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Fiscalização autua Rappi por “fazer de celular o novo relógio de ponto”

Para fiscais do trabalho, vínculo com entregadores “configura relação de emprego, com preenchimento de todos os requisitos legais”. Empresa usa sistema de punições e incentivos por meio do aplicativo, apontam. Empresa recorreu da decisão

Gil Alessi
Entregador da Rappi durante protesto por melhores condições do trabalho em julho de 2020 em São Paulo.
Entregador da Rappi durante protesto por melhores condições do trabalho em julho de 2020 em São Paulo.AMANDA PEROBELLI (Reuters)
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“A maior vantagem desse trampo?”, indaga o entregador William Rodrigo Nascimento, 23, sentado em sua moto enquanto aguarda o telefone celular apitar em uma movimentada rua na zona oeste de São Paulo. Se aproxima o rush do almoço para os motocas e ciclistas que trabalham levando refeições para um batalhão de paulistanos esfomeados, e cada segundo parado é dinheiro fora do bolso. “O que tem de bom é que eu sou meu patrão, né? Trabalho quando quero e quanto eu quero”, responde. Esse argumento pode ser facilmente ouvido em conversas com os fretistas, obrigados a se escorar na precarização do trabalho para sobreviver. Mas fiscais do trabalho ligados ao Ministério da Economia chegaram a uma conclusão diversa. Em um auto de infração feito contra a Rappi no final de 2020 eles traçam o cenário oposto: os motoqueiros estão longe de ter algum controle sobre seu trabalho, e cada quilômetro rodado é monitorado e sujeito a punição ou recompensa por parte da empresa. É um modelo onde o telefone celular “é o novo relógio de ponto”.

A Rappi, multinacional com sede na Colômbia, foi enquadrada por fiscais do trabalho que se debruçaram sobre suas atividades desde abril de 2020 para produzir um extenso relatório com mais de 219 páginas. O documento aponta para uma série de fraudes e violações trabalhistas cometidas pela empresa: “Se concluiu que o pacto estabelecido entre a Rappi e seus entregadores configura relação de emprego, com preenchimento de todos os requisitos legais”, diz o texto. Ifood e Loggi já haviam sido alvo de fiscalização semelhante, e os processos trabalhistas ainda tramitam na Justiça. “A Rappi afirma que os entregadores têm independência, mas a prática é outra. É um trabalho subordinado, eles estão vinculados totalmente ao aplicativo para desempenhar a função, e há um controle e monitoramento total da empresa”, afirma Rafael Brisque Neiva, auditor-fiscal do Trabalho. “Eles não têm autonomia para nada. São comandados pela Rappi via tecnologia da informação e pelos algoritmos.” A empresa recorreu da autuação, e a Justiça ainda não decidiu sobre a questão, nem o valor da eventual multa.

Apesar de negar vínculos trabalhistas e afirmar que o entregador trabalha onde, quando e quanto quiser, a tecnologia permite à Rappi impor uma série de mecanismos de punição e recompensa aos seus trabalhadores. Os fretistas podem ser punidos —sem transparência alguma— por descumprir orientações da empresa (como recusar corridas ou atrasar entregas) e no outro extremo, receber incentivos e bônus caso permaneçam online nos locais indicados pelo aplicativo. Para os fiscais, tudo isso configura um “gerenciamento das atividades dos entregadores (...) e confirma que a atividade preponderante da empresa Rappi é o serviço de entregas rápidas, e não simplesmente a conexão dos entregadores com os consumidores usuários”, como ela alega.

A recusa do entregador em prestar o serviço pode levar a punições severas, que variam de uma suspensão temporária do fretista (os chamados “ganchos”) até o descadastramento da plataforma. Manter o aplicativo desligado por dias seguidos, ainda que durante o final de semana, também leva a sanções. De acordo com depoimentos colhidos no relatório, os entregadores disseram não conseguir trabalhar na região central de São Paulo (onde existe maior demanda de serviços) após terem deixado o app desligado sábado e domingo. “Neste contexto, o smartphone extrapola sua condição de ferramenta do trabalho dos fretistas, e se torna um sofisticado controle de ponto (...) verdadeiro livro de registro das atividades realizadas”, diz o relatório.

“Eu fiquei parado uns dias seguidos porque tive um problema na moto, aí tive que pegar uma emprestada com um amigo para poder trabalhar”, conta o entregador Rogério Simão, 35. “Quando voltei não entrava pedido. E eu estava na avenida Paulista [um dos locais mais movimentados para delivery]. Então a gente acredita que rola sim isso [de punir quem se ausente do app], mas não é oficial, sabe”, lamenta.

A determinação do valor do frete pela Rappi e não pelos entregadores é outro ponto que chama a atenção dos fiscais. “O controle de preços é ato típico de gestão do serviço de entrega”, afirmam no documento, contrariando a versão da empresa, que alega apenas fazer a “intermediação” entre as partes. Outra prática considerada abusiva pelos fiscais e praticada pela Rappi com seus entregadores é a venda casada: para receber, o trabalhador precisa se cadastrar no aplicativo da SmartMEI, responsável por operacionalizar os pagamentos. O relatório aponta que “a utilização do aplicativo SmartMEI pelos entregadores é obrigatória (...) sem utilizar a plataforma, não receberão pelos serviços prestados para a Rappi”. Mais adiante, os fiscais apontam que “a obrigatoriedade do uso do aplicativo SmartMEI como única forma de receber pelos serviços prestados para a Rappi, é uma espécie de casadinha, como se diz vulgarmente, ou venda casada, uma prática fraudulenta e ilegal”.

A SmartMEI também dispõe de seus próprios mecanismos para explorar um trabalhador de baixa renda já bastante vulnerável. Caso opte pelo pagamento mensal, que é feito na primeira quarta-feira após o mês trabalhado, o entregador não paga taxas extras. Mas existe a possibilidade de adiantamento semanal. Nesse caso, a empresa cobra taxas de sete reais mais 1,99% sobre o valor transferido. A imensa maioria dos motoqueiros e ciclistas ouvidos pelos fiscais se vê obrigado a lançar mão da antecipação do pagamento para arcar com as despesas de combustível e manutenção de seus veículos. “Eu sei que o adiantamento é ruim, que perco uma parte da grana, mas tem semanas em que preciso do dinheiro rápido, seja pra alguma despesa de casa ou pra dar um jeito na moto”, diz Simão.

Para os fiscais, essa realidade narrada pelo entregador não é exceção. “Não poderia ser diferente, já que se trata de trabalhadores vulneráveis e com ínfimo poder econômico-financeiro, os quais recebem por tarefa realizada um valor que varia entre 4 reais e 10 reais totalizando na semana um montante que varia entre 150 reais e 300 reais, a depender do modal utilizado”, diz o relatório.

Por fim, os fiscais concluem: “Fica claro até aqui que os entregadores não são autônomos nem para determinar o valor da prestação de seus serviços, nem para determinar a forma e periodicidade que receberão pelos serviços, nem para cobrar pelos serviços e nem mesmo para emitir os recibos dos serviços que prestaram.”

Recusa em entregar documentos

Aos fiscais, a Rappi afirmou ser uma “empresa de tecnologia intermediadora, que explora plataforma tecnológica com o intuito de permitir aos consumidores usuários do aplicativo a oferta e a procura de bens e serviços, dentro do que nominou ‘novo sistema mundial de Economia compartilhada’”. Mas ao examinar as práticas da companhia, os fiscais encontraram um rígido sistema de controle e subordinação dos entregadores, marcada pela “falta de registro de empregados, contratados indevidamente como autônomos”.

Segundo a fiscalização, ao menos 7.000 trabalhadores da empresa de delivery se enquadram nessa situação, mas esse número é uma estimativa conservadora e imprecisa. Isso porque a Rappi se recusou a fornecer os dados. Em abril de 2020 as autoridades solicitaram à companhia uma série de documentos, como a lista dos entregadores que trabalharam e que ainda trabalham na plataforma desde julho de 2017, bem como a quantidade de entregas feitas e a remuneração recebida pelos trabalhadores por mês. Nada disso foi entregue, o que fez com que a empresa fosse autuada.

Em sua defesa, a Rappi afirmou que “o fornecimento dos dados solicitados, tais como planilha com a relação de dados dos entregadores são dados sensíveis e não atende os requisitos necessários da Lei Geral de Proteção de Dados, inviabilizando seu fornecimento, o que coloca a empresa em grande risco de multas por vazamento de informações”. Além disso, haveria, segundo a plataforma, “informações com alto grau de impacto dentro das empresas, se tais informações são divulgadas aos seus concorrentes o impacto desse vazamento tem capacidade de levar a falência da empresa”.

Mas os fiscais acreditam que a recusa aconteceu porque a multa para violações trabalhistas é aplicada per capita (em torno de 3.000 reais, com um adicional pela recusa de fornecer os dados). Caso abrisse seu livro de registros a Rappi provavelmente estaria se expondo a sanções milionárias. Sem a relação completa, o auto de infração menciona apenas 21 entregadores, selecionados de forma aleatória.

Procurada pela reportagem, a Rappi se manifestou via nota enviada pela Associação Brasil Online 2 Offline, entidade da qual fazem parte praticamente todas as empresas de entrega: “Reiteramos a necessidade de um debate profundo com tempo suficiente para que todos os segmentos impactados sejam ouvidos”, diz o texto. “Esse cenário é ainda mais sensível tendo em vista a pandemia, momento em que milhões de pequenos negócios se esforçam para digitalizar seus empreendimentos (...) as pessoas que buscam seus ganhos por meio das plataformas não podem depender de uma fórmula engessada, que traga de volta uma regulação”.

Problemas no mundo todo

Os problemas trabalhistas envolvendo empresas de delivery não são uma exclusividade brasileira. Na Espanha, a Glovo, que atua neste setor desde 2017, foi obrigada pela Justiça no início de fevereiro a pagar 21 milhões de euros (aproximadamente de 120 milhões de reais) ao órgão estatal que cuida da seguridade social. Os fiscais do trabalho apontaram que —assim como a Rappi no Brasil— a Glovo empregou falsos autônomos. Em sua defesa, a companhia catalã afirmou ser uma mera “intermediadora de serviços”.

Na Argentina os apps de entrega também sofreram reveses. Em abril de 2019 a Justiça barrou entregadores da Rappi e da Glovo em Buenos Aires por tempo indeterminado alegando questões de segurança, como falta de capacetes e sinalização adequada.

Por aqui as condições precárias dos trabalhadores de entrega já levaram a processos contra outras empresas, e até mesmo a uma paralisação dos trabalhadores —o breque dos apps, como foi chamado— para chamar a atenção para as condições impostas.

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