Como os venezuelanos ajudaram a controlar a primeira onda da covid-19 em Roraima

Operação especial montada para controlar a pandemia entre imigrantes em abrigo enfrentou resistência local, mas acabou forçando Estado a se preparar para o coronavírus

General Barros, chefe da Operação Acolhida em Roraima, acompanha a alta de pacientes com covid-19 em Boa Vista.Victor Moriyama (Victor Moriyama)
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No dia 14 de março deste ano uma tensão se instalou entre militares que atuam na Operação Acolhida em Boa Vista. Um venezuelano residente em um dos 11 abrigos para refugiados no Estado apresentou sintomas de covid-19. Àquela altura, o vírus ainda não chegava a Roraima. Pouco se sabia ainda no mundo sobre a evolução da doença, apenas as cenas trágicas na Europa de pilhas de corpos de quem não havia conseguido escapar do coronavírus. A fronteira entre o Brasil e a Venezuela continuava aberta, e havia então 12.000 venezuelanos em abrigos em Pacaraima e Boa Vista. Um risco grande para a Operação Acolhida, criada em 2018, exatamente para atender aos venezuelanos em situação de rua.

Uma reunião de emergência foi marcada entre o gabinete de crise da operação. Junto com os demais interlocutores da operação, o general Antonio Manoel de Barros, chefe da Acolhida, falou no grupo: “A gente não sabe a gravidade. Imagine se um primeiro caso de covid-19 fosse venezuelano. A convulsão social que poderia gerar”. A chance de haver um efeito dominó da doença teria o impacto de uma bomba num Estado fronteiriço e seria matéria-prima para uma potencial crise diplomática e mais um elemento de estigma para o fluxo migratório dos venezuelanos. “Era uma crise dentro de uma crise”, lembra o general, que assumiu a liderança da Acolhida em janeiro deste ano.

O venezuelano com suspeita de covid-19 havia atravessado a fronteira junto com a sua família. Passou a noite num abrigo de Pacaraima, seguiu para outro em Boa Vista e se encontrava em outro abrigo da operação em Manaus. Àquela altura o Brasil vivia crispações sobre a gestão da pandemia, com o presidente da República, Jair Bolsonaro, fazendo aparições públicas para minimizar o efeito da doença ―um dia depois, no dia 15, ganharia fama no mundo inteiro ao incentivar protestos de rua a favor do seu governo com aglomeração de apoiadores, e sem uso de máscaras. No dia 20, diria pela primeira vez que a doença era equivalente a uma “gripezinha”.

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Mas na operação Acolhida o assunto covid-19 foi levado com extremo rigor para evitar rusgas diplomáticas. Em questão de horas foi criada uma estrutura nos abrigos nas três cidades para iniciar o isolamento dos venezuelanos de modo a evitar o pior. “Construímos espaço de isolamento emergencial e fizemos todo trabalho de realocação. Toda equipe de proteção. Pegando as pessoas que entraram em contato para um espaço de isolamento emergencial naquela noite, em 12 horas”, lembra Arturo de Nieves, coordenador sênior de campo da Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) no norte do país.

A família foi testada e deu negativo. Um alívio geral na operação mas também um forte alerta. O episódio foi tratado como um “teste de estresse” importante para aperfeiçoar protocolos entre as famílias venezuelanas e mensurar o que poderia acontecer se não houvesse um controle acurado. A operação não sairia um milímetro da missão de proteger refugiados venezuelanos. Novas regras de convívio e higiene começaram a ser implantados nos abrigos, ao mesmo em que começaram a ser traçados vários cenários epidemiológicos. “Surgiu um dilema ali. Como iríamos tratar venezuelanos e não tratar brasileiros quando chegar a crise”, conta o general Barros.

No planejamento das ações, as projeções não eram nada boas. Eram muito críticas, garante o chefe da Acolhida e da Acnur, embora não revelem os dados. Mas foi com base nesses números que a operação obteve autorização para construir uma área de proteção para isolar venezuelanos ou contaminados suspeitos e a área de cuidados. No dia 21 de abril, já estavam garantidos 80 leitos. “Eram 30 nosso, 30 do Estado e 20 da prefeitura”, conta o general.

A doença avançava de maneira cruel em Manaus, capital do Amazonas, estado vizinho a Roraima. Manaus foi a primeira capital a atingir o pico da doença em abril, e que promoveu cenas trágicas com valas improvisadas para enterrar seus mortos, quase o triplo do normal naquele mês. Em Boa Vista, por sua vez, a pandemia era embrionária. A capital de Roraima já registrava a primeira morte, e dependia somente do hospital municipal de Boa Vista.

Equipe médica atende paciente no hospital de campanha gerido pelo Exército brasileiro em Boa Vista.Victor Moriyama (Victor Moriyama)

Junto com a prefeitura e o Governo do Estado, a operação Acolhida teve um papel decisivo para ampliar atendimentos. Não foi fácil. Na corrida contra o tempo para evitar uma situação negativa como a de Manaus, houve uma queda de braço com a associação de médicos local. O Conselho Regional de Medicina de Roraima se opôs à solução apresentada pelo Governo de Roraima e Prefeitura de Boa Vista junto com a operação Acolhida de incluir médicos sem CRM ou revalida para dar conta do aumento do volume de atendimentos previsto. Era ainda um período de escassez de insumos, mão de obra e equipamentos de proteção. Tudo começou a ser equacionado, incluindo parceria com a universidade de Roraima para a produção de EPI (equipamento de proteção individual) e e álcool gel. Mas o CRM-RR entrou com uma ação na Justiça contra a contratação de médicos sem CRM, que incluiria ex-participantes do Programa Mais Médicos. O assunto ganhou corpo com uma nova ação da OAB contestando a decisão judicial, desta vez vencida pelo Estado de Roraima e a operação Acolhida. Em protesto, médicos com CRM que estavam atuando decidiram se retirar.

Assim, em maio o hospital de campanha tinha 786 leitos disponíveis, incluindo 120 de UTIs, mas não havia mão-de-obra. “Quem contratava os médicos era o Estado, nós apenas gerenciávamos”, diz o general Barros. Diante do impasse, recorreu ao seu velho chefe, o anterior coordenador da Operação Acolhida, que ocupara o cargo entre fevereiro de 2018 e janeiro deste ano. Depois de passar pelo Comando da 12ª Região Militar, e de ser nomeado secretário-executivo do ministério da Saúde, Eduardo Pazuello assumiu em maio o cargo de ministro da Saúde no lugar de Nelson Teich. O general Barros ligou para Pazuello dando toda a dimensão dos fatos, e colocando em pauta o risco que os venezuelanos corriam de não ter um planejamento adequado para controlar a pandemia. “Vai dar problema”, avisou o general.

Os ânimos já andavam acirrados demais no Brasil perante a pandemia para arranjar novas dores de cabeça. Pazuello então fez a ponte para que o hospital de campanha gerenciado pela operação tivesse suporte do hospital privado paulistano Sírio Libanês e do banco Itaú. Com médicos das Forças Armadas e do Médico sem Fronteiras, a Área de Proteção e Cuidados (APC) começou a atender o público de Boa Vista e começou a desafogar o único hospital público da capital. O saldo da batalha foi positivo. Até o final de outubro haviam sido registrados 10.300 atendimentos ―desses, apenas 349 venezuelanos. A operação Acolhida logrou controlar em 3% o índice de contaminação nos abrigos ―houve 9 óbitos até novembro ―, o que foi considerado um sucesso.

A APC recebeu inclusive militares que se contaminaram com a covid-19. Cerca de 70% dos integrantes do Exército que estão na linha de frente foram pegos pelo coronavírus, informa o general Barros. Ele mesmo foi um dos contaminados. Mas não houve vítimas fatais. Essa imunidade de rebanho da operação deu mais confiança ao time da Acolhida, que não tinha como regra o uso de máscaras quando a reportagem esteve em Boa Vista e Pacaraima no final de outubro. Na Acnur também a covid-19 também contagiou quase todos os que estavam na linha de frente da atuação. Hoje a APC passou para as mãos do Estado, e ficou como legado da operação para Roraima.

Esta reportagem é resultado do laboratório de produção de jornalismo “Refugiados e Migrantes” e faz parte da série de publicações realizadas com apoio da Fundação Gabo e Acnur

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