Menina estuprada sofreu acosso de ultraconservadores até dentro de hospital

Rede de apoio de mulheres se montou para proteger criança violentada pelo tio. Aos 10 anos, ela fez aborto após ter seus dados expostos por extremistas da direita e enfrentar a pressão da ministra Damares, de pastores e até de médicos

Os brinquedos de pelúcia que acompanharam a menina de dez anos na viagem até o Recife para a realização do aborto.

Um sapo e uma girafa de pelúcia. Ao lado da avó e de uma assistente social, essas foram as companhias da garota de 10 anos, que denunciou ser estuprada desde os seis por um tio, no voo que a levou de Vitória até o Recife no último domingo. De vestido estampado com flores e formas geométricas azuis, chinelo cor-de-rosa e bolsa a tiracolo da mesma cor, a criança, grávida em decorrência de mais um estupro cometido pelo parente, chegou ao aeroporto da capital pernambucana por volta das 15h. Ali, uma força-tarefa de apoio, formada majoritariamente por mulheres, havia sido montada e já estava de prontidão para auxiliar na peregrinação da menina para garantir a realização do aborto, que, no caso dela, está assegurado pela legislação.

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A peregrinação da criança em busca de atendimento médico não se limitou a uma distância física entre Estados. A garota sofreu pressões de grupos e médicos ultraconservadores até mesmo depois de o procedimento já ter sido feito. Já na cama do hospital do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), no Recife, referência no atendimento de vítimas de abuso sexual, a garota foi assediada por um obstetra e uma pediatra. Eles entraram no hospital, se valendo da identidade profissional, para assediá-la. Mas tanto a garota quanto sua responsável, a avó, estavam seguras da decisão de interromper aquela gravidez.

Em 2018, data dos dados mais recentes do Ministério da Saúde, 21.172 crianças com idade entre 10 e 14 anos deram à luz. Desse total, 15.851 eram meninas negras, assim como a garota. A menina violentada estava decidida a não fazer parte desta estatística. A Justiça já havia autorizado, na sexta-feira, a realização do procedimento, atendendo ao pedido do Ministério Público do Espírito Santo e entendendo que a vontade da menina é soberana e que a lei permite a interrupção da gravidez em casos de estupro. Ainda assim, ela teve de enfrentar um calvário, porque nenhum hospital do Espírito Santo quis realizar o procedimento, citando questões “técnicas”.

A recusa de realizar a interrupção da gravidez, aliada à grita dos grupos radicais iniciada nas redes sociais, levou a uma corrida contra o relógio. Rapidamente uma rede de mulheres formou um esquema para garantir que a criança chegasse com segurança ao Recife. Na chegada ao aeroporto, um carro já esperava por ela, para levá-la diretamente ao Cisam, onde o procedimento seria realizado. O trajeto de cerca de meia hora foi feito com uma espécie de escolta por um segundo carro, devido ao temor de que grupos radicais também estivessem no aeroporto. Não foi o caso. Conseguiram chegar ao hospital, onde entraram pelos fundos. O medo de que houvesse alguém no aeroporto se concretizou na chegada ao Cisam, cuja porta da frente reunia algumas dúzias de militantes contrários ao aborto e incendiados pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves.

Os militantes e grupos religiosos chegaram até lá depois que a extremista de direita Sara Giromini divulgou não só o endereço do local para onde a garota seria levada, como também sua identidade, ferindo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O caso corre em sigilo judicial e nesta segunda a Justiça determinou que redes sociais apaguem publicações com os dados da garota.

Mas a menina conseguiu passar despercebida e foi recebida pela equipe médica do Cisam já no estacionamento. Foi levada para uma sala de espera onde uma TV transmitia a partida entre Vasco e São Paulo pelo Campeonato Brasileiro. A garota é apaixonada por futebol. Flamenguista, dividiu os comentários do jogo com a avó vascaína e a assistente social são-paulina. Do lado de fora, ativistas radicais contrários ao aborto gritavam “assassino” para o médico Olímpio Moraes Filho, diretor do Cisam. A instituição, mantida pela Universidade de Pernambuco (UPE), é referência estadual nesse tipo de procedimento e de acolhimento a vítimas de violência sexual.

A viagem não deve ter durado menos que seis horas, já que não há voo direto de Vitória para o Recife. A garota teve que sair do seu Estado depois de passar 36 horas no Hospital Universitário Cassiano Antonio Moraes (Hucam), na capital capixaba, até que a instituição enfim anunciasse a recusa em realizar o procedimento. Rita Elizabeth Checon de Freitas Silva, superintendente do Hucam, disse nesta segunda-feira em entrevista coletiva que “foi uma decisão absolutamente técnica” e que “não teve viés ideológico, religioso e nenhuma interferência externa”.

De acordo com Silva, a instituição não estava “capacitada” para realizar o aborto, já que a gestação levava cinco meses, ou seja, tinha passado de 22 semanas, o feto tinha mais de 500 gramas —ambos fatores-limite para a realização do aborto legal de acordo com o Ministério da Saúde— e a garota tinha diabetes gestacional. Porém, no caso de estupro, ao contrário do que alardearam os ultraconservadores, o aborto é autorizado, desde que o procedimento tenha consentimento da gestante: não há uma data-limite para ser realizado. E foi esse o entendimento da Justiça na sexta-feira. Como ainda assim o Hucam se negou a realizar o procedimento alegando falta de “condições técnicas”, a Secretaria Estadual da Saúde estabeleceu então contato com o Hospital das Clínicas de Uberlândia (MG), que negou o atendimento porque não havia vagas, e o Cisam, no Recife, que acolheu a garota.

Massinha e livros

A peregrinação desta criança, que gosta de ler e brincar de massinha, segundo pessoas próximas, começou muito antes dessas 36 horas no Hucam. No dia 8 de agosto, ela foi levada por uma tia ao hospital da cidade onde vive, São Mateus, a 183 quilômetros de Vitória, se queixando de dores abdominais. A uma assistente social, a menina afirmou que havia sido estuprada pelo tio depois que um exame de gravidez comprovou a gestação. E disse que sofria abusos por ele desde os seis anos de idade. O caso está sendo investigado pela polícia local. O tio, de 33 anos, foi indiciado por estupro de vulnerável e ameaça e preso nesta terça-feira de madrugada. Desde aquele o momento, a criança manifestava claramente seu desejo de interromper a gravidez.

Enquanto a Justiça decidia se a criança podia ou não abortar, a garota ainda recebeu visitas de pastores evangélicos em sua casa que tentaram convencê-la a não realizar o procedimento. O Ministério Público estadual prometeu investigar grupos que tentaram pressionar a avó da menina, responsável por ela, para que o procedimento não fosse autorizado. O arcebispo da Arquidiocese de Olinda e Recife, dom Fernando Saburido, também fez questão de mostrar o alinhamento da alta hierarquia católica com os ultraconservadores: “Se grave foi a violência do tio que vinha abusando de uma criança indefesa (...), gravíssimo foi o aborto realizado em Recife”.

Mas ao mesmo tempo em que a grita aumentava do lado de fora —e de dentro— do hospital, a rede de resistência também crescia. Nesta segunda-feira, depois que a Secretaria da Saúde de Pernambuco emitiu uma nota informando que o procedimento havia sido realizado e que a garota passava bem, o grupo de mulheres seguia mobilizado. Estavam preparando o quarto do hospital, com livros e brinquedos, incluindo massinha, para quando a criança voltasse. No domingo, uma caixa de massinha já havia sido dada para ela, que não desgrudou do presente, além do sapo e da girafa.

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