eleitoral perfeito”, afirma o cientista político Luciano Dias, da CAC consultoria. “O ponto mais delicado [do Distritão] é que ele desorganiza a lista partidária, que deixa de fazer sentido, uma vez que vira cada candidato por si”, afirma. A lista partidária é um dispositivo do atual sistema de eleições proporcionais, e funciona da seguinte maneira: no Brasil vigora o sistema de lista partidária aberta. Terminada a votação, os partidos elencam quem são os seus principais candidatos com base na quantidade de votos que receberam (os mais votados encabeçam a lista). Uma vez que estes candidatos atingem o mínimo necessário para se eleger, os votos adicionais são repassados para os próximos da lista, no famoso puxa votos.

Em tese, esse seria um dos aspectos positivos do Distritão: “Você evita que tenhamos aquele candidato que se elegeu com 1.500, 2.000 votos, enquanto outro que foi mais votado fica de fora”, afirma Dias. Ele cita como exemplo Enéas Carneiro, ex-deputado federal morto em 2007, ”que costumava receber cinco milhões de votos e puxava cinco parlamentares junto com ele”, diz. Esse fenômeno do puxador de votos deixaria de ocorrer, porque no modelo aprovado na Câmara os votos em excesso depositados em um determinado deputado que já atingiu o mínimo necessário para se eleger (o quociente eleitoral) são descartados ao invés de serem repassados para outros nomes da lista partidária. A mudança, porém, deixaria de fora os grupos menores.

Sem o Distritão, o texto aprovado nesta quarta-feira traz a volta das coligações partidárias, cujo fim havia sido aprovado em 2017 pelo Congresso, numa tentativa de limitar a proliferação dos chamados partidos de aluguel, que dependiam destas alianças para eleger vereadores e deputados e ‘vender’ apoio para outros partidos. As coligações eram formadas sem que houvesse qualquer necessidade de alinhamento programático entre as legendas envolvidas, apenas com o objetivo de somar tempo para a propaganda na TV —que é calculado com base no tamanho das bancadas partidárias.

Outro ponto que o relatório altera é a eleição para presidente, governador e prefeito a partir de 2024, ano dos próximos pleitos municipais. A ideia é que o eleitor vote em cinco opções de candidato em ordem decrescente de preferência. O político que receber a maioria absoluta (um voto além de 50%) das primeiras escolhas válidas dos eleitores será eleito, não computados os votos em branco e os nulos. Assim não haveria mais segundo turno. Caso nenhum dos candidatos conseguisse mais de 50% dos votos, o processo seria repetido novamente.

É a terceira vez nos últimos anos em que os deputados se debruçam sobre a mudança do sistema para o Distritão, que já havia sido rejeitado duas vezes no plenário, em 2015 e 2017. Caso fosse aprovada, a proposta seguiria para votação no Senado, onde não teria vida fácil. “Da parte do Senado há uma tendência de se manter aquela opção feita em 2017, com o sistema proporcional sem coligações e com cláusula de barreira, fortalecendo partidos políticos, fortalecendo representatividade, permitindo uma democratização daqueles que queiram ser candidatos”, disse o parlamentar.

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