Voto impresso é rejeitado na Câmara e enfraquece pauta bolsonarista

Deputados sepultam a proposta de emenda constitucional apresentada pela colega Bia Kicis, que obteve 229 dos 308 votos necessários. Tema pode voltar no Senado, diz aliado do presidente. “Na Câmara, o assunto está encerrado este ano”, diz Lira

Duas militantes que fizeram oposição à ditadura brasileira oferecem flores a militar, em Brasília.Eraldo Peres (AP)
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O dia em Brasília começou com tanques na rua e terminou com a derrubada do voto impresso na Câmara — além da aprovação, no Senado, de um texto base para revogar a Lei de Segurança Nacional (LSN). Depois de idas e vindas na Comissão Especial, os deputados rejeitaram a proposta de emenda constitucional que fora apresentada pela deputada bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF). Para ser aprovada, a PEC precisava de 308 votos, mas obteve 229 votos favoráveis e 218 contra, com uma abstenção. Outros 64 deputados se ausentaram da votação, a maioria (11) do Partido Progressista (PP), legenda do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).

Embora não seja uma vitória acachapante, a derrota do Governo foi vista como uma resposta à campanha desenfreada do presidente Bolsonaro, que ganhou inclusive o apoio das Forças Armadas. No dia 22 de julho, o ministro da Defesa, Braga Netto, defendeu publicamente o debate da volta do voto impresso. A rejeição foi vista como uma vitória da democracia e um caminho para serenar ânimos na capital. “O assunto está encerrado este ano”, disse o presidente Arthur Lira, o que garante que a eleição de 2022 seja preservada. O vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos (PL-AM), lembrou que o debate sobre voto impresso “serviu para justificar ataques à democracia”. “A gente precisa virar esta página e tratar do que realmente importa ao país”, disse ele à Agência Câmara.

Durante a sessão, o deputado Vitor Hugo (PSL-BA), apontou para um projeto sobre o mesmo assunto no Senado, sugerindo que algum colega senador poderia reavivar no Congresso a pauta do voto impresso. Ficou claro que os apoiadores no presidente —e o próprio Bolsonaro— seguirão empunhando essa bandeira, mas a derrota desta terça-feira tira força da tese bolsonarista. Lira, por sua vez, afirmou que tinha o compromisso do presidente de que aceitaria o resultado caso fosse derrotado nesta terça. O ministro Braga Netto também havia condicionado a legitimidade da urna eletrônica à votação da PEC no Congresso.

Seja como for, o presidente da Câmara anunciou que sentará com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, nesta quarta para trabalhar por “ainda mais a transparência e assertividade [sobre as urnas eletrônicas] para que não paire dúvida na cabeça dos brasileiros”, explicou. “É importante que haja bom senso de agora em diante por parte do poder Executivo e do poder Judiciário para que todos possamos nos sentar e escolher uma maneira clara e objetiva de aumentarmos a transparência do sistema eleitoral”, afirmou. Lira sugere a conversa com a Justiça Eleitoral, com participação de fundações, do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), e do Exército para estudar maneiras de ampliar as evidências de que as urnas eletrônicas são seguras.

Não é a primeira vez que as urnas eletrônicas são questionadas. Em 2014, o candidato derrotado à presidência Aécio Neves (PSDB-MG) começou a questionar o resultado após perder para a petista Dilma Rousseff por uma diferença de pouco mais de três milhões de votos. Seu colega tucano, o deputado Carlos Sampaio (PSDB-SP), chegou a coordenar uma ação de seu partido em 2015, que questionava no Tribunal Superior Eleitoral o resultado do pleito. Nesta terça, ele estava no plenário para dar um testemunho sobre as urnas.

Naquele ano, segundo seu relato, Sampaio constatou que não houve fraudes, mas que não era possível auditar o sistema. Quatro anos mais tarde, em dezembro de 2019, o TSE permitiu que partidos políticos, universidades, centros técnicos e até os militares tentassem fazer ataques ao sistema e tentassem alterá-lo. “Ali o tema foi debelado. Não temos mais dúvidas de que sistema é seguro”, discursou ele durante a votação da PEC. “Todos nós queremos voto auditável. O que estamos falando aqui é de voto impresso. Aqueles que a fraude era vergonhosa em todo o país”, disse o parlamentar ao defender a derrubada da PEC.

O tucano, porém, não conseguiu convencer boa parte da sua bancada. Mais de 40% dos colegas de partido votaram a favor da volta do voto impresso. Também a única abstenção registrada nesta terça foi a do agora deputado Aécio Neves.

A mudança de sistema a apenas um ano da eleição tornou-se uma boia de salvação, presente e futura, para Bolsonaro em tempos de baixa popularidade. Sua campanha insistente em acusar as urnas eletrônicas ajudou a desviar a atenção da CPI da Pandemia, ao mesmo tempo em que serve de hedge para questionar o resultado das eleições de 2022. As pesquisas eleitorais mostram que o mandatário perderia para quase todos os seus adversários políticos se o segundo turno fosse hoje. Assim, o discurso de fraude tornou-se conveniente para manter sua militância ativa.

No início da tarde, Lira havia sinalizado que poderia adiar a votação para a quarta-feira. Era um pedido dos apoiadores da PEC. Mas houve pressão de legendas de oposição ao Governo e de centro-direita que queriam dar uma resposta rápida a Bolsonaro, após o presidente provocar um pífio desfile militar de dez minutos na Esplanada dos Ministérios que contou até com tanques que soltavam fumaças. Foi a segunda derrota de Bolsonaro no dia.

Resquício da ditadura

Nesta terça, os senadores aprovaram também o texto-base do projeto que revoga a Lei da Segurança Nacional. A legislação, um resquício da ditadura militar, tem sido utilizada para intimidar opositores do Governo Bolsonaro. Entre 2019 e 2020, a Polícia Federal admitiu ter aberto 77 inquéritos com base nesta legislação. O número é maior do que a quantidade de procedimentos abertos nos quatro anos anteriores, conforme reportagem publicada pelo jornal Folha de S.Paulo. Em ao menos uma ocasião, o próprio Supremo justificou a prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) com base na Lei de Segurança Nacional e para abrir investigações contra apoiadores do presidente.

A atual lei prevê pena de até quatro anos de detenção para quem difamar o chefe do Executivo, atribuindo a ele fato “definido como crime ou ofensivo à reputação”. Entre os alvos dos bolsonaristas estavam o youtuber Felipe Neto, que chamou o presidente de genocida, e o cartunista Aroeira. A proposta já havia sido aprovada pela Câmara em maio. Ainda falta votar destaques do texto final.

O tema estava em debate na Câmara desde 2002, quando uma proposta foi apresentada pelo então ministro da Justiça, Miguel Reale Jr, um dos autores do pedido que resultou no impeachment de Dilma Rousseff. Pelo projeto aprovado nesta terça, o Código Penal terá uma seção em que serão detalhados os crimes contra o Estado democrático de Direito. Alguns dos que serão caracterizados como crimes: a espionagem, o atentado à soberania, o atentado à integridade nacional, o golpe de Estado, a interrupção do processo eleitoral, a comunicação enganosa em eleições, a sabotagem, a violência política e o atentado ao direito de manifestação.

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