Guerra santa de Crivella encara resgate da era Paes no Rio, arena de disputa cara a Bolsonaro
Atual prefeito encontra respaldo em votos de evangélicos, mas precisa reverter rejeição de 60% da cidade, que mostrou preferência por quem a governou entre 2009 e 2017
Entre os quatro candidatos competitivos na disputa pelo primeiro turno no Rio de Janeiro, prevaleceu a saudade do carioca por Eduardo Paes (DEM), que governou a cidade por duas vezes, entre 2009 e 2017. O ex-prefeito chega ao segundo turno da eleição com 37,01% dos votos válidos, contra 21,90% do atual prefeito, Marcelo Crivella (Republicanos), que tenta a reeleição apesar de sua rejeição de 60%. Crivella conta com apoio explícito do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e tentará capitalizar essa bênção para vencer o segundo turno.
Após a derrota da esquerda, com a delegada Martha Rocha, do PDT, com 11,30%, em terceiro lugar, praticamente empatada com Benedita da Silva, do PT, com 11,27% ―diferença de apenas 904 votos― os finalistas na capital fluminense projetam investidas para garantir os eleitores órfãos. Paes já disse que vai continuar a discutir os problemas da cidade na campanha do segundo turno e que vai procurar o voto da esquerda e da direita, pois o resultado mostrou que carioca “sabe a tragédia que representa a má gestão do Crivella para todos nós”. O ex-prefeito já avisou que vai puxar o debate para a arena da administração pública, uma guerra em que os dois terão experiências para comparar. “A discussão é sobre a cidade, não é ideológica nem nacional, é sobre serviços públicos”, disse. Mas avisa que, independentemente de quem for o presidente, ou governador do Estado ―ambos alinhados com Crivella― buscará consensos.
Paes foi o favorito desde as primeiras pesquisas eleitorais e construiu sua campanha com críticas à administração do atual prefeito, sempre comparando suas gestões à de Crivella. Apenas no fim da campanha se voltou para a candidata do PDT, que começava a despontar nas sondagens e era uma rival mais difícil em um eventual segundo turno. O ex-prefeito governou o Rio nos áureos tempos em que a realização da Copa do Mundo e das Olimpíadas pareciam presentes divinos, e não uma brecha para negociatas que derrubariam o hoje ex-governador Sergio Cabral (MDB), que acabou preso. Paes, por sua vez, perdeu apoio popular importante quando se candidatou a governador em 2016 ―acabou derrotado pelo hoje governador afastado, Wilson Witzel.
Guerra santa
Com rejeição de voto alta, em torno de 60%, Crivella conseguiu ir para o segundo turno sustentado por sua base religiosa, os evangélicos, principalmente de denominações neopentecostais. O bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus tem sua gestão reprovada por cerca 70% dos moradores da cidade e acabou por centrar sua campanha na temática religiosa e na aliança com Bolsonaro. No fim da campanha, deu à disputa municipal um caráter de guerra santa com o slogan “Aleluia, a guerra continua”.
Após o resultado do primeiro turno, Crivella afirmou que vai buscar o voto evangélico recebido pela petista Benedita da Silva, que é ligada à Assembleia de Deus. O prefeito defendeu que sua rejeição é “normal” e deve-se à crise econômica e que “não é porque sou corrupto nem réu em nada”, indicando o tom que a campanha deve ganhar contra o adversário do DEM no segundo turno. Paes foi investigado pela Justiça Eleitoral por Caixa 2 em 2012, mas o caso não foi a julgamento. O próprio Crivella, no entanto, está com a candidatura sob recurso no Tribunal Superior Eleitoral por ter sido considerado inelegível recentemente pelo Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro. Ele é suspeito de usar a máquina da prefeitura para promover a candidatura do filho, Marcelo Hodge Crivella, a deputado federal, em evento com funcionários da empresa municipal de limpeza urbana, em 2018.
Trunfos e fraquezas
Na disputa com Crivella, Paes carrega como trunfo a memória de uma época de dinamismo econômico no Rio, quando a cidade recebeu as Olimpíadas de 2016 e serviu como uma das sedes da Copa do Mundo de 2014. Muitos equipamentos esportivos foram erguidos, e uma infraestrutura nova de transporte foi colocada em operação, com os BRTS nas Zonas Oeste e Norte e o VLT no centro, região revitalizada para atrair o turismo. Alguns de seus empreendimentos esportivos envolveram grandes polêmicas, como a retirada da Aldeia Indígena Maracanã, ao lado do famoso estádio de futebol, e a remoção de moradores da Vila Autódromo devido aos Jogos Olímpicos. A ânsia por realizar obras levou também à construção de uma ciclovia arrojada à beira mar, mas que deixou uma marca fúnebre na cidade. Depois de três meses da sua inauguração em 2016, um desabamento em um trecho no bairro de São Conrado matou duas pessoas.
Já Crivella tem em sua rejeição um entrave aparentemente incontornável para vencer a corrida eleitoral no segundo turno. “É muito difícil reverter essa rejeição, é uma vitória relativamente fácil para o Eduardo Paes”, diz o cientista político Ricardo Ismael, da PUC-Rio. “Vai dar Eduardo Paes no segundo turno, os votos da terceira e quarta colocadas também são votos anti-Crivella”, prevê Fernando Guarnieri, cientista político do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ).
Desde o início da campanha, Crivella abusou de imagens de arquivo ao lado de Bolsonaro, mas a exposição não foi suficiente para lhe garantir uma posição privilegiada na disputa. Nos últimos dias da campanha, o presidente orientou os seguidores da sua live semanal a votar em Crivella. O apoio, contudo, foi envergonhado. Bolsonaro disse que entenderia quem não quisesse votar no prefeito.
O fator Bolsonaro
Bolsonaro ainda possui aprovação considerável no Rio, seu berço político e onde obteve votação de 66,35% em 2018. Mas o eleitorado da cidade tem reduzido a avaliação positiva sobre o presidente. A pesquisa mais recente, realizada em 9 e 10 de novembro pelo instituto Datafolha, mostrou que o Governo do presidente tinha aprovação de 28% entre os cariocas, abaixo dos 34% apurados poucos dias antes, entre 3 e 4 de novembro. No mês anterior, entre 5 e 6 de outubro, a aprovação ao Governo de Bolsonaro era de 37%. Já a reprovação ao Governo do presidente subiu de 38% em outubro para 42% na sondagem mais recente.
Para Ricardo Ismael, o resultado da votação para Crivella foi influenciado em parte pelo apoio de Bolsonaro. “Bolsonaro, apesar do desgaste, teve alguma influência na votação de Crivella, mas não igual à onda de 2018. Ainda tem uma parcela da população que o apoia. Na reta final, Crivella também contou com uma mobilização aguerrida dos evangélicos, eleitorado muito fiel, e se beneficiou dos ataques de Paes e da esquerda à Martha Rocha. Os votos que Martha perdeu foram transferidos para Crivella”, disse Ismael.
O apoio do presidente não teria valido de nada, contudo, se a esquerda não tivesse se dividido na capital fluminense. As candidatas Martha Rocha, Benedita da Silva e Renata Souza (PSOL) teriam, juntas, 25,81% da votação, superior à de Crivella. “A esquerda ficou dividida e o Crivella teve espaço para crescer”, analisa Ricardo Ismael, que avalia ter sido um “erro enorme” a não formação de uma aliança pelo campo progressista.
As melhores votações de Crivella vieram da Zona Oeste, área com a maior população evangélica da cidade e bairros que chegam a superar o total de católicos, como Campo Grande. A votação do prefeito na zona eleitoral que abrange os bairros de Campo Grande, Inhoaíba e São Jorge foi de 28,90%, acima da de Paes, de 27,94%. Em Bangu, Senador Camará, Santíssimo e Augusto Vasconcelos, na mesma região, a votação de Crivella, de 31,14%, também superou a de Paes, de 30,67%.
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A Zona Oeste define a disputa na cidade por deter cerca de 40% do eleitorado. Predominantemente habitada por pessoas de baixa renda, é um caldeirão que mistura evangélicos, domínio territorial das milícias em conflito ou colaboração com o tráfico de drogas e carência de infraestrutura urbana, de serviços de saúde e educação a cultura. Em termos gerais, Paes teve a preferência na região, similar ao seu resultado geral, mas foi a Zona Oeste quem garantiu a entrada de Crivella no segundo turno.
Cidade empobrecida
Crivella, de 63 anos, tem uma administração criticada em todas as áreas. O Rio é a capital com a maior taxa de letalidade em casos de covid-19 em todo o Brasil, depois de passar por uma crise aguda na saúde em 2019. No início da pandemia, o prefeito foi prudente ao anunciar medidas para contenção do contágio do vírus, mas, logo depois, quando Bolsonaro abriu guerra contra os governadores pela reabertura de atividades, Crivella liberou quase tudo, inclusive os cultos em igrejas.
O Rio tem um rombo fiscal inédito, de 4 bilhões de reais. A cidade está empobrecida, com taxa de desemprego recorde anterior à chegada da pandemia. Os transportes públicos são precários e as ruas estão esburacadas por todos os cantos. Na educação, há um fila de mais de 30.000 crianças para conseguir uma vaga em creche e a avaliação para averiguar se os alunos da rede pública foram de fato alfabetizados foi suspensa.
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