São Paulo, a cidade mais rica do Brasil, já vive “situação de guerra” da saúde sem remédio e sem leitos
Estoques de sedativos e bloqueadores musculares só devem durar 20 dias, diz associação de planos de Saúde, ecoando situação nacional alertada por governadores. Hospitais privados enfrentam superlotação de UTI e dificuldade para expandir leitos enquanto tentam transferir pacientes
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Em São Paulo, a cidade mais rica do país e com o mais robusto sistema de saúde, hospitais privados vivem uma “situação de guerra” e espelha o caótico cenário da pandemia no país. O panorama é dramático nestas unidades, com parte delas já no limite de internações em leitos de UTI e filas de pacientes aguardando transferência para outros hospitais privados. Se este setor já enfrentava dificuldade para seguir expandindo leitos, nesta semana somou-se um problema preocupante até para o funcionamento dos leitos já existentes: a escassez de medicamentos para a intubação de pacientes com covid-19, sem os quais fica inviável colocá-los em ventilação mecânica invasiva para ajudá-los a respirar. Só há estoques suficientes para os próximos 20 dias no país nos SUS, um problema que governadores alertam em carta ao Ministério da Saúde em que pedem importação emergencial dos remédios. A situação também é relatada em São Paulo, segundo a Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), que, junto com outras associações de intensivistas, médicos e planos de saúde, negocia com o Governo mudanças na legislação para facilitar a importação dos insumos. Hospitais privados e operadoras de saúde dizem que trabalham diariamente com preocupação pelo aumento da demanda e do contágio e veem o isolamento social como a principal medida para evitar um colapso generalizado. “O dia a dia das operadoras é de preocupação. Se o ritmo de contágio continuar, nem que a gente abra milhares de leitos todos os dias. Não há outra solução que não a conscientização da população”, diz o superintendente-executivo da Abramge, Marcos Novais.
As cenas do colapso em Manaus ou no Nordeste no ano passado que, a priori, têm menos recursos que a capital paulista, se repetem em toda São Paulo. Não adianta ser abastado e pagar um plano de saúde bom, embora a população mais pobre seja sempre a mais atingida pela pandemia desde o começo da crise. Agora, até mesmo a rede privada ―que atende pessoas com maior poder aquisitivo― começa a dar sinais de colapso. “É uma situação de guerra”, define o presidente do Sindicato de Hospitais, Clínicas e Laboratórios (Sindihosp), Francisco Balestrin. Ele diz que as unidades privadas estão atuando “como se fossem hospitais de campanha”, com um considerável aumento de pacientes nos últimos 10 dias e parte deles admite que está próximo ou já atingiu a capacidade máxima de ocupação de UTIs.
“É uma situação muito complexa. O fato de os leitos estarem lotados fica mais importante porque está tendo um número alto de casos diários. Não estamos com a pandemia controlada, muito pelo contrário. Isso gera uma demanda nova e, com os leitos cheios, você não consegue acomodar esta nova demanda. Hoje os leitos de UTI ficam mais tempo ocupados que antes”, acrescenta. Só no dia 16 foram 240 mortes por covid-19 na cidade, mais que o dobro do dia anterior. A primeira morte oficial na fila da UTI, anunciada pelo prefeito Bruno Covas, tornou-se emblemática da situação da cidade.
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Clique aquiEnfermarias e centros cirúrgicos viram UTIs
Mesmo a transferência de pacientes entre hospitais privados é problemática, já que a maioria das unidades já enfrenta lotação e dificuldades para seguir ampliando o número de leitos enquanto a demanda está em plena ascensão. Uma pesquisa do SindHosp feita com 25% dos hospitais privados associados (93 unidades) aponta que apenas metade das unidades afirmam ainda ter capacidade de aumentar leitos enquanto 82% delas estão com ocupação de leitos superiores a 91%. Mas os problemas se acumulam até mesmo para garantir o funcionamento dos leitos já existentes: há dificuldade para garantir os estoques de medicamentos necessários para intubar pacientes e até mesmo para garantir equipes com profissionais especializados. É neste cenário que os planos de saúde ―obrigados por lei a garantir assistência aos seus conveniados― dizem estar trabalhando para antecipar inauguração de novas unidades ou ampliar leitos nos próprios hospitais. Enfermarias e até salas cirúrgicas já foram convertidas em UTIs, mas ainda assim os leitos são rapidamente ocupados.
“Não é só uma questão de leito. Precisa também da infraestrutura da UTI e de profissionais especializados. Os estoques de medicamentos para intubação viraram o principal item. Estamos trabalhando nas expansões, mas não há ritmo de abertura de leitos que consiga dar conta se as pessoas não se cuidarem”, afirma Novais. Uma vaga só é desocupada quando alguém tem alta ou falece e, segundo Balestrin, o tempo de internação está maior neste momento mais crítico e marcado pelo crescimento da quantidade de jovens internados inclusive em leitos de terapia intensiva. “Eles são mais resistentes, mas por algum motivo esta doença está mais violenta e eles acabam ficando mais tempo, consequentemente você não libera leitos. São situações contraditórias, temos mais leitos e também muito mais pacientes.”
Transferência para outros hospitais privados
O Hospital Nipo-Brasileiro, por exemplo, está com todos os leitos de UTI para covid-19 e para outras doenças ocupados. Na última quarta-feira (18), 25 pacientes atendidos no pronto-atendimento desta unidade estavam à espera de um leito. O Nipo-Brasileiro diz que diariamente busca vagas em outros hospitais da cidade porque chegou ao limite de ocupação. “Os 42 leitos para covid-19 e os 6 leitos não covid-19 do hospital encontram-se no momento, lamentavelmente, com 100% de ocupação”, afirma a assessoria de imprensa. O hospital estava na lista de 15 unidades privadas que teriam encaminhado pacientes ao SUS por falta de leitos, mas explica que o fez porque os pacientes não tinham convênio médico nem poderiam arcar com os custos como particular.
Procurados pelo EL PAÍS, outros hospitais da lista ―como o 9 de Julho, o Santa Paula, o São Cristóvão e o Albert Sabin― também deram esta justificativa de que as solicitações eram de pacientes com perfil do SUS. O Albert Sabin diz que está com 95% de seus leitos ocupados, enquanto os outros dois não forneceram esta informação, pedida pela reportagem. O São Camilo, também incluído na lista, diz desconhecer a lista de hospitais que teriam pedido vagas do setor público e que, mesmo com a taxa de ocupação de seus leitos destinados ao tratamento de covid-19 em 100% na quarta (17), “está diariamente e incansavelmente remanejando seus leitos internamente para suprir a alta demanda, com medidas emergenciais que incluem o cancelamento provisório de procedimentos eletivos”. A Secretaria Municipal da Saúde confirma ter recebido 30 solicitações por leitos de UTI e de enfermaria para covid-19 de unidades privadas em quatro dias, mas pondera que isso “ainda não indica o esgotamento da rede privada”, embora reflita a pressão da pandemia sobre os sistemas de saúde público e privado. O titular da pasta, Edson Aparecido, havia definido estas solicitações nesta semana como algo “inédito”.
Balestrin explica que não há um sistema de comunicação e gestão entre os setores público e privado para pedir leitos e que, normalmente, quando um hospital particular esgota sua capacidade ou não atende pelo convênio do paciente, busca-se leitos em outras unidades da rede privada. “Não estou descartando que os hospitais privados possam chegar à máxima ocupação e não conseguir mais atender, mas normalmente o que acontece é buscar outros hospitais privados”, afirma. No setor particular, não existe um sistema organizado para identificar vagas e, segundo Balestrin, os próprios planos de saúde acabam tendo que fazer essa busca. Caso alguém com convênio seja atendido no poder público, o plano de saúde assume o ressarcimento aos cofres públicos. Assim como é o SUS que banca leitos contratados em hospitais particulares ou filantrópicos, uma estratégia comum durante e antes da pandemia. A questão é que, neste momento crítico de recrudescimento da pandemia, ambos os sistemas estão com pouca margem para oferecer ajuda.
Pouca margem para cooperação com o SUS
A cidade de São Paulo, apesar de ter o sistema de saúde mais robusto do país, vê mortes na fila por um leito de UTI do SUS enquanto autoridades sanitárias admitem não conseguir ampliar a estrutura hospitalar na mesma velocidade que o vírus está contagiando a população. A Prefeitura de São Paulo anunciou que converterá os hospitais do Jabaquara e de Itaquera em “hospitais-catástrofe”, que passarão a receber apenas pacientes com covid-19. Já o sistema privado admite ter limitações tanto para a expansão quanto para manter a estrutura já existente, com dificuldade para garantir estoques de medicamentos para sedar pacientes para que suportem o procedimento de intubação e de drogas que funcionam como bloqueadores neuromusculares, necessárias para que o paciente não “brigue com o ventilador” e respire no ritmo da ventilação mecânica após serem intubados.
“Aumentaram muito em preço no último ano. Há medicamentos para intubar que aumentaram em 400%. E tem outros para o bloqueio neuromuscular que aumentaram quase 900%. A reposição é complicada”, diz Balestrin. Ele explica que há uma disputa global por esses medicamentos, que apesar de serem produzidos no Brasil, dependem da importação do IFA (a matéria-prima para fabricá-los) da Índia e da China. “Então você vê o tamanho do problema que o mundo enfrenta. Há competição entre países para comprar”, acrescenta. Segundo ele, além das dificuldades para comprar, as entregas também têm sofrido atrasos. “Hoje, 30% dos hospitais têm estoques para uma semana desses materiais. Já existe uma dificuldade dos fornecedores, apesar do preço e do custo, de entregar esses produtos. Nem sempre esses produtos são entregues na exata dimensão e quantidade que são solicitados.”
Outro problema é a dificuldade para garantir equipe de profissionais de saúde especializada em terapia intensiva. O presidente do SindHosp diz que muitos profissionais estão sob um estresse muito grande e enfrentam problemas de saúde mental que tem provocado afastamentos, o que aumenta o grau de complexidade para aumentar leitos. “Cada vez mais os hospitais dizem que chegaram ao seu limite de expansão”, segue o presidente do SindHosp. Ele diz que as unidades particulares têm mais dificuldade de aumentar leitos que o poder público. “O Estado pode se valer das grandes instituições públicas. Os hospitais públicos sempre são maiores, conseguem mobilizar recursos, estrutura e pessoal com muito mais agilidade e presteza que o setor privado. O setor público pode pegar um hospital da rede e transformá-lo todo em um hospital de campanha. Os privados não têm esta condição de capital, estrutura e recursos humanos para fazer isso rapidamente”, diz. Ele defende o distanciamento social, uso de máscara e higiene das mãos para tentar frear o crescimento da demanda.
A Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), que representam 40% do mercado de planos de saúde, diz que a gravidade da pandemia neste momento “exige que todos os recursos e esforços neste momento sejam direcionados para o combate à covid-19, sem deixar de atender os casos de urgência” e que vem garantindo o atendimento de seus beneficiários desde o início da pandemia no país. “Cabe a todos também contribuir para superar o enorme desafio que temos pela frente, respeitando os protocolos de saúde, que incluem o distanciamento social, o uso de máscara, a higienização constante das mãos e a adesão à vacinação”, diz, em nota.
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