Radiografia da São Paulo que nunca parou durante a pandemia de coronavírus
Governo João Doria mantém uma lista grande de atividades essenciais, que não se restringem a mercados e farmácias. Trabalhadores da construção civil, tanto a formais como informais, relatam a rotina. Maior parte dos autônomos não tem como fugir dos transportes lotados
Aviso aos leitores: o EL PAÍS mantém abertas as informações essenciais sobre o coronavírus durante a crise.
Parte considerável de São Paulo nunca parou ao longo da pandemia de coronavírus. Não se trata daquelas pessoas que não respeitam as medidas restritivas decretadas pelo governador João Doria (PSDB), mas sim das que exercem atividades consideradas essenciais. A lista é grande. De um lado estão setores que, se fechados, afetariam diretamente o dia a dia dos cidadãos, como supermercados, farmácias, pet shops, postos de gasolina, hospitais, redes de abastecimento, entre outros. Do outro, atividades tidas como essenciais para a economia pelas autoridades ou de baixo custo em termos de contágios, como construção civil, indústria, hotelaria, feiras livres, locação de automóveis e até bancas de jornais. Em comum, essas atividades empregam muitas pessoas. Estão autorizadas a funcionar mesmo na fase vermelha do Plano São Paulo, nível de maior restrição à circulação. Todas elas, em maior ou menor medida, geram fluxos de pessoas e aumentam aglomerações, sobretudo nos transportes públicos, um gargalo que o poder público não conseguiu resolver após um ano de pandemia.
O mestre de obras José de Souza só interrompeu suas atividades no início da pandemia, por cerca de 20 dias, quando tudo ainda era muito novo. Hoje, ele trabalha na construção de um prédio no centro da capital paulista com cerca de 150 funcionários, todos de carteira assinada e com um salário médio de 2.000 reais. “Eu venho de carro. Mas o pessoal chega cedo, por volta de 6h, justamente para evitar a condução lotada. A partir de 13h já começam a ser liberados, para pegar o metrô vazio”, explica o homem. Ele garante que no canteiro de obra onde trabalha nunca foi registrado um só caso de covid-19. Todos usam sempre máscara e se revezam na hora de comer, garante. “Se uma pessoa aparece com sintomas, avisa e a empresa paga pelo teste. Tem enfermeiro nas obras. Se precisa, a gente liga e eles aparecem. Aqui nós não vacilamos, não”, argumenta.
Mas os cuidados relatados por Souza não necessariamente acontecem na mesma proporção em outros lugares. O EL PAÍS esteve em outros cinco canteiros de obras nesta quinta-feira e verificou que em todos eles havia trabalhadores sem máscaras. Em uma loja que estava sendo reformada, os trabalhadores eram autônomos e não estavam submetidos a nenhum tipo de protocolo de segurança. “Trabalho de 9h às 17h e todo dia pego metrô lotado. Lá eu uso máscara, mas aqui eu trabalho sossegado, praticamente sozinho”, conta Manoel Pereira, de 54 anos, enquanto passa cimento na parede. Ele está sem máscara, mas longe de um colega. “Eu ouço na televisão que só pega se a distância for de menos de dois metros”, justifica. Ele não sabe se pegou covid-19, mas diz que já chegou a “passar mal de resfriado” ano passado. Chegou a parar? “Nunca. Se eu parar, como dar comida para os moleques?”, questiona o homem, que recebe cerca de 3.000 reais por mês pelos serviços que faz.
Do total de trabalhadores do Estado de São Paulo, tanto os informais como aqueles com carteira assinada, quantos exercem atividades essenciais? Em entrevista ao EL PAÍS, a secretaria de Desenvolvimento Econômico, Patricia Ellen, afirma que representam no máximo 25% de toda a mão de obra. Este jornal também acessou os dados do quarto trimestre de 2020 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) e verificou que a construção civil, um dos principais motores econômicos do Estado, emprega 1,3 milhão de pessoas, o que representa cerca 6,35% das pessoas maiores de 14 anos ocupadas. Já a indústria emprega cerca de 3,3 milhões de pessoas em todo o território paulista, ou 16% da mão de obra. Assim, somente os setores da construção e da indústria empregam, juntos, 22,38% de todos os trabalhadores paulistas.
Levantamentos semanais, feitos entre 1º de maio de 2020 e 10 de março de 2021, do Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo (Sinduscon-SP) e do Serviço Social da Construção Civil do Estado de São Paulo (Seconci-SP) mostram que, apesar dos cuidados promovidos pelas empresas e sindicatos, a construção civil não fica imune à crise sanitária. De uma média de 30.975 trabalhadores, 4.487 (14,5%) deram positivo para covid-19 e e 9.307 (30%) foram afastados com sintomas da doença ao longo desse período. Somente dois óbitos foram notificados, ambos no mês de maio. De acordo com Antonio Ramalho, presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Civil (Sintracon-SP), 57 trabalhadores morreram de covid-19, mas todas as mortes ocorreram até maio do ano passado, ele garante.
As pesquisas também indicam que o setor não escapa da dinâmica da pandemia. No auge da primeira onda, entre 18 e 24 de junho, foram confirmados 378 casos de covid-19 em 364 obras. Além disso, 558 pessoas foram afastadas por suspeita de contágio. A situação prosseguiu e, entre 30 de julho e 5 de agosto, 874 pessoas com sintomas foram afastadas de 464 obras e outras 262 deram positivo nos exames. Os números caíram drasticamente nos meses seguintes —em meados de outubro, chegou-se a registrar somente 14 casos positivos ao longo de uma semana. Mas voltaram a subir ligeiramente em dezembro, coincidindo com a segunda onda da pandemia. Entre 4 e 10 de março, 80 operários de 530 obras deram positivo no teste para covid-19 e 157 foram afastados com sintomas.
Ramalho afirma que o setor constituiu um fórum de combate ao coronavírus com empresários e trabalhadores, e do qual fazem parte entidades empresariais como o poderoso Secovi, o sindicato do setor imobiliário. “O fórum é permanente e conta com médicos e cientista em todas as áreas”, explica o sindicalista. Ele garante que nos canteiros de obra há verificação de temperatura, disponibilização de álcool em gel, testagem em massa dos trabalhadores, substituição de vale transporte por combustível para os operários que possuem carro, além de rodízio nos horários de almoço, café e lanche. “Há enfermeiros em canteiros com mais de 50 operários e médicos em canteiros com mais de 200 operários”, acrescenta Ramalho.
Novas restrições e critérios para atividades essenciais
Mas a piora da pandemia no Estado aumentou a necessidade de medidas de restrição ainda mais duras. Epidemiologistas vêm defendendo mais rigidez, como o chamado lockdown, o que consequentemente afetaria algumas dessas atividades consideradas essenciais. Araraquara e Ribeirão Preto são duas cidades paulistas que recentemente apelaram para esse tipo medida, o que significou o fechamento de postos de gasolina e bancos e até mesmo o funcionamento de mercados apenas por delivery.
Caso as novas restrições adotadas na última segunda-feira, 15 de março, sejam respeitadas pela população, o Governo Doria prevê retirar das ruas quatro milhões de pessoas a mais em comparação com o que prevê a fase vermelha normal. Mas as taxas de isolamento sofreram poucas alterações nos últimos dias e permanecem em 43% tanto no Estado como na capital paulista. O comitê de especialistas que assessora Doria na pandemia defende que o ideal é um índice de 55%.
Ao determinar o que deveria seguir funcionando como atividade essencial, o Governo analisou cada área a partir de cinco eixos: risco do setor com relação a exposição de trabalhadores, risco de aglomerações, escalonamento de transportes, atração de fluxo de clientes e a essencialidade, segundo explicou Ellen.
Apesar do quadro de saturação dos hospitais, com uma taxa de ocupação de UTIs superior a 91% no Estado e na Grande São Paulo, a secretária de Desenvolvimento Econômico defende a atual lista de serviços essenciais. “No caso da indústria e da construção civil, países como Alemanha e Reino Unido, que tomaram medidas ainda mais restritivas, como o lockdown, não fecharam esses setores”, explica. “Eles têm a peculiaridade de manter um fluxo previsível de pessoas para os locais de trabalho, diferentemente de atividades com atendimento ao público, que atraem clientes. Também possuem protocolos para evitar aglomerações e aceitam operar em horário alternativos para evitar o transporte público lotado”, acrescenta.
Para a epidemiologista Ethel Maciel, o maior problema é que essas atividades, por mais que possuam protocolos rígidos, geram fluxo no transporte público. “As pessoas ficam muito tempo no transporte. Distanciamento é algo inexistente. E não vimos melhorias nesse setor, com ampliação de horários e linhas”, explica. A Volkswagen anunciou nesta sexta-feira que irá suspender produção de veículos em suas quatro fábricas, três em São Paulo e uma no Paraná, por no mínimo 12 dias, entre 24 de março e 5 de abril.
Em agosto do ano passado, uma estudo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) mostrou que usar o transporte público é uma das variáveis que mais influenciam nas mortes pela covid-19 na cidade de São Paulo. O levantamento cruzou dados da Pesquisa Origem-Destino 2017 com o Sistema de Informações sobre Mortalidade da Secretaria Municipal de Saúde da capital. De acordo com a pesquisa, 80% dos óbitos pela covid-19 podem ser explicados por conta da necessidade de deslocamento de ônibus, trem e metrô nos bairros com maior número de usuários de transporte público.
Maciel argumenta ainda que até mesmo setores como o da indústria poderiam adotar em alguns casos o regime de teletrabalho. “O pessoal do TI ou do jurídico que poderiam trabalhar remotamente. E é possível diminuir a interação entre os precisam estar presencialmente”, argumenta. “Nenhum setor quer parar ou investir em mudanças. A gente poderia ter investido em horários alternativos, diminuição de jornada de trabalho, criar mais turnos... Precisamos de um grande pacto, de agir de forma equilibrada.”
De momento, o pedreiro Gustavo Alencar, de 23 anos, diz não ter como parar de trabalhar, mas que busca obedecer todas as recomendações sanitárias. Sua filha está prestes a completar um ano e ele não pode abrir mão dos 3.500 reais líquidos que recebe por mês. “Não cheguei a ficar doente, nem minha família. Mas é um risco. Conheço colega que pegou, mas fora da obra”, conta. Morador do centro de São Paulo, opta muitas vezes por ir de bicicleta, a pé ou de Uber para o trabalho, evitando o transporte público lotado. “Não tem jeito, tem que estar na luta”, afirma ele.
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