Doria empurra os pobres ao vírus com plano de abrir shoppings
À espera do cliente que pode não se arriscar a uma ida às compras estará o morador da Brasilândia, onde a covid-19 já matou o equivalente ao ocorrido em cinco bairros nobres juntos
Em 20 dias, o discurso do Governo de São Paulo em relação a necessidade de manutenção de medidas contra a covid-19 mudou radicalmente. Se no dia 8 deste mês, quando o Estado registrava 3.416 mortos pelo novo vírus, o plano era relaxar a quarentena apenas quando houvesse redução sustentada de novos casos por 14 dias e uma taxa de ocupaçã...
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Em 20 dias, o discurso do Governo de São Paulo em relação a necessidade de manutenção de medidas contra a covid-19 mudou radicalmente. Se no dia 8 deste mês, quando o Estado registrava 3.416 mortos pelo novo vírus, o plano era relaxar a quarentena apenas quando houvesse redução sustentada de novos casos por 14 dias e uma taxa de ocupação de UTIs abaixo de 60%, nesta quarta-feira, sem cumprir qualquer uma dessas regras autoimpostas, tudo afrouxou. O novo planejamento agora autoriza a livre circulação de pessoas por locais como shoppings centers em data que começa a ser negociada com o setor na capital, onde atualmente 91% dos leitos de Unidades de Terapia Intensiva estão ocupados. “A quarentena é quem salva vidas”, afirmou naquele dia 8 o governador João Doria, em uma frase de impacto que o opunha aos despropósitos anticientíficos de Jair Bolsonaro. Agora, 20 dias depois, o recado é o de que, talvez, nem todas as vidas precisam de fato ser salvas, quando o que está em jogo é a economia.
A abertura dos portões joga na linha de frente do risco da doença a classe que já é a mais exposta atualmente: a dos trabalhadores mais pobres, moradores da periferia, usuários de transporte público e, justamente, os mais suscetíveis às oscilações do sistema de saúde público.
Os argumentos usados pelo Governo para a “retomada consciente” das atividades em São Paulo foram, entre outras coisas, a desaceleração do crescimento de casos —que, no entanto, ainda segue numa curva ascendente, assim como o de mortes—, a duplicação da capacidade de leitos de UTI, o aumento de testes para a identificação da doença e a adesão ao uso de máscara nos locais públicos. De fato, São Paulo começou a lição de casa direito, apesar de medidas atrapalhadas como o superrodízio: decretou a quarentena em 24 de março, quando tinha 810 casos da doença e 40 mortes, passou a monitorar com a ajuda de empresas de telefonia móvel a adesão ao isolamento —que diante da propaganda negativa de Bolsonaro nunca atingiu níveis verdadeiramente satisfatórios— e conseguiu ganhar tempo para se preparar para a avalanche de casos. Se não tivesse feito isso, os pacientes sobrecarregariam o sistema de saúde e prejudicariam a possibilidade de atendimento aos que precisam, como ocorreu em Manaus, onde pessoas chegaram a morrer em casa, ou no Rio, onde as histórias de doentes à espera de vagas de UTI se acumulam, geralmente com finais trágicos.
O isolamento permitiu que a intensidade do contágio reduzisse. E a boa gestão técnica paulista conseguiu construir os hospitais de campanha necessários para atender os casos mais leves. Sem grandes sobressaltos, coordenou e priorizou para os casos graves a ocupação de hospitais de referência, mais bem equipados, como o Hospital das Clínicas. Contratou leitos da rede privada quando precisou. E, com esse conjunto de medidas, conseguiu salvar 65.000 vidas, estima o Governo, e registrar 84.000 casos, quando poderia ter chegado a 950.000 se as atividades tivessem seguido normalmente. Mas a verdade é que São Paulo escolheu fazer menos do que poderia. Não teve coragem de decretar o lockdown, protocolo de isolamento mais rígido que seguiria o exemplo de países como Itália ou a França, onde sair de casa sem justificativa plausível por escrito poderia render multas. Seria preciso um contingente maior de policiais, justificou Doria, sem pensar no efeito até psicológico que a medida poderia ter, ao mostrar com clareza a gravidade da situação diante da rígida medida adotada.
A adoção do lockdown, segundo o Datafolha, encontrava a concordância de 60% da população, mas o desgaste de seguir enfrentando o setor econômico falou mais alto. Os dados mostram o tamanho dessa pressão. Segundo um levantamento do Sebrae feito com empresários do país, o faturamento dos pequenos negócios de 18 segmentos registrou perda de 69% em abril e 60% em maio, em comparação com o que se ganhava antes da crise. A venda em setores mais parrudos, como o de automóveis, despencou 90% no país. E o reflexo se viu nos dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) divulgados nesta quarta: São Paulo, especificamente, perdeu 336.755 postos com carteira assinada nos meses de março e abril. E os Governos falharam em ajudar efetivamente os mais pobres a conseguirem manter o isolamento. Para muitos deles, ficar em casa nunca foi uma opção.
Rumar na contramão das medidas mais restritivas em um momento em que o número de óbitos ainda não chegou ao pico e iniciou o rumo da descida poderá ter consequências avassaladoras não apenas para as vidas, mas também para a economia. Com dados cada vez mais assustadores, quem vai se arriscar a frequentar livremente um shopping center para tomar um cafezinho e olhar vitrines numa tarde inocente de sábado? Quem pode se proteger, seguirá confinado em sua confortável casa, esperando o monstro passar, sem se arriscar em aventuras desnecessárias. Mas quem estará ali, à espera da horda de clientes que podem não vir, é o morador de algum lugar na zona leste, região que já registrou 2.468 mortes por covid-19 até o momento —mais do que todo o Estado de Pernambuco, como apontou uma reportagem do portal UOL. Ou de Brasilândia, distrito de São Paulo líder de mortes pela doença doença: 185 até agora, um valor quase equivalente à soma do ocorrido em locais nobres como Morumbi (23), Pinheiros (36), Moema (37), Consolação (39) e Itaim Bibi (53), que juntos acumulam uma população quase 40% maior.
É lá que vivem hoje os trabalhadores que mesmo com o isolamento seguem na labuta como cozinheiros dos restaurantes que a classe média acessa por aplicativo, motoristas de Uber ou de ônibus, ou como empregados de casas que não tiveram a sensibilidade de afastá-los, com o salário garantido, em troca de fazer a própria faxina. E é para os vizinhos deles, que por enquanto ainda se mantinham em casa com seus locais de trabalho fechados, que as portas da volta ao trabalho se abrirão nos próximos dias. Ou alguém pensa que será o dono da loja que estará ali, disposto a recepcionar os clientes que se aventurarão ao passeio supérfluo?
Em uma reportagem publicada pelo Jornal da USP um dia antes do anúncio das novas medidas do Governo de São Paulo, pesquisadores do Observatório Covid-19BR alertavam que a retirada das medidas de isolamento no Estado, que efetivamente ajudaram a reduzir mortes e contágios, poderiam mostrar a mola existente embaixo da curva achatada nos últimos meses: os casos seriam imediatamente impulsionados para cima novamente. E encontrariam um cenário em que há apenas 25% de UTIs em todo o Estado liberadas para receber os doentes graves —na capital, 15%. Um desastre à vista —talvez maior do que o já projetado por pesquisadores norte-americanos nos últimos dias, que trazem um cenário de mais de 100.000 mortes até agosto em todo o Brasil. Mas a desgraça, como sempre, não será igual para todos. Mais uma vez serão os pobres os jogados ao coronavírus em nome de se tentar salvar uma economia que não se recuperará com as portas abertas de shoppings centers. A vida não voltará ao normal apenas pela vontade política de destrancar as portas. Quem manda aqui é o avanço da ciência —e a tão esperada vacina, que ainda deve demorar.
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