“Na pandemia, a população consume produtos de menor qualidade e menos frescos. É um alerta vermelho”
Rafael Zavala, representante da FAO no Brasil, diz que é hora de mudar os hábitos alimentares na América Latina, que tem a maior taxa de crianças obesas do mundo
Os efeitos econômicos e sociais da crise do coronavírus produzirão um retrocesso de pelo menos 10 anos na América Latina. O representante da FAO no Brasil, Rafael Zavala, afirma que a região não cumprirá com o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável da Fome Zero, um dos adotados pelos Estados membros da ONU na Agenda 2030. De certo, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), calcula que, depois da pandemia, 10% da população latino-americana estará em uma situação de insegurança alimentar.
No Brasil ainda não existem dados compilados sobre os efeitos da pandemia na alimentação. No entanto, o IBGE aponta que essa já era uma questão que vinha piorando no país. No biênio 2017-2018, a privação severa de alimentos esteve presente no lar de 10,3 milhões de pessoas, sendo que mais da metade dos domicílios em tal situação era chefiado por mulheres. Além disso, 36,7% dos lares brasileiros lidou, em algum momento, com algum grau de insegurança alimentar, atingindo 84,9 milhões de pessoas. Com a pandemia, a tendência é que o quadro se agrave ainda mais. Ainda assim, Zavala assegura que o cenário, apesar de caótico, pode converter-se em uma oportunidade para repensar os sistemas de produção e consumo de alimentos na região.
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Pergunta. Qual é a situação alimentar da América Latina?
Resposta. A FAO divulgou um informe com o diagnóstico do estado de insegurança alimentar para 2020 com cifras que indicam que nos anos anteriores, sem contemplar os efeitos da covid-19, já íamos mal. Antes da pandemia, 7,4% da população da América Latina e do Caribe estava nesta situação. Com a crise sanitária, esta cifra alcançará os 10% em 2030. Antes do coronavírus, uma em cada quatro pessoas vivia em situação de pobreza extrema. Depois da covid-19, serão uma em cada três.
P. O que é a insegurança alimentar?
R. É a subalimentação, não a fome como tal. Esta situação consiste na ausência de garantias de ingestão de calorias suficientes para levar a cabo uma vida ativa, saudável e normal. Na América Latina, uma dieta saudável custa cerca de quatro dólares (R$ 22,40) ao dia. É 34% mais caro que no resto do mundo, o que dificulta o acesso à comida pelas populações mais vulneráveis.
P. Quais são os maiores desafios para a região nos próximos meses?
R. A América Latina tem o desafio de promover reformas nos sistemas de saúde, garantindo o acesso universal, nos sistemas de proteção social, com a transferência de renda e também nos sistemas alimentares. A estrutura de produção de alimentos na região é pouco eficiente, exige transportes de longa distância que geram um grande impacto ambiental. Depois da pandemia, se gerará uma estratégia muito parecida à europeia, com sistemas mais integrados, trajetos mais curtos para transportar os alimentos e a valorização da agricultura familiar.
P. O Programa Mundial de Alimentos (PMA) das Nações Unidas foi laureado com o Nobel da Paz de 2020. Qual é o impacto desta premiação nas políticas propostas pela FAO?
R. Um dos maiores atributos do PMA é a distribuição e logística de alimentos, principalmente em zonas de conflito. Destaco que as crises alimentares têm quatro possíveis causas: o conflito armado; crises econômicas; crises climáticas; e aspectos sanitários, como é o caso da pandemia de covid-19. O reconhecimento do PMA no Nobel da Paz evidencia a importância que tem a luta contra a fome em momentos de crise.
P. Crise sanitária, crise econômica e crise alimentar. Qual é a mais difícil de solucionar? Há uma relação entre elas?
R. Eu não falaria de uma crise alimentar na América Latina neste momento. Trata-se precisamente de evitar que esta crise sanitária, e a consequente crise econômica, provoquem uma crise alimentar. Devido à pandemia, a população latino-americana está consumindo produtos mais baratos, de menor qualidade e menos frescos. Isto é um alerta vermelho. O aumento do número de pessoas com sobrepeso e obesidade aponta para a necessidade de instaurar políticas públicas de alimentação com sensibilidade nutricional.
Este quadro tem que interromper-se o mais rápido possível porque a América Latina é a região com o maior índice de obesidade do planeta: 7,5% das crianças latino-americanas têm sobrepeso. A obesidade infantil se transforma em diabetes, que gera outras enfermidades na vida adulta e potencializa os riscos de contagiar-se com coronavírus, por exemplo.
A situação é urgente. Muito além da quantidade de calorias, há que se observar a qualidade dos alimentos que se consomem. Deve-se mudar a ideologia alimentar e traduzi-la em atitudes e hábitos mais saudáveis. Na América Latina há uma cultura de comida e não de alimentação, com pouco interesse na qualidade dos alimentos.
P. Mas é possível fazer uma mudança ideológica neste momento de crise econômica?
R. Sim, esta crise oferece uma oportunidade mudar os hábitos de alimentação. É necessário incrementar a acessibilidade à dietas saudáveis, com políticas e investimentos orientados à melhora da nutrição e das cadeias logísticas de alimentos, com atenção à produção e distribuição destes produtos. Reduzir os desperdícios e promover a distribuição de uma cesta básica saudável também são desafios importantes. Deve-se trabalhar nas escolas e criar ambientes alimentares escolares saudáveis. A crise sanitária é uma oportunidade de melhoria alimentar.
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