Volkswagen admite laços com a ditadura militar, mas falha ao não detalhar participação, diz pesquisador
Empresa reconhece que facilitou prisão de ao menos sete empregados durante o período. Para coordenador da Comissão da Verdade, 'mea culpa' está aquém da expectativa
A montadora Volkswagen, cujos laços com a ditadura militar brasileira foram apontados no relatório do Comitê da Verdade divulgado em 2014, realizou um mea culpa sobre sua atuação no período. Um relatório, feito externamente por um professor alemão e divulgado pela montadora na última quinta-feira, 14 de dezembro, reconheceu que houve cooperação dos funcionários de sua segurança interna com os militares e que a empresa se beneficiou economicamente de medidas do período como o enfraquecimento dos benefícios trabalhistas. Para sindicalistas e ex-funcionários da fábrica, entretanto, o relatório é "fraco" e não aponta, de fato, o envolvimento da multinacional com a repressão, que teria sido muito mais grave do que o apontado, conforme documentos recolhidos do período. Segundo eles, a empresa forneceu aos órgãos policiais informações sobre os funcionários e permitiu, dentro de sua própria fábrica, prisões sem ordem judicial e tortura policial. Procurada, a Volkswagen não quis se pronunciar sobre as críticas.
O relatório feito pelo historiador Christopher Kopper, professor da Universidade de Bielefeld (na Alemanha), oferece um apanhado histórico do período pré-ditadura e isenta a empresa de participação no golpe contra o ex-presidente João Goulart, em 1964. Esta era uma das acusações feitas contra a Volkswagen (VW) e outras indústrias no relatório da Comissão da Verdade que, posteriormente, provocou uma representação contra a montadora no Ministério Público Federal, ainda em tramitação. "A diretoria executiva da VW do Brasil não participou do golpe contra o Governo em 1964 e da posse da ditadura militar, nem ofereceu apoio financeiro aos golpistas", ressalta o texto, que pondera, entretanto, que a implementação de uma ditadura cada vez mais repressiva "foi avaliada positivamente pela empresa, uma vez que contava com uma política mais estável e favorável às empresas."
"Friedrich Schultz-Wenk [presidente da filial brasileira da empresa na época] não se assustou com o golpe. Sua reação foi extremamente positiva, até mesmo eufórica. Em 16 de abril de 1964, ele escreveu uma longa carta a Nordhoff [presidente mundial da VW], não dissimulando a sua crítica sobre a 'clara virada para a esquerda do Governo de João Goulart'. Schultz-Wenk considerou a detenção de líderes sindicais, bem como dos reais e supostos simpatizantes dos comunistas expressamente bem-vinda", destaca o relatório de 120 páginas, que começou a ser produzido em novembro de 2016 a pedido de Christine Hohmann-Dennhardt, diretora de Integridade e Direito da empresa. Ele continua, então, a citar as reações do então presidente brasileiro da montadora. "Schultz-Wenk não minimizou o caráter violento do golpe, chegou até a justificá-lo. A sua frase 'Atualmente está acontecendo uma perseguição como nem sequer tivemos na Alemanha em 1933 [início da ditadura nazista de Adolf Hitler]” não expressa horror, mas sim respeito pela ação consequente dos militares contra a esquerda (...) Ele confiava que o Governo militar manteria sob controle a alta inflação com medidas impopulares, impondo uma estratégia de estabilidade firme à política econômica."
O relatório, entretanto, afirma que Nordhoff, o presidente mundial da empresa, não teria compartilhado do "entusiasmo" de Schultz-Wenk, recomendando, até, que ele se “abstivesse de qualquer ação que criasse um vínculo forte com o Governo" militar, algo que "seria precipitado e completamente inadequado” ressaltando, inclusive, que uma interferência na política brasileira seria "extremamente perigosa" para as empresas estrangeiras, devido à instabilidade do país. Mas outros diretores da empresa manifestaram a expectativa de que a nova política econômica pudesse beneficiar a empresa.
Colaboração com a repressão
De acordo com Kopper, a colaboração entre a segurança industrial e a polícia política do Governo brasileiro começou em 1969 e se estendeu até 1979. "Essa colaboração ocorreu especialmente através do chefe do departamento de segurança industrial Ademar Rudge, que devido a seu cargo anterior como oficial das Forças Armadas sentia-se particularmente comprometido com os órgãos de segurança. Ele agia por iniciativa própria, mas com o conhecimento tácito da diretoria", destaca o texto.
O historiador explica, então, que a segurança da Volkswagen "monitorava as atividades de oposição dos empregados e facilitou com a sua denúncia a prisão de no mínimo sete empregados e empregadas." E ressalta: "isso ocorreu em uma época na qual a prática de tortura da polícia política já era de conhecimento público na Alemanha e no Brasil." Um dos presos foi o operário Lúcio Bellentani, cujo depoimento é destacado. Ele afirmou que a segurança industrial não só permitiu a prisão dele no horário de trabalho, como a tortura da polícia política já tivera início dentro da própria fábrica. A denúncia foi reforçada por Bellentani em entrevista ao EL PAÍS.
"Em 11 de dezembro de 1969 o chefe da segurança patrimonial comunicou à polícia política que os seus empregados haviam encontrado o jornal ilegal A Ferramenta nos toaletes, nos vestiários e nas escadarias no início do primeiro turno. A segurança industrial não se limitou a constatar atividades subversivas. Sem que houvesse uma solicitação formal da polícia política, a segurança industrial informou o nome de quatro suspeitos", conta o texto. "O departamento de segurança industrial entregou à polícia política um relatório sobre todos os quatro com fotos e informações dos prontuários dos colaboradores. As informações sobre [um deles, o eletricista] José Miguel, acabaram ajudando a polícia política a desmembrar um grupo do Partido Comunista do Brasil (PCdoB)".
Ele aponta ainda outros indícios que demonstrariam a colaboração intensa da segurança da fábrica com a polícia. "Nos dossiês da polícia política foram encontrados vários jornais e folhetos ilegais distribuídos em 1970 e 1971 pelos membros de pequenos grupos comunistas ilegais na fábrica da VW, que foram encaminhados à polícia política pelo departamento de segurança. O seu conteúdo leva à conclusão que os autores conheciam bem a fábrica através de empregados da VW ou que eram eles mesmos trabalhadores", destaca o professor. "Mediante uma consulta da polícia política, o departamento de segurança disponibilizou dados de 28 empregados da VW que eram investigados pela polícia."
Para Sebastião Neto, coordenador do grupo que analisou a repressão a trabalhadores e sindicatos da Comissão da Verdade, o relatório é "decepcionante", pois havia a expectativa de que trouxesse mais detalhes sobre a atuação da empresa no período, já que o pesquisador teria tido acesso aos documentos da divisão de segurança da empresa que ainda não haviam sido relevados. "É um texto contraditório, que diz que os funcionários da segurança agiam de forma autônoma, mas ao mesmo tempo havia conhecimento tácito da direção", destaca ele. "A Volkswagen deixou rastros enormes", diz.
Veículos
O relatório também cita outra das acusações feitas anteriormente à multinacional, a de que ela havia emprestado veículos para a repressão militar. Kopper afirma que não existem documentos que comprovem o fato, mas diz que ele "parece provável". "Em junho de 1969 as Forças Armadas Brasileiras, a Polícia Estadual e a Polícia Federal organizaram em São Paulo uma unidade especial (Operação Bandeirante – OBAN) para lutar contra militantes da esquerda armados e não armados. O financiamento do equipamento técnico da OBAN não dependia de recursos públicos. Já em 1968, os membros da Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo] prometeram ao Governo o apoio financeiro em sua luta contra adversários políticos", ressalta ele.
"Desde a sua constituição, a OBAN utilizou veículos da VW do Brasil e da Ford para levar oficiais e e suas equipes às operações e os detidos ao centro de interrogatório, onde muitos eram torturados. Uma vez que não há dossiês da OBAN disponíveis, a pergunta sobre o apoio material por parte da indústria automobilística em geral e da VW em especial só pode ser respondida através de testemunhos de membros da OBAN. O ex-sargento Marival Chaves Dias do Canto declarou em 1992 ao Jornal do Brasil que as montadoras forneciam veículos gratuitamente à OBAN. Considerando a patente bastante baixa dessa testemunha, impõe-se todavia, uma certa insegurança se ele tinha realmente conhecimento do financiamento no âmbito de suas competências profissionais ou se a sua declaração estava baseada em suposições e rumores", pondera o texto. "Uma vez que a FIESP apoiava ativamente a OBAN e a VW figurava entre os principais membros da Federação, um apoio material direto (mediante o fornecimento de veículos) ou indireto à OBAN (por meio de contribuições à FIESP) da VW do Brasil parece provável", conclui.
Na quinta-feira, ao divulgar o relatório, a Volkswagen inaugurou uma placa em memória das vítimas do regime militar nas instalações de sua fábrica, em São Bernardo do Campo. E afirmou que o momento "marca o ponto inicial da cooperação com organizações de promoção social e de direitos humanos". "A Volkswagen tem uma ligação histórica e emocional com o Brasil e os brasileiros. Um compromisso de longo prazo, com 65 anos de atuação no país. Com esta ação, a empresa reafirma seu compromisso com o Brasil e reforça seus valores a favor dos direitos humanos e a responsabilidade social", afirmou Pablo Di Si, presidente e CEO da Volkswagen Região América do Sul e Brasil, segundo um texto divulgado pela assessoria de imprensa. De acordo com veículos de imprensa locais, a montadora afirmou que não pretende pagar indenizações individuais aos prejudicados por suas ações. Sua reparação será feita por meio de cooperações com instituições.
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