Entenda a polêmica em torno da PEC do voto impresso
O TSE informa que utiliza o que há de mais moderno em tecnologia para garantir “a integridade, a confiabilidade, a transparência e a autenticidade do processo eleitoral” com urnas eletrônicas
Passados 25 anos da estreia das urnas eletrônicas nas eleições brasileiras, o uso dessas máquinas está novamente em pauta. A discussão foi puxada pelo presidente Jair Bolsonaro, que acusa o modelo de não ser confiável e alega que houve fraudes na votação de 2018, a mesma em que ele se elegeu.
Bolsonaro quer que, a partir da eleição presidencial de 2022, os números que cada eleitor digita na urna eletrônica sejam impressos e que os papéis sejam depositados de forma automática numa urna de acrílico. A ideia dele é que, em caso de acusação de fraude no sistema eletrônico, os votos em papel possam ser apurados manualmente.
O tema já está no Congresso Nacional. Em maio, a Câmara dos Deputados criou uma comissão especial para estudar uma proposta de emenda à Constituição que institui o mesmo modelo de voto impresso pregado pelo presidente da República. A PEC 135/2019 foi redigida pela deputada federal Bia Kicis (PSL-DF) e tem como relator o deputado Filipe Barros (PSL-PR), ambos integrantes da base governista. Barros acaba de apresentar seu parecer, favorável à aprovação da PEC.
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), responsável pela organização das votações brasileiras, refuta as acusações de vulnerabilidade do sistema eletrônico. Em nota enviada à Agência Senado, diz que utiliza o que há de mais moderno em tecnologia para garantir “a integridade, a confiabilidade, a transparência e a autenticidade do processo eleitoral”.
“Desde que foi adotada, em 1996, a urna eletrônica já contabiliza 13 eleições gerais e municipais, além de um grande número de consultas populares e pleitos comunitários, sempre de forma bem-sucedida, sem qualquer vestígio ou comprovação de fraude”, afirma o TSE.
A urna eletrônica foi adotada em algumas cidades nas eleições de 1996 e 1998, em caráter experimental. Dado o êxito dessas primeiras experiências, passou a ser utilizada nacionalmente e em definitivo nas eleições de 2000, deixando para trás o voto nas cédulas de papel.
Na época, comemoraram-se tanto a agilidade na divulgação do resultado (a apuração, que antes se arrastava por dias e até semanas, passou a ser concluída no mesmo dia da votação) quanto o fim das fraudes de longa data (como a introdução de cédulas extras nas urnas, a marcação posterior em votos originalmente em branco, eleitores votando no lugar de outros e a contagem enviesada dos votos).
A cada eleição que passa, o TSE reforça as camadas de segurança das urnas eletrônicas. Partidos políticos, órgãos do poder público e entidades da sociedade civil são de tempos em tempos convidados a acompanhar e fiscalizar a tecnologia. Especialistas em segurança da informação são chamados a tentar invadir o sistema. Caso se detecte alguma falha, os técnicos da Justiça Eleitoral a corrigem.
Diante da recente ofensiva contra as urnas eletrônicas, o presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, deu início a uma campanha pública de esclarecimento sobre a segurança do sistema.
Nesta semana, Barroso participou de uma sessão temática no Plenário do Senado sobre a legislação eleitoral e disse que, ao contrário do que muitos supõem, os votos dados por meio da urna eletrônica são, sim, auditáveis — e “muitas vezes”, ressaltou. Para ele, trata-se de contradição dos defensores da impressão do voto:
— O voto impresso sairia da mesma urna eletrônica que estaria sob suspeita. Portanto, quando se frauda o eletrônico, frauda-se também o impresso. É um paradoxo [duvidar do voto eletrônico, mas confiar no impresso].
O TSE aponta três grandes inconvenientes do voto impresso. O primeiro é que ele tem mais chances de ser fraudado do que o voto eletrônico, já que pessoas manusearão os papéis. O segundo é que, a cada dois anos, será necessário montar um grande esquema logístico para garantir o transporte e o armazenamento seguro dos votos dos 148 milhões de eleitores brasileiros. O terceiro é o risco de judicialização das eleições.
Isso significa que candidatos derrotados poderão alegar fraude na votação eletrônica e pedir a contagem dos votos impressos apenas para pôr em dúvida a legitimidade da vitória dos adversários e, assim, fragilizá-los politicamente. Na época do voto em cédulas de papel, isso era comum. Só no Rio Grande do Sul, por exemplo, foram apresentados mais de 8 mil recursos à Justiça Eleitoral nas eleições de 1994.
Em 2014, logo após perder a eleição presidencial para Dilma Rousseff (PT), o candidato Aécio Neves (PSDB) questionou a segurança da votação eletrônica e pediu uma auditoria do resultado. Depois da verificação, concluiu-se que não houve irregularidade. Mais tarde, num áudio gravado pelo empresário Joesley Batista, Aécio afirmou que o seu objetivo era apenas “encher o saco” da candidata vencedora.
A antropóloga Isabela Kalil, professora da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, afirma que é importante discutir formas de incrementar a segurança do sistema eleitoral no Brasil, porém não do modo como se faz neste momento:
— O voto é uma questão vital da democracia. Não devemos, portanto, discuti-lo de forma apressada e atropelada, querendo mudanças para as eleições que vão ocorrer daqui a um ano. Além disso, estamos no meio de uma pandemia, com o Congresso Nacional fazendo uso de sessões remotas, o que dificulta a discussão transparente e aprofundada da questão e a participação da sociedade no debate. Definitivamente, este não é o momento adequado para tentar mudar as urnas eletrônicas.
De acordo com Kalil, a discussão atual pode até prejudicar a democracia:
— Quando se diz que há fraudes na urna eletrônica e não se apresentam provas, constrói-se a narrativa de que o sistema eleitoral brasileiro não é confiável. Essa narrativa cria em parte dos brasileiros o sentimento de que o voto não vale nada e leva muitos a simplesmente não ir às urnas no dia da eleição. Isso corrói a confiança das pessoas não apenas no processo eleitoral, mas também na própria democracia. Não é à toa que a impressão do voto faz parte da pauta antidemocrática de grupos que também pedem o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal.
A cientista política Isabel Veloso, professora da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas, concorda:
— Não me parece que o objetivo dos defensores do voto impresso seja trazer legitimidade às eleições. Além de não necessariamente adicionar segurança ao processo, tendo inclusive o potencial de trazer vulnerabilidade, seria inviável implementar o voto impresso nas eleições de 2022. Haveria toda a tramitação da proposta no Congresso, a licitação, a produção das novas urnas ou dos aparelhos a serem acoplados às existentes, a instalação, os testes, os treinamentos. Estando clara a impossibilidade de implementação do voto impresso em 2022, insistir nessa ideia denota o propósito de trazer instabilidade ao processo democrático.
Segundo Veloso, ainda que a PEC do voto impresso não seja aprovada, o dano à democracia já terá sido feito:
— Quando se lançam os holofotes sobre a suposta falta de lisura das urnas brasileiras, que é um problema irreal, o dano é irreversível. Isso porque as teorias conspiratórias continuarão circulando pelos grupos de WhatsApp e pelas redes sociais. A desinformação já é um problema crônico da sociedade brasileira, e parte das pessoas não busca ou não confia nas fontes oficiais para confrontar as fake news.
Ainda de acordo com ela, as instituições devem reagir:
— A imprensa e o TSE precisam difundir a informação de que o sistema eleitoral brasileiro é seguro e auditável em seus diferentes estágios e lembrar que jamais houve qualquer questionamento razoável sobre sua efetividade. Quanto ao Congresso Nacional, me parece que esse tema não deveria ser objeto de atenção, sobretudo porque se trata de um problema cuja própria existência é questionável, seria extremamente dispendioso em recursos técnicos e financeiros e disputa a atenção com problemas realmente sérios do Brasil, como a escassez de vacinas contra o coronavírus.
Pressionando pela adoção do voto impresso no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro tem citado o risco de haver atos violentos no futuro.
— Se nós não tivermos o voto impresso em 2022, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problema pior que os Estados Unidos — afirmou em janeiro, referindo-se à invasão do Congresso norte-americano por eleitores que não aceitaram a derrota do presidente Donald Trump na tentativa de se reeleger; o saldo do golpe fracassado foram cinco pessoas mortas, dezenas feridas e centenas presas e processadas.
— Se [o Congresso] promulgar, teremos eleições, sim, com voto auditável. Caso contrário, teremos dúvida nas eleições. Podemos ter um problema seríssimo. Pode um lado ou outro não aceitar e criar uma convulsão no Brasil — voltou a falar no tema, em junho.
Bolsonaro diz que houve fraude nas eleições brasileiras de 2018. Ele afirma que, sem irregularidades, teria sido eleito já no primeiro turno, e não apenas no segundo, como ocorreu. O presidente, porém, nunca apresentou provas. Em junho, em decisões separadas, o STF e o TSE intimaram Bolsonaro a provar as acusações contra o sistema eletrônico de votação.
A decisão do STF veio em resposta a uma ação movida pela Rede Sustentabilidade. De acordo com o partido, o presidente “cria uma narrativa falaciosa de que há fraudes eleitorais para que, de modo contrário ao ordenamento posto, consiga apoio popular e de outras forças para segurar-se no cargo”.
Na justificativa da proposta que prevê o voto impresso, a deputada Bia Kicis argumenta que é “cada vez mais evidente nas redes sociais a insatisfação do cidadão” com a inexistência do “voto impresso para conferência”.
Uma pesquisa de opinião feita neste mês mostra que perto de 64% dos brasileiros afirmaram ter confiança elevada ou moderada nas urnas eletrônicas. Mesmo assim, 58% se disseram favoráveis à impressão do voto. A sondagem foi feita pelo Instituto MDA Pesquisa por encomenda da Confederação Nacional do Transporte (CNT).
Não é nova a tentativa de instituir o voto impresso. Nestes 25 anos de urna eletrônica, o Congresso Nacional aprovou três leis que tornaram obrigatória a impressão dos votos digitados no aparelho, nos mesmos moldes do modelo desejado pelo presidente Jair Bolsonaro. Todas elas, contudo, foram logo derrubadas.
A primeira lei foi aprovada em 2002. Nas eleições deste mesmo ano, a Justiça Eleitoral pôs em prática o voto impresso paralelo ao voto eletrônico, como teste, em apenas 150 cidades. O resultado foi negativo.
Nessas localidades, os eleitores precisaram ficar mais tempo diante da urna eletrônica, levando à formação de longas filas, já que era necessário conferir o papel emitido por ela após o voto. Em Brasília, houve seção eleitoral em que a votação só se encerrou na madrugada. No Rio de Janeiro, 60% dos eleitores foram embora sem nem olhar o voto impresso. Além disso, a impressora de muitas urnas enguiçou, levando ao voto em cédulas de papel. O TSE avaliou:
“A experiência demonstrou vários inconvenientes na utilização do denominado módulo impressor externo. Sua introdução no processo de votação nada agregou em termos de segurança ou transparência. Por outro lado, criou problemas. Na análise feita na reunião conjunta do Colégio de Presidentes e do Colégio de Corregedores da Justiça Eleitoral, concluiu-se ser imperativa a eliminação do voto impresso no processo de votação”.
Atendendo ao pedido da Justiça Eleitoral, o Congresso Nacional revogou a lei do voto impresso um ano depois da experiência de 2002.
As outras duas leis do voto impresso vieram em 2009 e 2015, mas foram invalidadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Ao contrário da primeira, nenhuma delas chegou a sair do papel. Em ambos os casos, o mais alto tribunal do Brasil entendeu que a impressão do voto eletrônico era inconstitucional, pois colocaria em risco o sigilo do voto — uma das cláusulas pétreas da Constituição.
Para valer, o voto impresso proposto pela deputada Bia Kicis precisa ser aprovado pela Câmara e também pelo Senado. Como se trata de emenda à Constituição, é necessário haver duas votações em cada Casa e o voto favorável de pelo menos três quintos dos parlamentares.
Embora ainda esteja em análise na Câmara, o tema já mobiliza o Senado. Defensor da impressão do voto, o senador Plínio Valério (PSDB-AM) afirma que a urna eletrônica não é auditável:
— Eu mesmo tive problemas nas eleições de 2002 e 2004. Eu digitava o meu número, mas aparecia a fotografia de outro candidato. Isso aconteceu em dezenas de urnas. Eu acho que ali houve problema. A população tem o desejo legítimo de saber se o voto dela é mesmo respeitado. Não entendo por que a Justiça Eleitoral não quer a impressão do comprovante do voto. Se a urna eletrônica já é confiável, por que não deixá-la mais confiável ainda?
O senador Angelo Coronel (PSD-BA) diz que, nas eleições municipais de 2020, ouviu candidatos reclamando que só foram derrotados em razão de fraudes na urna eleitoral:
— Todo mundo sabe que, muitas vezes, isso é conversa de perdedor. Mas, para tirar a dúvida, poderíamos aprovar uma lei prevendo que apenas 1% ou 2% das urnas eletrônicas tenham o voto impresso, de modo a permitir uma auditoria por amostragem. Seria simples, o custo não seria exagerado e não haveria mais dúvidas sobre o sistema eletrônico.
Os senadores Paulo Paim (PT-RS) e Fabiano Contarato (Rede-ES), por sua vez, são contrários à impressão do voto.
— Não há razão técnica para adotá-lo. As urnas eletrônicas são seguras e garantem não só um processo de votação ágil, mas também uma apuração eficiente — avalia Contarato. — Defendem o voto impresso apenas aqueles que querem colocar em dúvida a legitimidade das eleições e preparar o terreno para contestar uma eventual derrota eleitoral.
— As pesquisas de opinião mostram uma queda nas intenções de voto no atual governo, que buscará a reeleição. Só os candidatos que estão inseguros e acham que vão perder é que tentam tumultuar o processo e defendem o voto impresso — concorda Paim.
Em declaração à CNN, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, afirmou também ter confiança no atual modelo:
— Não identifico indício algum de fraude nos resultados eleitorais do Brasil. O sistema eletrônico deveria continuar. No entanto, independentemente da minha posição a esse respeito, a decisão caberá ao Plenário da Câmara e ao Plenário do Senado.
Em junho, presidentes de 11 partidos políticos — incluindo siglas da base governista — fizeram uma reunião em que decidiram orientar seus deputados federais a rejeitar o voto impresso. Os presidentes avaliaram que o atual modelo de votação e apuração é seguro. Os 11 partidos têm votos suficientes para derrubar a proposta.
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