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Documentos mostram que cloroquina virou jogo de empurra entre Defesa e Saúde após pressão de CPI

Quem mandou o Exército produzir o medicamento, ineficaz para covid-19 e obsessão de Bolsonaro, para distribuir à rede pública? Oficialmente, ninguém, segundo respostas das pastas aos senadores da comissão que investiga o Governo

Laboratório do Exército (LQFEx) ampliou a produção de cloroquina na pandemia.
Laboratório do Exército (LQFEx) ampliou a produção de cloroquina na pandemia.LQFEx (Reprodução)

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Luiz Paulo Dominguetti, the representative of Davati Medical Supply, attends a meeting of the Parliamentary Inquiry Committee (CPI) to investigate government actions and management during the coronavirus disease (COVID-19) pandemic, at the Federal Senate in Brasilia, Brazil July 1, 2021. REUTERS/Adriano Machado
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Quem mandou o Exército produzir cloroquina para distribuir à rede pública? Oficialmente, ninguém, segundo respostas dos ministérios da Saúde e da Defesa encaminhadas à CPI da Pandemia. As pastas se contradizem sobre a responsabilidade no aumento da produção do medicamento utilizado contra à malária e sem eficácia comprovada contra a covid-19 e que, mesmo assim, se tornou a principal estratégia do presidente Jair Bolsonaro no combate à pandemia. A crise de responsabilidade coloca o Governo em nova saia justa, num momento em que o presidente é acusado de contar com um gabinete paralelo de gestão da pandemia e vê seu comando na Saúde acossado por denúncias de corrupção.

O Ministério da Saúde disse à CPI que a ordem não partiu de lá. “Informamos que não houve envio, por parte do Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos (DAF), de nenhum ofício ao Ministério da Defesa solicitando a produção de cloroquina e hidroxicloroquina.” A pasta esclarece ainda que a hidroxicloroquina distribuída pelo Governo é fruto de uma doação recebida do Governo norte-americano “para ser utilizada como medida adicional ao enfrentamento da pandemia”. A responsabilidade seria do Laboratório Químico Farmacêutico do Exército (LQFEx), que desde janeiro de 2000 tem permissão para produzir a cloroquina junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), e teria se colocado “à disposição” para distribuir às Secretarias de Saúde de Estados e municípios a cloroquina 150 mg.

Essa versão dos fatos foi corroborada em entrevista dada ao EL PAÍS pelo ex-ministro Luiz Henrique Mandetta. “Jamais o Ministério da Saúde solicitou ao Exército produção para atender o que estava no kit ilusão, que era jogar esse medicamento para a atenção primária. O Exército na época nos informou que tinha em estoque X comprimidos. Falamos: pode mandar para o Ministério da Saúde para gente atravessar esse período. Eu nunca fiz agenda com o Exército para aumento da produção”, disse o ex-ministro.

O Ministério da Defesa, por outro lado, afirmou que atendeu “à orientação e à demanda do Ministério da Saúde para a produção de cloroquina” no Laboratório Químico Farmacêutico do Exército. Ofício da pasta enviado à CPI e assinado pelo atual ministro Walter Braga Netto acrescenta ainda que o laboratório não realiza “por não ser sua missão, qualquer juízo de valor de eficácia de medicamentos”, tampouco da prescrição médica. A Defesa vem repetindo essa narrativa desde o começo da crise sanitária. Em maio de 2020, ao ser questionado pela reportagem do EL PAÍS sobre a produção da cloroquina, o Centro de Comunicação Social do Exército informou que o Laboratório do Exército “recebe demandas do Ministério da Saúde, por meio de Termos de Execução Descentralizada”. E que “nestes casos, após produzido o medicamento, o mesmo é distribuído às Secretarias Estaduais de Saúde e ao Estoque Regulador, conforme pauta definida pelo próprio demandante (Ministério da Saúde)”. Por fim, informou também que a destinação do material produzido caberia ao Ministério da Defesa, “conforme orientação do Ministério da Saúde”.

Quando Bolsonaro anunciou que ampliaria a produção de cloroquina em 21 de março de 2020, mencionou estudos sobre o medicamento para a covid-19 iniciados pelo Hospital Israelita Albert Einstein, mas não fez qualquer menção ao Ministério da Saúde ou ao seu então ministro, Mandetta. “Agora há pouco me reuni com o senhor ministro da Defesa [na época, Fernando Azevedo e Silva] onde decidimos que o laboratório Químico e Farmacêutico do Exército deve imediatamente ampliar a sua produção deste medicamento”, disse o presidente em uma postagem nas redes sociais. O LQFEx aumentou a sua produção logo depois, a partir de 23 de março. Em abril, um texto no site do Exército afirmava que o medicamento usado contra malária, artrite e lúpus estava em falta nas farmácias em virtude da divulgação do seu uso contra o coronavírus. A ordem do presidente não parece ter sido formalizada pelos órgãos competentes, o que alimenta as suspeitas de que havia um funcionamento paralelo ao controle do Estado das questões da pandemia. Perguntamos aos ministérios da Saúde e Defesa sobre quem é o responsável pelo aumento da produção de cloroquina, mas, até a publicação desta reportagem, não tivemos resposta.

A cadeia de distribuição

Antes da crise da covid-19, o laboratório militar produzia um lote de 250.000 comprimidos a cada dois anos, “sendo esta demanda exclusiva do Exército Brasileiro, para o combate à malária”. À CPI, o Ministério da Defesa informou que as entregas do medicamento pelo LQFEX ocorreram diretamente às Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, totalizando 2.463.200 comprimidos de cloroquina 150mg. Ao todo, o Governo distribuiu 5.416.510 comprimidos, sendo 2.953.310 do estoque do Ministério da Saúde. Acrescentou ainda que a “entrega da produção, demandada pelo Ministério da Saúde, foi atendida por intermédio das pautas encaminhadas pelos Ofícios números 150, 167 e 254/2020/CGAFME/DAF/SCTIE/MS, anexos”. Estes documentos, porém, não fazem alusão a qualquer pedido de produção embora orientem como distribuir os medicamentos tendo em vista informações de pronta entrega e de aumento da produção pelo laboratório do Exército durante a pandemia.

Os próprios documentos enviados pelo Ministério da Defesa à CPI da Pandemia contradizem o que afirma o atual titular da pasta, Walter Braga Netto, no ofício enviado aos senadores e o que declarou o próprio presidente Jair Bolsonaro no vídeo divulgado por ele em 21 de março do ano passado. Os papéis enviados à CPI mostram que um dia antes do anúncio do presidente ocorreu a primeira dispensa de licitação para a compra da matéria prima (o IFA) necessária para a produção do medicamento. Três dias depois, foram empenhados recursos para o pagamento. Mas a nota do Ministério da Saúde com orientações para o uso compassivo (quando não há outro recurso terapêutico para os pacientes graves em ambiente hospitalar) da cloroquina em casos graves de covid-19 ―alegada pela Defesa como motivo para o aumento da produção― só foi publicada no dia 27 de março.

CPI escuta nesta quarta ex-diretor do MS acusado de pedir propina

Nesta terça-feira, a CPI da Pandemia ouviu o depoimento da servidora Regina Célia Silva Oliveira, fiscal do contrato do Ministério da Saúde com a Bharat Biotech para fornecimento de 20 milhões de doses da vacina Covaxin. Em um depoimento bastante técnico, a servidora afirmou que nunca foi nomeada para cargos por razões políticas e que não conhece o líder do Governo na Câmara Ricardo Barros, apesar de, segundo informações trazidas por alguns senadores, ter sido nomeada por ele. Oliveira disse ainda que não viu nada “atípico” no contrato, investigado pelo Ministério Público Federal e que gera cobranças do TCU (Tribunal de Contas da União). Nesta quarta, a CPI da Pandemia ouve Roberto Dias, ex-diretor de logística do Ministério da Saúde exonerado após denúncia de cobrança de propina na negociação com a empresa Davati.

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