Volkswagen assina acordo milionário de reparação por colaborar com ditadura e abre precedente histórico
Em termo de ajuste com procuradores, empresa reconhece cumplicidade com os órgãos de repressão brasileira e destina 36,3 milhões de reais a ex-trabalhadores e iniciativas pró-memória
A Volkswagen do Brasil assinou nesta quarta-feira um acordo extrajudicial que abre um precedente histórico no campo da reparação às violações de direitos humanos cometidos durante a ditadura brasileira (1964-1985). A montadora de origem alemã, cuja cumplicidade com a repressão nos anos de chumbo já havia sido apontada no relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) de 2014, assumiu o compromisso de destinar 36,3 milhões de reais tanto a ex-empregados presos, perseguidos ou torturados como a iniciativas de promoção de direitos humanos. Em troca, serão encerrados três inquéritos civis que cobram a empresa pela aliança com os militares assim como ficam vetadas novas proposições de ações.
É a primeira vez que uma companhia ―uma pessoa jurídica, e não física― admite reparar crimes durante a ditadura, o que abre um precedente jurídico para que outras empresas envolvidas com a repressão sejam investigadas. Ainda em 2014, o relatório final da CNV enumerou 53 empresas, tanto estrangeiras quanto nacionais e de portes variados, que contribuíram de alguma forma com a concretização do golpe de 1964. Entre elas estão Johnson & Johnson, Esso, Pirelli, Texaco, Pfizer e Souza Cruz.
Tecnicamente, a montadora assinou um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta), que foi negociado com representantes dos ministérios públicos Federal, Estadual e do Trabalho e está pendente de homologação pela Procuradoria Geral da República. “O ajuste de condutas estabelecido nesta data é inédito na história brasileira”, comemoram os procuradores em nota, frisando que, no mundo, ainda são raros os casos de empresas que aceitam analisar a sua colaboração com regimes autoritários. Pelo acordo, a Volks também deverá publicar em jornais de grande circulação uma declaração pública sobre sua cumplicidade com os órgãos de repressão. Todo o arranjo é um revés para o Governo Bolsonaro, que nega as violações cometidas no período e tem agido ativamente para desmontar estruturas oficiais ligadas à memória e à reparação.
O acordo da Volks é paradigmático num momento em que a Justiça brasileira segue dando passos lentos na direção da punição dos repressores e da compensação das vítimas da ditadura. O Brasil segue ignorando decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que há uma década decidiu que a Lei da Anistia, que impede a investigação e a sanção a graves violações de direitos humanos, deve ser invalidada. Nesta segunda-feira, o mecanismo voltou a ser evocado, desta vez pela 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que decidiu interromper a tramitação da ação penal contra cinco militares pela morte do ex-deputado Rubens Paiva em 1971. Ou seja, por ora, o crime contra o parlamentar, cujo corpo até hoje não foi localizado, continuará sem julgamento.
Da CNV às ações de reparação
A elucidação do papel da Volks durante a ditadura militar vinha caminhando desde a divulgação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, em 2014. Na época, a empresa encomendou um parecer próprio, produzido pelo historiador Christopher Kopper, professor da Universidade de Bielefeld (na Alemanha) sobre o tema. O documento divulgado pela própria companhia em 2017 reconhece a colaboração entre a segurança industrial da fábrica brasileira e a polícia política do governo militar, que começou em 1969 e se estendeu até 1979.
Diversos ex-empregados afirmam que durante a ditadura militar a empresa forneceu aos órgãos policiais informações sobre os funcionários e permitiu, dentro de sua própria fábrica, prisões sem ordem judicial e tortura policial. Lúcio Bellentani foi uma das vítimas desta parceria que foi mantida em segredo por décadas. Em entrevista concedida ao EL PAÍS em 2017, o ferramenteiro, que trabalhou na montadora entre 1964 e 1972, disse que foi preso sem qualquer mandado judicial enquanto trabalhava. “Ali mesmo começaram as torturas. Comecei a ser espancado dentro da empresa, dentro do departamento pessoal da Volkswagen. Por policiais do DOPS [Departamento de Ordem Política e Social] e na frente do chefe da segurança e dos outros seguranças da fábrica”, contou ele. Militante do Partido Comunista brasileiro, Bellentani foi detido porque os policiais queriam que ele indicasse quem eram seus companheiros que exerciam atividades sindicais ou políticas. Como ele, outros empregados passaram por situações parecidas, todas com o conhecimento e aval da montadora.
Ao longo das investigações apurou-se que houve cooperação dos funcionários da segurança interna da Volkswagen com os militares e que a empresa se beneficiou economicamente de medidas do período como o enfraquecimento dos benefícios trabalhistas. O reconhecimento de sua responsabilidade e conivência com violações de direitos humanos pela montadora é um primeiro passo para o direito à reparação histórica que as vítimas do período fazem jus.
Do montante total fixado no acordo assinado nesta quarta-feira, R$ 16,8 milhões serão doados à Associação Henrich Plagge, que congrega os trabalhadores da Volkswagen, e repartido entre os ex-funcionários que foram alvo de perseguições por suas orientações políticas. Outros R$10,5 milhões serão destinados ao reforço de políticas de Justiça de Transição, com projetos de preservação da memória das vítimas das violações de direitos humanos na época. A Volkswagen também pagará 9 milhões de reais aos Fundos Federal e Estadual de Defesa e Reparação de Direitos Difusos. Na nota divulgada, os procuradores cobram a Justiça que dê seguimento aos julgamentos de repressores e lamentam que o Brasil siga “como um caso notável de resistência à promoção ampla dessa agenda” de reparação. “Não por acaso ecoam manifestações de desapreço às suas instituições democráticas.”
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