Brasil beira 3.000 mortes diárias por covid-19 enquanto troca na Saúde frustra expectativas por mudanças no combate à pandemia
Marcelo Queiroga diz que política de saúde quem faz é o presidente, que já declarou ser contrário às medidas de isolamento social. Futuro ministro defende máscaras, “união”, mas evita apoiar publicamente medidas de governadores que enfrentam colapso
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As primeiras declarações do futuro ministro da Saúde, o cardiologista Marcelo Queiroga, demonstram que não haverá giro de 180 graus na coordenação dos trabalhos contra a pandemia de covid-19 enquanto o presidente for Jair Bolsonaro. Nem mesmo com recordes de óbitos sendo batidos diariamente ―nesta terça-feira foram registradas 2.841 mortes―, o mandatário mostra que não vai abrir mão de um de seus cavalos de batalha, o confronto com governadores e prefeitos por causa de lockdowns como medidas de restrição de circulação de pessoas e de contenção do vírus.
Antes de se reunir com o ministro demitido, Eduardo Pazuello, Queiroga sinalizou aos repórteres que não terá autonomia. “A política [de saúde] é do Governo Bolsonaro, e não do ministro da Saúde. O ministro executa”, disse. Após o encontro, à tarde, ele endossou a fala de Pazuello de que haverá continuidade, não uma transição. Ou seja, só sairá o militar, e entrará um médico. A posse de Queiroga deve ocorrer nesta semana e ele deve cumprir agenda no Rio ao lado do ministro demissionário nesta quarta-feira. Queiroga já havia se manifestado em entrevista à CNN Brasil, na segunda-feira, que o lockdown não pode ser política de governo, uma declaração com potencial para irritar governadores pelo país que endurecem as restrições. Na ocasião, ele defendeu que a restrição só deve ser utilizada em situações extremas, sem precisar se considera que a atual situação do país, com 24 Estados com ocupação de UTIs em mais de 80%, como mostra o boletim da Fiocruz, é extrema. Segundo os cálculos do Imperial College, de Londres, a taxa de transmissão da covid-19 é de 1,23, ou seja, 100 infectados transmitem o vírus para 123 pessoas.
Uma das poucas diferenças na conduta do novo ministro será a defesa incisiva do uso de máscaras e de higienização das mãos, medidas que Pazuello só passou a defender na reta final de sua gestão e Bolsonaro, até o momento, jamais a fez. Pelo contrário. É comum ver o presidente circular sem a proteção facial e promovendo aglomerações. Só nos últimos dias, em algumas ocasiões, Bolsonaro usou a máscara. “São medidas simples que podemos ter para evitar de parar a economia de um país. É preciso unir os esforços do enfrentamento da pandemia com a preservação da atividade econômica”, destacou Queiroga.
Um sinal que o futuro ministro fez aos outros gestores da saúde foi o pedido de parceria com secretários municipais e estaduais. No mês passado, a Confederação Nacional dos Municípios pediu a demissão de Pazuello. “Vivemos uma nova onda da pandemia, com muitos óbitos e é preciso melhorar a qualidade da assistência em cada um dos nossos hospitais, sobretudo nas UTIs”, destacou. Ainda pediu o apoio da mídia, que frequentemente é desacreditada e atacada pelo presidente e pelo seu entorno, incluindo Pazuello. “A imprensa é uma grande aliada”, disse.
Seu discurso, de pronto, não convenceu quem acompanha a área de políticas públicas no Brasil. Duas pesquisadoras do tema entrevistadas pela reportagem disseram estar pessimista com os próximos meses. “A única diferença visível é que o novo ministro é um médico. Mas o problema não é o ocupante do cargo, mas o presidente. Ele não admite os erros e não está aberto às modificações. Ele não aceita ministros que não sigam as suas orientações”, destacou a coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Telma Maria Menicucci, que é autora de três livros sobre políticas públicas da saúde.
“É uma mudança para dizer que foi centrada na área da saúde, tentando responder a pressão social, mas, na verdade, a postura do Bolsonaro é muito clara, ele é contra o isolamento social e quer continuar confrontando os governadores nessa questão”, avaliou a cientista política Vanessa Elias de Oliveira, professora da Universidade Federal do ABC. Oliveira destaca que, sem vacina para imunizar a maioria da população, a única possibilidade de promover uma queda no número de mortos e casos é com o isolamento social.
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Clique aquiAlém de rejeitar essas medidas, de maneira subserviente ao presidente, Pazuello atrasou a compra de vacinas; apresentou cronogramas de imunização que não se cumpriram; omitiu-se por um longo tempo na aquisição de oxigênio para Manaus, que viu dezenas de pacientes de covid-19 morrerem sem ar; e lotou o Ministério da Saúde de militares sem qualquer qualificação para os cargos na área de saúde.
Queiroga chega ao cargo após a cardiologista Ludhmila Hajjar recusar o convite de Bolsonaro por não concordar com a posturas negacionista do presidente assim como pela defesa enfática que ele faz do uso da cloroquina para o tratamento de covid-19. Hajjar tinha o apoio do Centrão, grupo de centro-direita que apoia o Governo Federal, de ministros do Supremo Tribunal Federal e até de ministros de Bolsonaro. Enquanto que Queiroga tinha ao seu favor o apoio de dois filhos do presidente, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) e o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).
O futuro ministro é presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia, fez parte da equipe de transição de Bolsonaro e havia sido indicado pelo mandatário para ocupar um cargo de diretor na Agência Nacional de Saúde Suplementar, mas ainda não fora empossado na função.
Por enquanto, a única mudança de fato é a defesa que Bolsonaro agora faz da vacinação. Antes, ele desdenhava. Conforme revelou a revista Época, ele até já cogita se vacinar, após dizer que não o faria e de duvidar da eficácia do imunizante. A aplicação da injeção no braço do presidente ainda não tem data exata para ocorrer pois ele entrará na fila da vacina de Brasília, que ainda está vacinando idosos entre 72 e 73 anos. O presidente completa 66 anos no dia 21.
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