Combate ao medo e ao isolamento de pacientes na linha de frente contra o novo coronavírus
Profissionais do hospital de campanha do Ibirapuera, em São Paulo, usam tecnologia para driblar os problemas de comunicação a distância e aproximar pacientes de suas famílias
Por volta de 11h da manhã do dia 6 de maio, Raquel Fiuza Vieira, 26 anos, recebeu com alívio uma ligação do hospital de campanha do Complexo Ibirapuera, em São Paulo. Do outro lado da linha, uma assistente social e, em seguida, um médico, traziam notícias sobre seu pai, Américo Cardoso Vieira, 65. Morador do Grajaú, bairro da periferia da zona sul da capital paulista, o idoso havia dado entrada na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Santo Amaro três dias antes, com sintomas da covid-19. Enquanto estava lá, sua família foi informada de que ele seria transferido para realizar uma tomografia, mas ninguém disse quando isso ocorreria, ou para onde o paciente iria. “Na UPA ficamos sem contato. Meu pai não pôde ficar com nada, nem celular, nem os óculos”, contou Raquel. “Meu irmão e eu passamos duas noites em claro à espera de notícias. Minha mãe só dormiu porque estava medicada.”
A jornada de Leomar Silva Santos, 29, até a unidade do Ibirapuera foi diferente da saga da família Vieira, mas o medo e a incerteza eram os mesmos. Morador da Saúde, área de classe média da zona sul da capital, logo ao sentir os primeiros sintomas ―uma falta de ar intensa após subir uma escada e uma noite sem dormir com problemas para respirar― ligou para o 156, telefone de informações da Prefeitura de São Paulo, e foi orientado a ir à unidade de atendimento mais próxima de sua casa. No caso, o Hospital São Paulo, onde fez uma tomografia e já no dia seguinte, segunda-feira, 5 de maio, foi encaminhado para a unidade do Ibirapuera. “Vi uma mulher sair para o hospital de campanha e ouvi um burburinho de que o próximo seria eu. Fiquei com medo, não sabia o que era. Pensei que estava piorando”, afirmou Leomar. Na ambulância, foi informado de que se tratava de um hospital dedicado para pacientes de baixo risco da covid-19 e se tranquilizou. No entanto, sua esposa, Beatriz Linhares Rodrigues, 20, precisou ir atrás da ambulância para descobrir o destino do marido. “Não sabia direito para onde ele estava indo”, conta. Só se acalmou quando, ao chegar, foi atendida pela equipe de comunicação.
Nas duas primeiras semanas de operação, os profissionais que estão na linha de frente do hospital de campanha do Ibirapuera estão descobrindo que, assim como o vírus, o medo e a dificuldade de comunicação também se tornaram inimigos a serem combatidos. “As pessoas chegam um pouco desesperadas. Sempre acham que o seu familiar vai morrer”, diz a médica Mônica Pinheiro, responsável técnica pelo hospital, que é uma iniciativa do Governo do Estado, mas é gerido pelo Serviço Social da Construção Civil do Estado de São Paulo (Seconci-SP).
A situação fica mais complicada por ninguém saber, afinal, o que é um hospital de campanha, um modelo herdado dos campos de batalha e que passou a ser utilizado em caso de grandes desastres, especialmente os humanitários. “Há muita fantasia. E quando vê que é barraca, então... Outro dia choveu e o pessoal pensou: ‘E agora’?”, conta Mônica, cujo principal desafio se tornou passar tranquilidade e confiança para as famílias e pacientes, num momento em que os casos de covid-19, e também as mortes, crescem exponencialmente em todo o Estado de São Paulo.
Desde que o hospital recebeu o primeiro paciente, em 3 de maio, o número de vítimas fatais no Estado dobrou, chegando a 5.147 óbitos nesta segunda, assim como o número de casos, que alcançou a marca de 65.995. A velocidade de contágio se reflete no número de pacientes da unidade do Ibirapuera. Até esta segunda, 320 pessoas foram atendidas. Desse total, 146 receberam alta. E 133 permanecem internados (124 em enfermaria), no hospital que tem um total de 240 vagas; nove pessoas estão em leitos de estabilização, um passo antes da UTI, onde há 28 lugares. Outras 41 pessoas foram transferidas para UTI de outros hospitais, por precisarem de cuidados ainda maiores, algo que, até este momento, foi feito sem a necessidade de se enfrentar uma fila de espera. Nenhuma morte foi registrada na unidade nessas pouco mais de duas semanas de operação.
A rotina é de um hospital que não pode se permitir rotina. “A evolução da doença é muito rápida. Temos paciente que contamos que será entubado e minutos antes ele avisa a família por telefone. Não dá para esperar para ver a evolução do quadro”, conta Mônica. “Tem muita coisa acontecendo ao mesmo tempo. Muito paciente entrando, mas também saindo. Uma equipe que ainda está se entrosando com os fluxos do hospital. Famílias querendo informações. Mas não é como um hospital tradicional, onde podemos operar no automático. É um ambiente estressante e emocionante”, explica Mônica.
“Quando tem muita informação, em quem você confia?”
O acesso à informação é um ativo fundamental no combate à pandemia. Mas o excesso de notícias desencontradas, especialmente em época de polarização política, acaba por se chocar com quem está na linha de frente da batalha contra o novo coronavírus. E não raro, alimentam fake news. “Algumas pessoas acham que a gente está escondendo algo; outros que a situação política pode fazer com que seu familiar não receba o melhor tratamento como o dos hospitais particulares”, afirma Mônica. “Temos que explicar: uma coisa é política, outra coisa é a saúde.”
Não à toa, a insegurança das famílias é esperada. “Quando tem muita informação, em quem você confia?”, pergunta Mônica. A médica conta que familiares e pacientes chegam falando sobre pesquisas de drogas novas no exterior, querem discutir gasometria, sabem que há uma coalizão de hospitais privados ―Albert Einstein, HCor, Sírio-Libanês, Moinhos de Vento e Oswaldo Cruz― conduzindo estudos sobre tratamento para a covid-19; e se preocupam em saber se as inovações vão chegar ao Sistema Único de Saúde (SUS). “Na situação de estresse, é muito importante uma boa interação com as pessoas. E deixar claro que ninguém vai deixar o paciente morrer porque não teve acesso a protocolo. Na área médica, temos acesso a tudo”, explica.
Por outro lado, a médica sabe que a falta ―e mesmo a confusão― de informações dentro da unidade pode criar crises desnecessárias. Por isso, o hospital de campanha foi pensado com um aparato de tecnologia ―que não está disponível em unidades tradicionais do SUS, como UPAs e hospitais― para tentar dar conta da nova demanda de comunicação a distância. “Os pacientes têm internet gratuita para falar com a família, e também testamos tudo: WhatsApp, ligação telefônica ou vídeo”, explicou. Mas é por tentativa e erro. “Se o boletim por mensagem de celular não funciona, ligamos. Se o paciente está mais grave, chamamos a família por vídeo. Às vezes, falamos com até mais de um membro da família para esclarecer o que está acontecendo”, diz.
A covid-19 é uma doença solitária, que depende de isolamento severo. Mas o cenário de não ter a família por perto é uma novidade para a maioria dos profissionais de saúde, especialmente os mais jovens. Mônica lamenta que a pandemia esteja forçando um distanciamento entre os médicos e familiares. Neonatologista, ela se lembra que uma das últimas fronteiras da família nos hospitais foi rompida exatamente na sala de parto, no final dos anos 90. "A presença de um acompanhante deixa o paciente mais calmo, mesmo em caso de intercorrências, porque ele vê o que estamos fazendo. Hoje retornamos a uma situação anterior, mas, com sorte, num momento onde a tecnologia de comunicação disponível é tremenda”.
As falhas de comunicação aumentaram o estresse da família Vieira durante sua jornada pelo SUS. Américo não foi o primeiro paciente de sua família a pegar o vírus. Sua filha, Raquel, já havia passado cinco dias internada com a doença em um hospital particular. “Tive uma forte dor abdominal e fui internada para investigar uma infecção intestinal”. O diagnóstico se confirmou, bem como a covid-19. Quando voltou para casa, tanto seu pai, quanto sua mãe, Maria Rosangela dos Reis, também apresentavam os sintomas da doença. “Ela estava vomitando e ele perdeu o apetite de uma hora para outra. A febre deles não baixava. E eu em casa sem poder sair para ajudá-los”, disse.
Os pais passaram pelo posto de saúde, onde conseguiram atestado para se afastar do trabalho ― Américo é porteiro e Maria, babá ―, mas sem melhora, foram para a UPA, acompanhados do filho, Rafael Vieira. Américo ficou internado, enquanto Rosângela foi liberada para casa, com a receita de antibióticos. Não havia teste disponível para avaliar se ambos estavam doentes. Com a internação de Américo, a família tentou obter informação por telefone, mas foi avisada de que teria que comparecer pessoalmente, durante o horário da visita — que, na prática, não existe. “As pessoas falam para evitar aglomeração, mas às 10h estão todos os familiares na porta da UPA. Meu irmão e minha mãe chegaram cedo e foram atendidos ao meio-dia”, lembra Raquel, que já está recuperada e voltou ao trabalho de secretária. “Até hoje não entendi por que deixaram meu pai sem nenhuma comunicação. Ele saiu da UPA para o hospital regional, onde fez a tomografia, e depois foi para o de campanha, sem que soubéssemos”, lamenta. A UPA de Santo Amaro é uma organização social de saúde, também administrada por uma entidade particular, a Associação Congregação de Santa Catarina. Porém, toda comunicação está centralizada na Prefeitura, que até a publicação desta reportagem não respondeu sobre o protocolo de informações nas UPA.
A busca pela normalidade em meio ao caos mundial
Pela experiência anterior, a família acreditava que o contato seria escasso durante a internação na tenda de campanha, por isso, levou uma cartinha para tranquilizar Américo, no Ibirapuera, no dia 6 de maio. Mas foram surpreendidos. "Entregamos o celular no começo da tarde e às 17h ele nos ligou. Estava bem choroso, pensou que a gente não iria saber onde ele estava, que iríamos deixá-lo lá", conta Raquel.
Américo, assim como Leomar, vivenciou uma experiência bastante incomum, ficar internado em uma tenda na região central e rica de São Paulo. Prerrogativa da pandemia, que fez com que uma solução sempre associada a situações de guerra ou epidemias em lugares distantes como a do Ebola, na África, de repente se espalhasse por várias cidades do mundo. Passada a tensão da transferência, foi ali que ambos puderam finalmente realizar o teste da covid-19, algo ainda escasso em todo o país, e confirmar seu diagnóstico.
Após o trauma na entrada no SUS, foi com surpresa que os Vieiras receberam uma ligação da assistente social Adriana Pimenta, responsável pela equipe do serviço social do hospital, perguntando se poderiam fazer uma comemoração para Américo no dia 7 de maio, seu aniversário. A festa, com a participação da família pelo celular, o deixou emocionado. “Um dos nossos principais trabalhos é traçar o perfil de cada paciente, e essa atividade é feita à beira leito no hospital de campanha”, afirma Adriana. “Notamos que nossa presença no leito tem resultados positivos, pois os pacientes se sentem acolhidos e, muitas vezes, nos enxergam como uma extensão do mundo real, minimizando o motivo que os trouxe aqui”, explica a assistente social.
São essas tentativas de manter a normalidade em meio a um cenário mundial caótico, como as eventuais celebrações de aniversário, que ficam guardadas nas lembranças dos pacientes. Atitudes que trazem ânimo até para os vizinhos. Leomar se lembra do “parabéns” de Américo, que ficava numa “cabaninha” próxima a da dele. “Ele ganhou até bolo num copinho”, conta. Américo e Leomar já tiveram alta. Agora se recuperam da covid-19 em casa.
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