Mensagem revela indício de que Lava Jato manteve cooperação irregular com autoridades da Espanha
Conversas informais entre procuradores dos dois países tinham como foco o processo do ex-advogado da Odebrecht, Rodrigo Tacla Duran, considerado foragido pela Justiça brasileira, que desde 2016 vive em Madri
Uma troca de mensagens perdida em meio a mais de 100 páginas de um relatório enviado pela defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Supremo Tribunal Federal revela indícios de que a Lava Jato manteve cooperação informal não só com Suíça e Estados Unidos, como acusam os advogados do petista, mas também com a Espanha. No alvo, no entanto, está o ex-advogado da Odebrecht, Rodrigo Tacla Duran, considerado foragido pela Justiça brasileira, que desde 2016 vive em Madri.
Em 29 de novembro de 2017, o procurador Julio Noronha compartilha em um chat uma mensagem em espanhol que trata de um depoimento que Tacla Duran daria à Justiça no dia 4 de dezembro daquele ano. Na mensagem, a autoridade espanhola informa que o 2º Tribunal Central de Instrução iria receber Duran para um depoimento sobre fatos ocorridos em duas offshores espanholas, Vivosant e Gvtel, empresas que supostamente foram usadas para operar um esquema de repasses de recursos ilícitos da Odebrecht. “Informo que Rodrigo Duran Tacla apresentou uma carta ao Tribunal dizendo que não se manifestará às autoridades brasileiras e faz alegações a esse respeito”, informa a autoridade espanhola na mensagem compartilhada por Noronha no Telegram.
Diante da negativa de Duran, a autoridade espanhola explica que o tribunal não fixou data para execução da carta rogatória ―um tipo de comunicação entre o Judiciário dos países com objetivo de obter colaboração em atos processuais, no caso, para a realização de um depoimento. “Qual a opinião dos senhores a esse respeito? Vocês renunciam à comissão rogatória? Na minha opinião, se vocês concordam, devemos realizá-la com um questionário de perguntas (...) pelo menos vocês interrompem a prescrição dos fatos”, sugere a autoridade espanhola.
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A conversa, aparentemente inofensiva, entra no radar num momento em que os acordos de cooperação da Lava Jato estão sendo colocados em xeque. No dia 7 de junho, uma reportagem da BBC revelou que um grupo de 20 congressistas norte-americanos, dentre eles a democrata Alexandria Ocasio-Cortez, enviou uma carta ao Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DoJ) pedindo informações sobre como se deu a cooperação entre EUA e Brasil na Operação Lava Jato. A preocupação dos parlamentares é que os investigadores norte-americanos tenham “se envolvido ou participado de atos recentemente considerados ilegais pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro (STF)”.
O STF decidiu em 15 de abril anular todas as condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no âmbito da Operação Lava Jato em Curitiba. A deputada democrata Susan Wild afirmou à BBC que há muito tempo se preocupava com as consequências da operação para a democracia brasileira, especialmente pelo afastamento de Lula das eleições em 2018. “Se o DoJ desempenhou algum papel na erosão da democracia brasileira, devemos agir e garantir a responsabilização para que isso nunca se repita”, disse. Wild afirma que os EUA devem estar atentos aos seus atos na América Latina devido ao histórico de intervenção política na região, como aconteceu com o apoio dado pelo país à ditadura brasileira.
Em 16 de abril, a Corregedoria do Ministério Público Federal (MPF) abriu uma sindicância para investigar supostos acordos informais entre a força-tarefa de Curitiba com autoridades suíças e norte-americanas. Isso após o ministro Ricardo Lewandowski pedir esclarecimentos à Procuradoria-Geral da República sobre se houve irregularidades nas tratativas com autoridades estrangeiras envolvendo o acordo de leniência da Odebrecht. Problemas nas colaborações, no entanto, já haviam sido apontados tanto pelas defesas de réus da Lava Jato quanto por um tribunal suíço, que declarou em 2016 que a cooperação entre os dois países foi marcada por uma postura “selvagem”, que tornou os mecanismos próprios de cooperação jurídica internacional ineficazes”. “A colaboração selvagem e os problemas havidos na relação entre Suíça e Operação Lava Jato demonstram que a excessiva flexibilização na aplicação dos princípios e regras das colaborações internacionais implicam grave ofensa a direitos fundamentais e a soberania nacional”, afirma o advogado Pedro Serrano.
Há um rito burocrático a ser seguido em acordos internacionais para os pedidos entre a Justiça de diferentes países. O Ministério Público Federal no Paraná tem que enviar uma solicitação para a Secretaria de Cooperação Jurídica Internacional da PGR, que, por sua vez, encaminha a demanda ao Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI) do Ministério da Justiça, que vai representar o país perante a autoridade internacional. O mesmo vale para o caminho de volta.
Os tratados mais recentes sobre cooperação jurídica internacional celebrados pelo Brasil possibilitam a comunicação direta entre Autoridades Centrais, como é o caso do Acordo de Cooperação Jurídica e Assistência Judiciária em matéria penal entre o Reino da Espanha e a República Federativa do Brasil, assinado em 2006. “As Autoridades Centrais serão encarregadas de apresentar e receber, por comunicação direta entre si, os pedidos de assistência a que se refere o presente Acordo”, informa o tratado. Em ambos os casos, a Autoridade Central é representada sempre pelo Ministério da Justiça de cada país. As Partes podem, por meio dos canais diplomáticos, comunicar mudanças na designação de Autoridades Centrais. “O pedido de assistência deve ser feito por escrito. No entanto, pode ser antecipado por fax, e-mail ou outro meio equivalente, e deve ser confirmado por um documento original assinado pela Parte solicitante no prazo de 15 dias de sua formulação”, informa o acordo.
Sebastian Suarez, advogado de Tacla Duran, aponta em nota que, embora a mensagem da autoridade espanhola compartilhada com o procurador Julio Noronha trate de comunicação entre Espanha e Brasil, “tais tratativas não se encontram nos autos da referida Solicitação de Assistência (SAJ), que tramitou entre as autoridades centrais de ambos os países”, o que violaria o acordo internacional. Ele informa, no entanto, que seu cliente não seguirá a mesma estratégia do ex-presidente Lula, que busca provar com as mensagens da Spoofing que a Lava Jato atuou de forma ilegal ao abrir investigações e processos criminais no Brasil com base em informações obtidas irregularmente no exterior.
Ao EL PAÍS, a Procuradoria-Geral da República da Espanha informou que “é normal que os promotores mantenham comunicação ou contato direto com os componentes das promotorias de outros países, sempre com o objetivo de potencializar a cooperação internacional e conferir-lhe fluência, agilizar seu melhor cumprimento e dar andamento aos procedimentos”. E o envio de uma lista de perguntas a serem feitas à testemunha ou uma descrição com informações detalhadas sobre o assunto a ser questionado se enquadra na normalidade do preenchimento de cartas rogatórias, disse em nota a autoridade espanhola, ressaltando que, tendo devido que já decorreu desde o depoimento de Tacla Duran, não seria possível recolher informações mais específicas ou detalhadas sobre o conteúdo ou resultado da comissão rogatória.
“Arranjar crime antecedente”
A cruzada de Lula contra as cooperações internacionais tem como pano de fundo as estratégias da força-tarefa para conseguir pescar informações em outros países. É o caso de Liechtenstein, onde a saída criativa dos procuradores foi criar uma narrativa. “Tem que arranjar crime antecedente para conseguir cooperação por lavagem”, orientou o chefe da força-tarefa Deltan Dallagnol, em mensagem de 9 de fevereiro de 2015, para tentar contornar a dificuldade na cooperação. No caso da Suíça e Andorra, os advogados apontam que documentos chegaram em pen drive, o que pode ter comprometido a cadeia de custódia. “Temos uma combinação com suíços”, disse o procurador Paulo Galvão, em mensagem de 26 de julho de 2016, para explicar por que a orientação era não fazer nenhum um pedido de cooperação internacional.
Desde 2015, já se sabe que os procuradores utilizaram atalhos para trazer do exterior documentos, por exemplo, de contas bancárias de investigados como Paulo Roberto Costa e Alberto Youssef, sem passar pelo Ministério da Justiça. Na época, a própria Secretaria Nacional de Justiça alertou o MPF de que as provas obtidas fora dos tratados internacionais seriam ilegais. Mas nada aconteceu. O então secretário de cooperação internacional da Procuradoria-Geral da República Vladimir Aras chegou a argumentar que “são corriqueiros e absolutamente comuns os contatos diretos entre autoridades de persecução de países distintos”. O business as usual nas tratativas internacionais se seguiu, e apenas em julho de 2020 que uma reportagem realizada pela Agência Pública em parceria com o The Intercept Brasil, mostrou que essa cooperação foi muito além de comunicações irregulares e troca ilegal de documentos por canais não oficiais. Os procuradores combinaram até extradições ilegais com autoridades norte-americanas.
Procuradores que integraram a força-tarefa Lava Jato no Paraná, por sua vez, avaliam que as conversas e tratativas entre agentes de diferentes países são absolutamente legais, estão previstas em diversas normas e constituem boa prática na cooperação internacional. “Muitas vezes é imprescindível a troca de informações de inteligência diretamente entre as autoridades dos países, com a finalidade de identificar quais informações e documentos serão formalmente solicitados, sem que essa troca de informações de inteligência se constitua em qualquer ilegalidade”, responderam por nota enviada ao EL PAÍS.
Tacla Duran e a Lava Jato
Tacla Duran e a força-tarefa tem um longo histórico de conflito. O advogado chegou a negociar uma delação premiada quando estava no Brasil, mas nunca concordou com o prêmio oferecido em troca pela Lava Jato ―assumir culpa e cumprir pena de prisão, mesmo que domiciliar. Pelos mesmos motivos, aliás, ele se recusou a aceitar a entrar no pacote de negociação de executivos da Odebrecht. Segundo os procuradores, o MPF desistiu do pedido de oitiva feito à Espanha uma vez que Tacla Duran informou à Justiça espanhola que exerceria seu direito constitucional ao silêncio na audiência. “Assim, para evitar custos decorrentes do deslocamento que não trariam benefícios ao esclarecimento dos fatos e ao interesse público, o Ministério Público Federal desistiu da carta rogatória”, afirmaram em nota. Quanto ao teor das mensagens, os procuradores reafirmam que “não reconhecem o material criminosamente obtido por hackers, que tem sido editado, descontextualizado e deturpado para fazer falsas acusações sem correspondência na realidade”. O material, porém, já passou por perícia que indica a veracidade das comunicações.
Os procuradores reiteraram que Tacla Duran, “de acordo com sua própria confissão perante autoridades espanholas”, atuou como operador financeiro na lavagem de centenas de milhões de dólares e como parte de uma organização criminosa, cometeu crimes financeiros, tributários e de lavagem de dinheiro transnacional. Eles citam um e-mail remetido por Duran a executivos da Odebrecht em que ele confessa seu crime: “Operei com vocês + de USD$ 300.000.000,00 e acredito eu que nunca trouxe problemas ou aborrecimento de qualquer natureza a vocês”.
Segundo o advogado de Tacla Duran, seu cliente “tem imunidade penal, nos termos da Convenção das Nações Unidas (Merida), sobre os fatos da operação Lava Jato”, conforme consta em resolução da Interpol de 16 de setembro de 2020, que também já havia cancelado, em julho de 2018, o alerta vermelho referente à decisão do ex-juiz Sergio Moro, “devido a falta de imparcialidade do então magistrado, para julgar os casos em que Rodrigo Tacla Duran seja parte”.
Segundo dados do MPF, a Espanha responde apenas por 15 dos 597 pedidos de cooperação internacional em matéria penal realizados pela Lava Jato a 58 países desde 2014. Neste período, o Brasil recebeu 653 pedidos de 41 países. A maior parte das solicitações feitas por autoridades estrangeiras se refere a depoimentos de investigados, testemunhas, vítimas ou peritos na fase extrajudicial. O país com maior número de demandas, com 41,2% das solicitações, é o Peru, seguido pela Suíça (36,8%). Já no caso dos pedidos de cooperação feitos pelo Brasil, os principais objetos são citação, obtenção de documentos sujeitos a sigilo financeiro ou fiscal e bloqueio de ativos financeiros. A maioria desses pedidos tiveram como destino a Suíça (31,3%), seguido dos Estados Unidos (12,9%).
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