Isaac, Rafael e Danilo deviam estar na escola para aprender a ler. De casa, mães assumem a função
Elas se dividem entre o trabalho doméstico e o apoio na alfabetização dos filhos e temem impactos na aprendizagem e no desenvolvimento cognitivo deles. Na rotina, um divide a TV com irmão, outro não tem internet para seguir as aulas online
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Isaac, de 7 anos, acordou em um pulo, espreguiçou-se, vestiu o uniforme escolar, pendurou a mochila em suas costas e disse à mãe: “Estou preparado para ir à escola”. O menino morador de Santíssimo, na zona oeste do Rio de Janeiro, ouviu que sim, o semestre letivo de 2021 havia iniciado naquela quarta-feira, 10 de fevereiro, mas que a aula seria via TV Escola, canal que abarca conteúdos do Rio Educa, a atividade inicial prevista. Seu ânimo se esvaiu de imediato e ficou cabisbaixo. “Sério?”, exclamou, frustrado. Seguiu para a cozinha, tomou café da manhã sob o olhar de um dos três irmãos, enquanto sua mãe acompanhava outro que finalizava uma aula de mesmo formato. Como na casa só há uma TV, Isaac precisou aguardar a aula do seu irmão terminar para que conseguisse assistir a sua. Perdeu cerca de 5 dos 15 minutos de aula por conta disso.
“Não há o que fazer, vou ter que ir intercalando entre eles porque as aulas são próximas”, explicou Marcela da Silva, de 40 anos, mãe de Isaac, em tom de resignação. Além das atividades pela TV, a escola ministra aulas ao vivo por meio de videoconferências e envia materiais didáticos para complementar o estudo. As aulas da rede municipal do Estado do Rio de Janeiro iniciaram na semana do dia 8 de fevereiro no formato remoto, e o retorno gradual das aulas presenciais, cuja volta fica a critério dos pais, começaram no dia 24 de fevereiro, pelos alunos da pré-escola, 1° e 2° ano do Ensino Fundamental. Na primeira fase, 38 unidades voltaram a funcionar. A escola de Isaac, porém, ainda não tem previsão de abertura. Assim como ele ―que segue com aulas remotas e precisa intercalar o uso da única televisão com o irmão para acessar os conteúdos― outras crianças precisam driblar a falta de acesso à internet. Mesmo sem experiência pedagógica, as mães se dividem entre o trabalho doméstico e o apoio aos filhos enquanto temem impactos tanto na aprendizagem quanto no desenvolvimento cognitivo das crianças.
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Já em Itaguaí, município também da Baixada Fluminense, Danilo Moura acordava para reiniciar as duas semanas finais do semestre letivo de 2020. O menino de 7 anos mora na favela do Carvão, a 15 minutos do centro da cidade. Com um semblante de sono, fez o que tem sido sua rotina desde o começo da pandemia: acordar, alimentar-se, assistir um pouco de desenho animado e, impreterivelmente, estudar com auxílio da sua mãe de 9h às 12h. Senta-se em uma mesa espaçosa localizada na cozinha da casa, onde há lápis de cor e cadernos de séries anteriores. Semanalmente, sua mãe Deneiuza Moura, de 41 anos, busca as lições na escola, já que o acesso à internet é praticamente nulo na residência, o que dificulta a entrada na plataforma disponibilizada pela prefeitura.
Três pontos em comum ligam essas crianças: são estudantes da rede pública de ensino de diferentes municípios do Rio de Janeiro, estão em fase de alfabetização e moram em áreas periféricas da cidade. As aulas presenciais das redes municipais foram suspensas ainda no começo da pandemia do coronavírus, em março de 2020, em todas as localidades. Desde então, as famílias lidam com o desafio do ensino remoto, estabelecendo rotinas de estudo quando é possível, em meio às incertezas sobre o futuro e receios quanto ao recrudescimento do avanço do vírus no país. O EL PAÍS acompanhou o primeiro mês da conturbada volta às aulas delas, observando seus cotidianos, principais desafios e preocupações.
A falta da escola
Deneiuza, a mãe de Danilo, acreditava que a pandemia fosse durar, no máximo, dois meses. Assim que as medidas restritivas foram implantadas para conter a disseminação do coronavírus, ela se preocupou com a rotina de estudos dos seus três filhos, com idades entre 7 e 15 anos. Não queria que eles ficassem “à toa” e, por conta disso, estabeleceu que cada um estudaria três horas por dia, sob sua orientação. A técnica de logística não atua na área há quase duas décadas, então se dedica a cuidar de afazeres domésticos e dos filhos.
Para Cristiane Moris, professora do curso de Pedagogia do Instituto Singularidades, a rotina para o processo de aprendizagem é fundamental, independentemente da modalidade do ensino. “Na medida em que eu não tenho a rotina do horário da aula, em que eu vou à escola e depois de um período eu volto para casa, isso delimita um espaço no meu dia. Sem isso o dia vira uma coisa só”, explica. “Tudo vira um limbo, as dimensões de dias da semana, finais de semana ficam muito mais fluidos quando os adultos não estabelecem rotinas para as crianças.”
Estudante do primeiro ano do Ensino Fundamental, Danilo tinha a expectativa de se desenvolver na escrita e leitura, mas termina a série sabendo escrever apenas o seu nome e dos membros da família. Também não sabe os números, o que o deixa irritado ao ser perguntado a que horas acorda. “Não sei”, responde rispidamente.
De acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a alfabetização deve ocorrer entre o primeiro e o segundo ano do Ensino Fundamental. Mas pode acontecer antes, caso haja incentivos. Moris explica que não é uma meta da Educação Infantil alfabetizar, mas que pode ser uma consequência desse processo se houver estímulos à escrita e leitura, como atividades diárias de leitura em conjunto, produção de cartazes e listas. De todo modo, a professora ressalta que os responsáveis devem introduzir práticas como essas no cotidiano das crianças, independentemente da modalidade de ensino que elas dispõem, além do acesso constante aos bens da cultura, como teatro, museus, bibliotecas.
É o que aconteceu com Isaac que, mesmo não tendo conseguido acompanhar as aulas remotas no ano passado por causa da falta de conectividade à internet, é bem desenvolvido na leitura e na escrita. Na pré-escola, teve contato com saberes diversos e rememora com entusiasmo um passeio à Fundação Planetário da Cidade do Rio de Janeiro, instituição que tem como propósito disseminar a astronomia e as ciências. “Nunca tinha visto tantos planetas assim, de pertinho. É muito legal ver as estrelas, tocar no telescópio”, conta.
Rafael vivenciou o oposto. O menino enfrentou dificuldades de aprendizagem no primeiro ano do Ensino Fundamental, não conseguiu acompanhar as aulas remotas em 2020 e passou o ano inteiro sem qualquer material didático ou lições escolares. “Ficou parado o tempo todo”, afirma a mãe, Tamiris Moura, que demonstra preocupação com as possíveis consequências da lacuna que se abriu, já antevendo prejuízos na formação escolar por conta do “ano que parece não ter existido”. “Para que eles tenham um bom futuro precisam de um bom estudo. E como vai ser depois de um ano desse?”, questiona.
Na avaliação de Gabriel Corrêa, líder de políticas educacionais da ONG Todos pela Educação, é imprescindível que, feito o acolhimento inicial na reabertura das escolas, sejam realizados diagnósticos sobre as condições individuais de cada aluno em relação ao nível de alfabetização, medindo habilidades de escrita, leitura e conteúdos básicos de matemática em que se encontram. Logo após essa investigação, a recomendação é atenção continuada. “Se o poder público e as escolas públicas conseguirem oferecer programas de reforço e recuperação da aprendizagem que foi perdida, é possível recuperar esse tempo perdido, mas que não vai ser feito em poucos meses, e isso talvez não seja feito em 2021.”
Pandemia amplia desigualdades
Outro ponto ressaltado por Corrêa refere-se ao número alarmante de crianças que concluem o terceiro ano do Ensino Fundamental sem estarem plenamente alfabetizadas: mais da metade dos brasileiros. Segundo ele, essa é uma realidade crítica do país, que traz consequências preocupantes. “Crianças não alfabetizadas na idade certa têm muita dificuldade de aprender o que devem na trajetória escolar. Também lá na frente, quando forem mais velhas, têm uma maior tendência à evasão, a não concluírem a educação básica, porque a escola para de fazer sentido.”
Para Ítalo Dutra, chefe de Educação do Unicef Brasil, a recomendação é que a escola deve estar aberta e tem que ser a última a fechar e a primeira a reabrir em contextos de retomadas econômicas e em meio à nova onda do coronavírus. O educador pontua que a escola precisa ser vista como prioridade e alerta que é necessário trabalhar para reduzir as desigualdades: “Vamos ter um fosso entre grupos, que se ampliou durante a pandemia, podendo ter consequências de médio e longo prazo. Precisamos trabalhar para fazer escolhas adequadas, entendendo o que é fundamental para o aprendizado de crianças e adolescentes.”
Dutra adiciona que a perda de vínculo que muitos alunos tiveram com a escola é também alarmante. De acordo com uma pesquisa do Unicef com dados da Pnad Covid de outubro de 2020, realizada pelo IBGE, 3,8% das crianças e dos adolescentes de 6 a 17 anos (1,38 milhão) não frequentavam mais a escola no Brasil, seja na modalidade remota ou presencial. O dado supera a média nacional de 2019, que ficou em 2%. Além dessa estatística, 11,2% dos estudantes que diziam estar frequentando a escola não haviam recebido nenhuma atividade escolar, e não estavam em férias (4,12 milhões). A entidade estima que 5,5 milhões de crianças e adolescentes não tiveram acesso à educação em 2020.
Uma questão que se destaca para Tamiris é a pouca interação social que há quando não se está na escola. Ela teme que o filho regrida nas expressões de modo geral, ainda que Rafael seja extrovertido. Ele tem predileção por brincadeiras que eram realizadas na quadra do colégio em que estuda, onde podia relacionar-se com crianças de várias idades e séries. Cristiane Moris diz que o que está em jogo é o processo de socialização e de construção da identidade, que decorre do contato com o diferente, com aquilo que identifica-se ou rejeita-se. Segundo ela, esses embates e acordos são fundamentais para o desenvolvimento das crianças enquanto sujeito. “A construção da identidade também passa pela convivência com o diferente, contato com a diversidade, o que amplia as referências, o vocabulário. Em uma criança que não teve contato nem com o remoto, o efeito é ainda mais nefasto”, observa.
Desafios para além do aprendizado
Os impactos, no entanto, não se restringem à aprendizagem. Corrêa destaca que a escola também atua no desenvolvimento cognitivo, emocional, social e físico das crianças, além de ser um instrumento de proteção contra riscos como a desnutrição, a violência, o trabalho infantil, dentre outras violências às quais crianças e adolescentes ficam mais suscetíveis quando não estão na escola.
Em comum, as três mães ressaltam que, mesmo fazendo os esforços possíveis para que as crianças não deixem de estudar, auxiliando-as na execução das atividades, ainda não é uma orientação como a que um professor faria. “Na escola, eles têm a infraestrutura necessária, o convívio com os colegas e o professor, que é especializado. Sala de aula é sala de aula”, afirma Tamiris Moura. O incômodo também é expressado pelos meninos, que sentem dificuldade de compreender as mães nessa dupla função. “Mamãe é legal, mas sinto falta da minha professora”, confessa Danilo.
Na observação de Cristiane Moris, a função dos pais é acompanhar os estudos, mas que o estado de emergência global flexibiliza essa relação. “Em termos absolutos, a minha posição é de que a família não está ali para ensinar nem fazer a lição de casa. Se os pais não forem pedagogos, eles não sabem alfabetizar”, diz, explicando que, ainda assim, é louvável que as famílias tentem fazer alguma coisa diante da situação gerada pela pandemia, e adiciona: “Eu diria que bom que há o estranhamento por parte da criança, significa que ela tem clareza dos papéis.”
Medo de covid-19
Marcela teme como será se algum aluno da classe de Isaac se infectar pelo vírus. “As aulas serão interrompidas? Eles ficarão de quarentena?”, questiona. Ela revela medo com o retorno das aulas presenciais, visto que os professores e os alunos não foram vacinados contra a covid-19. Na visão de Corrêa, da ONG Todos pela Educação, os professores precisam receber prioridade na vacinação, dado os impactos da educação básica para o país. “Isso não significa condicionar o retorno presencial à vacinação, mas fazer esses esforços dos dois lados”, defende.
As mães das três crianças relatam que, por vezes, é difícil administrar tantas demandas, porque precisam auxiliar todos os filhos nos trabalhos escolares, fazer tarefas domésticas e lidar com sentimentos aflitivos, como as incertezas do rumo da pandemia que já matou mais de 290.000 brasileiros, ou até mesmo o que será preciso retirar da já instável lista de mantimentos. Nos três lugares onde as crianças moram houve entregas de cestas básicas ou cartão alimentação pelos órgãos municipais, mas não foi de modo contínuo como prometido. O auxílio emergencial também teve papel fundamental em casos de perda total de renda, como aconteceu com Tamiris. Assim como ela, o seu esposo está desempregado.
A assistência permitiu pagar as contas e fazer uma obra no quintal, que foi nivelado de modo a deter a entrada de água da chuva na casa, o que trazia desespero e prejuízos com frequência. “Menos um problema”, desabafa. Ela esperava que o Governo Jair Bolsonaro estendesse o benefício neste ano e, se possível, aos 600 reais mensais. “Duzentos e cinquenta reais ajuda, mas não dá para comprar muita coisa no mercado”, explica a mãe de três filhos ao se referir ao valor aprovado no Congresso para o auxílio.
Não raro, elas confessam que a falta de paciência as faz subir o tom de voz, dar respostas ríspidas e, no lugar do olhar terno, a aspereza das palavras que reposicionam as crianças de imediato. “Você fala A, mas a criança entende B. Eu fico esgotada”, conta Marcela, mãe de Isaac. “Ela fica um pouco brava de vez em quando”, Danilo conta rindo, mas deixando expresso o prazer de estudar com a mãe, Deneiuza: “É bom ficar mais tempo com minha mãe, ela explica direitinho”, diz.
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