São Paulo tem uma morte por covid-19 a cada três minutos: “Pacientes graves que estariam na UTI agora estão na enfermaria”
Estado bateu novo recorde de óbitos registrados em 24 horas: 521. Saturados, hospitais públicos e privados rumam ao colapso. Sem leitos intensivos suficientes, unidades acomodam doentes graves como podem e mandam alguns para casa, com cilindro de oxigênio. Nas ruas, nem todas as novas restrições de Doria são seguidas
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Sexta-feira, três horas da tarde. Varias pessoas começam a se aproximar do Hospital Municipal Tide Setúbal, centro de referência na zona leste de São Paulo para tratamento de pacientes com covid-19. A maior partes delas são parentes daqueles que estão dentro internados. Nesse horário, profissionais do lugar vão para a porta e começam a anunciar nome por nome de alguns pacientes. O familiar entra então no hospital com a esperança de sair com a melhor das notícias. “Minha mãe é quem está lá dentro. Meu pai já está há dois dias internado, intubado na UTI. Quando chegou, não estava mais conseguindo respirar. Seu quadro evoluiu muito rápido”, conta Vanessa, que aguarda do lado de fora com sua prima Suzana. “Toda a nossa família já teve covid-19”.
Os hospitais do Estado de São Paulo ainda não colapsaram, mas estão saturados e caminham rumo ao colapso. Uma possibilidade para próximas semanas, ou mesmo dias, que o Governo João Doria (PSDB) admite, o que levou a gestão tucana a endurecer ainda mais as medidas de distanciamento social a partir da próxima segunda-feira. O Governo estadual calcula que 53 municípios já possuíam no dia 11 de março 100% de ocupação dos leitos de UTI em seu sistema de saúde. A taxa de ocupação em todo o território paulista chegou a 87,6% nesta sexta-feira. Na Grande São Paulo, a 89,4%. Segundo levantamento da TV Globo e do G1, 45 pessoas já morreram à espera de UTI em São Paulo. Nesta sexta, o Estado bateu novo recorde de mortes registradas em um único dia desde o começo da pandemia: 521 ou um óbito a cada três minutos. O recorde anterior foi na terça-feira, 517 mortes.
As próximas duas semanas serão decisivas porque estima-se que pressão sobre o sistema não deve arrefecer até que os primeiros sinais do confinamento comecem a aparecer na redução de contágios. “Estamos todos lotados. As análises do nosso comitê de crise indicam que o cenário é sombrio”. explica a médica Eloisa Bonfá, diretora clínica do Hospital das Clínicas (HC), principal hospital de referência do Estado de São Paulo. “Estamos altamente preocupados, embora tenhamos sistemas de continência prontos para serem ativados”. Bonfá explica que a unidade, para onde são encaminhados somente os casos de extrema gravidade, aumentou de 84 para 300 o número de leitos de UTI ao longo da pandemia. Levando em conta as vagas de enfermaria, são 465 leitos dedicados somente para a covid-19. Atualmente, 93% deles estão ocupados. “Significa uma saturação completa”, explica a médica.
Mas o hospital também está lotado com pacientes com outras enfermidades graves. “Muitas pessoas ficaram sem se cuidar no ano passado. A partir de outubro, quando tínhamos uma redução dos casos de covid-19, as pessoas voltaram a nos procurar. Ficamos lotados de pacientes e assim permanecemos”, conta. Dez dias atrás, um terço dos pacientes estavam internados com covid-19 e dois terços possuíam outras doenças. Mas o ritmo acelerado da pandemia inverteu essa proporção.
“São 5.800 pacientes com covid-19 desde março de 2020, com uma taxa 80% de intubação. Tivemos que aumentar 100% o consumo de oxigênio e 100% consumo de energia”, conta Bonfá. No entanto, ela não vislumbra um cenário de falta de oxigênio, parecido com o que viveu Manaus, uma vez que o HC antecipa cenários e se prepara. Por exemplo, já alugou 14 geradores de energia. “Ele se transformou em outro hospital”, garante.
Assim como o HC, outros hospitais de referência já atingiram 100% de sua capacidade. É o caso do Hospital Emilio Ribas, do Hospital Geral de Guaianases, do Hospital Estadual de Vila Alpina ou do próprio Hospital Municipal Tide Setúbal, entre muitos outros, conforme apurou o EL PAÍS. “Fiz plantão entre 12h e 13h no Pronto Socorro recebendo pacientes na triagem. Sete tinham sintomas de covid-19. Os demais a gente encaminha pra UPA”, explicou um médico na entrada do Tide Setúbal. Michel, de 38 anos, era um dos que ficou no hospital. Sua esposa conta que, depois de estacionar o carro, ele demorou 15 minutos para subir poucos metros de uma ladeira até a entrada do centro médico. “Ele está bem debilitado, de ontem pra hoje piorou bastante. Está com muita falta de ar, dor no corpo, dor de cabeça... De um dia para o outro perdeu o paladar e o olfato”, conta Pâmela, enquanto espera seu marido ser atendido.
Comércio de porta entreaberta
Apesar da gravidade de situação, circular pelas ruas de São Paulo, seja pelo Centro, pela Zona Leste ou pela Zona Norte, revela um cenário de descaso da população. Apesar das medidas emergenciais decretadas por Doria, bares, comércios e salões de beleza seguem atendendo clientes com a porta entreaberta. O movimento de carros é intenso, muito diferente da primeira fase da pandemia, quando fotografias aéreas mostravam espaços inteiros desertos. No primeiro semestre de 2020, a taxa de isolamento superou os 50%. Nesta sexta-feira é de 42% no Estado e de 41% na capital. Mesmo na calçada em frente do Hospital Tide Setúbal, pessoas se arriscam a caminhar sem máscara.
A saturação não se restringe somente aos hospitais de referência. O Hospital Municipal de Campo Limpo, na Zona Sul de São Paulo, vem absorvendo a maior parte de pacientes com outras doenças graves. E também já registra 100% de ocupação. “Está cheio demais. Não temos recursos humanos suficiente para atender essa demanda, e até mesmo a previsão de materiais está difícil de ser feita”, explica Douglas Cardozo, conselheiro representante regional do SINDSEP, o sindicato de servidores.
E tampouco se restringe ao setor público. Hospitais privados como Sírio-Libanês e Oswaldo Cruz se aproximam da lotação. O Hospital Israelita Albert Einstein, centro privado de referência em todo o Brasil, avalia reabrir um hospital de campanha. O Einstein registrou 200 pacientes com covid-19 no dia 11 de março, sendo que 101 se encontravam na UTI. A taxa de ocupação geral era de 104% nesse dia, segundo confirmou a assessoria ao EL PAÍS. A saída que esses centros estão encontrando é o de adiar procedimentos e abrir mais leitos. De acordo com um levantamento do Sindicato dos Hospitais, Clínicas e Laboratórios do Estado de São Paulo (SindHosp), feito entre 8 e 11 de março, 93% dos hospitais estão cancelando cirurgias eletivas.
A pesquisa também mostra que 32% já não são capazes de aumentar leitos para covid-19 e 15% só conseguem disponibilizar mais leitos clínicos. “Ter dinheiro não vai salvar ninguém. Se o sistema esgota, esgota para todo mundo. É só você ver a situação dos hospitais particulares”, alertou nesta quinta-feira Paulo Menezes, coordenador do Centro de Contingência Covid-19, grupo de 21 especialistas que assessoram Doria. “Não adianta se apoiar [no plano de saúde], tem que entender a gravidade da pandemia e do momento que a gente está vivendo. Não dá mais para subestimar esse vírus”, acrescentou.
Interior em colapso
Parte relevante da estratégia do Estado mais rico do Brasil, com a maior rede hospitalar do país, se baseia na abertura de novos leitos. Eram 3.500 vagas de UTI no início da pandemia, e até o final de março deste ano serão 9.200. “Mas UTI é um recurso finito. E principalmente recurso humano é finito Também é um princípio falacioso o de que, ao aumentar o número de leitos, você pode liberar a transmissão do vírus. Quem vai para a UTI, metade morre”, explica o professor Carlos Magno, médico epidemiologista da Faculdade de Medicina da Unesp em Botucatu e um dos especialistas que assessoram Doria.
Ele trabalha no Hospital das Clínicas da universidade, que atende toda a região e é referência no tratamento contra a covid-19. E vem alertando desde janeiro para risco de colapso nos hospitais do interior. “Nós estamos numa situação extremamente critica, e remando ao contrário do mundo”, argumenta. Seu hospital também apresenta 100% de ocupação de leitos e está saturado, mas ele afirma que esse número esconde situações ainda mais graves. “Pacientes graves que estariam na UTI no começo da pandemia agora estão na enfermaria. Então, essa ocupação de UTI é ainda mais forte. A mortalidade está aumentando porque só estamos internando pacientes mais graves”, explica. “Na enfermaria estão pacientes com suporte ventilatório. Tem gente que está com cilindro em casa, quando tem condições estruturais de manter cilindro. Quem não está precisando de suporte oxigênio nem interna mais”, explica.
Apesar das dificuldades, inclusive de convencer a população a se recolher em casa, Bonfá, a diretora do HC, está esperançosa de que as novas medidas de restrição surtirão efeito. “Temos uma saturação que também é física e mental. A gente precisa ser apoiado pela população para que a gente possa continuar”, afirma. “Nós estamos trabalhando dia e noite desde março de 2020. É frustrante que as pessoas não entendam que estamos perto de uma solução, mas que precisam colaborar”.
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