Negacionistas da pandemia promovem caçada contra jornal no interior de São Paulo
Após cobrir protestos contra o isolamento social e a favor de Bolsonaro, sede e editor da ‘Folha da Região’, de Olímpia, sofrem ataque. Em Belo Horizonte, fotógrafo foi agredido
José Antônio Arantes, 62 anos, acordou às 4h20 desta quarta-feira (17) com latidos dos seus cachorros e muita fumaça na casa. Com problemas de rinite e pouca visibilidade, ele e a esposa Sueli levantaram rapidamente, pegaram a neta de nove anos no outro quarto, saíram para a rua e só então entenderam que haviam provocado um incêndio no imóvel. Ele divide o sobrado com a Rádio Cidade, da qual Arantes é presidente, e a redação da Folha da Região, único jornal impresso de Olímpia, no interior de São Paulo, do qual ele é editor. Nos últimos dias, Arantes noticiou nos veículos onde trabalha os protestos negacionistas de comerciantes da cidade que são contra as medidas restritivas impostas pelo governador João Doria (PSDB), com o objetivo de frear a pandemia da covid-19 no Estado.
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O jornalista conta que no início desconfiou de um curto-circuito no apartamento, mas logo percebeu, ao ver um galão de gasolina do lado de fora, que se tratava de uma ação criminosa. Posteriormente, as câmeras do comércio na frente comprovaram: um homem, de moto, macacão e capacete, jogou gasolina nas portas da casa de Arantes e do jornal —apesar da casa ser no andar de cima e a redação embaixo, ambas as saídas dão para a rua—, arremessou um palito de fósforo e saiu depressa. “Se tivéssemos demorado mais uns cinco minutos, não teríamos conseguido sair”, diz Arantes.
A sorte, segundo o jornalista, é que o fogo ficou na porta e, com isso, não se alastrou pela parte da casa feita de madeira. E, na redação, tampouco chegou ao arquivo de jornais ou a uma moto que ficava guardada dentro do imóvel, o que poderia ter causado uma explosão. “A gravação demonstra que ele sabia que eu morava ali e queria me atingir. Um desespero total”, relata o editor. Como Arantes não conseguia respirar por conta da rinite, coube a Sueli apagar as origens do fogo com água e toalhas, o que lhe rendeu pequenas queimaduras no braço. A neta do casal, apesar do susto, não teve ferimentos.
A Folha da Região, que existe há 40 anos, o portal IFolha e a Rádio Cidade são três dos veículos mais tradicionais na imprensa de Olímpia, cidade de 55.000 habitantes a 435 km da capital do Estado. Conhecida pelos parques aquáticos e Festival do Folclore, a cidade conta com 23.000 leitos hoteleiros e vem sofrendo com a pandemia do novo coronavírus por ter no turismo sua principal atividade econômica. Desde que o Governo paulista voltou a aumentar as medidas restritivas por conta da lotação de UTIs por todo o Estado, comerciantes e empresários olimpienses começaram a usar as redes sociais e as ruas para protestar contra o governador Doria. Olímpia tem, hoje, 15 vagas na UTI, todas preenchidas, além de 10 pacientes graves que precisaram ser transferidos para a região metropolitana de São José do Rio Preto e 21 internados em enfermaria. Foram registrados quatro mortes e 33 casos pela covid-19 nesta quinta-feira (18).
Arantes, na Folha da Região e na sua rádio, cobriu os protestos contra as restrições. Ele também noticiou, na semana passada, que dois advogados entraram na justiça contra empresários da cidade que propagavam na internet uma carta pela “insubordinação civil, fake news e tratamento precoce”. Por fim, denunciou a aglomeração e o não uso de máscaras em protestos dos comerciantes nesta segunda (15). Logo, de acordo com ele, começaram as represálias: primeiro, uma caminhonete que seguiu e encostou no carro do seu genro, durante a madrugada, enquanto ele percorria os 50 km até São José do Rio Preto para buscar o jornal na gráfica que o imprime. Depois, quando o próprio Arantes encontrou seu carro na rua com pneus furados e parafusos das rodas frouxos. E, por último, o incêndio. O jornalista também relata ofensas e ameaças nas redes sociais, além de campanhas para empresas retirarem os anúncios do jornal. Tudo entre sexta-feira (12 de março) e quarta (17).
“São soldados do negacionismo que se juntaram”, diz Arantes. “Eu não quero acreditar que foram as mesmas pessoas [que ofenderam] as que cometeram os crimes. Esses fanáticos de Olímpia com lavagem cerebral de Brasília”, admite, “mas se for, o Brasil está entrando em uma fase calamitosa. São técnicas fascistas, e eu as conheço porque comecei a trabalhar na época da ditadura militar”. O editor vê uma clara relação entre os ataques e a política agressiva adotada pelo presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores contra a imprensa.
Ataque em Belo Horizonte
Assim como os alvos das denúncias de Arantes em Olímpia, um grupo de protestantes se aglomerou em Belo Horizonte, na última segunda-feira (15), para reclamar das medidas restritivas adotadas pelo prefeito Alexandre Kalil (PSD) frente ao agravamento da pandemia na cidade. No mesmo dia em que a capital mineira atingia o recorde de 93% de ocupação em seus leitos público e privados, manifestantes agrediram um fotógrafo do jornal Estado de Minas na avenida das Agulhas Negras, no bairro Mangabeiras, que documentava o protesto a favor de Bolsonaro. O repórter, que não quer se identificar por motivos de segurança, foi chamado de “comunista” e agredido com capacete, pontapés e mastros de bandeiras. “Tudo isso sem motivo algum. Fui à manifestação simplesmente para fazer o meu trabalho. A primeira coisa que fiz foi me identificar como imprensa, mas o clima de histeria no protesto era tal que as pessoas começaram a dizer que meu crachá era falso”, relatou ele.
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Clique aquiA Polícia Civil de Belo Horizonte informou que identificou um homem, de 68 anos, que agrediu o fotógrafo com o capacete. Ele assumiu o compromisso de comparecer a audiência no Juizado Especial Criminal e assinou o Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO), mas as investigações seguem. No caso de Olimpia, a Polícia Civil da cidade ainda não identificou nenhum suspeito. O delegado Marcelo Puppo de Paula analisou novas imagens do caso nesta quinta-feira (18), mas ainda sem novidades na investigação.
José Arantes já se diz com medo de próximos ataques, mas não a curto prazo. “Pela repercussão que teve, agora deve ter um recuo. O perigo é quando a poeira baixar. Já estou me prevenindo e contratando equipes de segurança”, contou. A maior preocupação do jornalista, no entanto, é com o futuro de seus descendentes. “Ver essa movimentação criminosa em todo país mostra que não é um objetivo local, de gente daqui da cidade. Minha mão treme até agora porque tenho angústia de pensar que meus filhos e netos podem viver a mesma coisa que eu vivi na ditadura”, confessa.
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