População negra vai à Justiça para contar seus mortos por coronavírus e expõe leitura deformada da pandemia
Justiça obriga inclusão de dados de cor das vítimas nos óbitos da pandemia, num momento em que ao menos um terço dos registros não traz essa informação. Dados disponíveis sugerem que os negros são maioria entre as vítimas
A Justiça Federal do Rio de Janeiro determinou, no último dia 4, que notificações de casos confirmados e óbitos em decorrência do coronavírus incluam, obrigatoriamente, informações de raça e cor dos infectados. A liminar estabelecia que tanto a União, quanto o município e o Estado do Rio de Janeiro cumpram essa determinação. A decisão tentava corrigir a lacuna de informações sobre raça de infectados e vítimas de covid-19, pois ao menos um terço das notificações disponíveis com o Ministério da Saúde não têm essa informação. Nesta sexta, a Justiça do Rio acabou suspendendo a liminar a pedido da União.
O episódio acabou relevando um impasse que expõe a falta de controle dos dados sobre a pandemia no Brasil e sobre os grupos mais atingidos pelo vírus. Na decisão do dia 4, o juiz federal Dimitri Vasconcelos Wanderley ressaltava que a “coleta adequada de informações se revela essencial para o estabelecimento de protocolos de mobilização da população para a contenção da propagação do vírus e a formulação de políticas públicas adequadas para o tratamento da população atingida”.
Em tese, a decisão seria desnecessária, já que o Ministério da Saúde tem duas portarias que disciplinam a política de atenção integral à população negra, obrigando os registros de raça/cor em todas as notificações referentes a doenças. Foi esse um dos argumentos da União para derrubar a liminar. Também alegou que o ordem judicial faria com que os agentes de saúde “repentinamente” fossem “obrigados a modificar suas atividades para promover o cumprimento daquilo que os autores - sem qualquer planejamento - reputam devido”.
O Ministério da Saúde, porém, tem divulgado dados incompletos a despeito da orientação que diz seguir. No único boletim epidemiológico em que há informações sobre raça dos infectados e vítimas da covid-19, do último dia 9, com dados compilados até dia 8, havia 30% dos óbitos sem essa informação. Até aquele dia, o Brasil registrava oficialmente 9.897 mortes. O gráfico apresentado pela pasta (na página 44, figura 48, que pode ser visto clicando aqui) leva a crer que 47% das vítimas eram brancas, 42% pardas e 7% em pretas. Porém, o Ministério informa que 2.896 mortes desse total, ou seja, 30% dos óbitos registrados até o dia 8, não informavam a raça. Questionada por que nem todas as notificações são preenchidas, a assessoria de imprensa respondeu que faria uma consultoria à área técnica.
O embate jurídico expôs a negligência histórica com o tratamento da saúde de mais da metade dos brasileiros que hoje se declaram pretos ou pardos. “Pedimos o cumprimento das normas que já existem”, explica Silvio Almeida, presidente e advogado do Instituto Luiz Gama, ONG que atua em defesa dos direitos e garantias das minorias e é autora da petição, juntamente com a Defensoria Pública da União. “Não havendo esse cumprimento, é possível que existam providências mais drásticas, como por exemplo, a responsabilização dos agentes públicos que são diretamente responsáveis pela coleta de dados”, afirma ele, que também é advogado e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da Universidade de Duke, nos Estados Unidos.
A defensora pública federal Rita Cristina de Oliveira, lembra que, embora a obrigatoriedade desse registro exista no papel, o próprio sistema informático do Ministério da Saúde abre uma brecha para essa negligência. “Na ferramenta, se esse dado de raça/cor não for preenchido, o sistema é alimentado da mesma maneira. Ou seja, ele não trava porque esse dado específico não foi colocado lá”, diz. “Mas o que mais nos chamou atenção no contexto da pandemia, é que, não bastasse essa negligência histórica, foi criada uma ficha de notificação simplificada para doentes da covid-19 que sequer tinha o campo para o preenchimento de raça/cor”. Somente a ficha de doentes de Síndrome Respiratória Aguda Grave, usada no caso de pacientes que não tiveram contato direto com casos positivos de coronavírus, apresenta esse campo de raça/cor.
Silvio Almeida explica que essa informação é fundamental para o desenvolvimento de políticas públicas e estratégias no combate à pandemia. “A pandemia, que é um problema de saúde pública, tende a se agravar muito mais por causa da desigualdade que é uma característica do Brasil”, afirma. “É fácil constatar que são as pessoas negras são mais afetadas no contexto da pandemia”. A defensora Rita Cristina completa: “O racismo no sistema de saúde também não pode ser ignorado especialmente quando a morte de muitos cidadãos periféricos advém da ausência de acesso a tratamentos adequados, equipamentos e atenção básica”, diz.
Em São Paulo, o último boletim epidemiológico da capital paulista que traz esse recorte de raça/cor é de 30 de abril e informa que quase 79% dos 11.025 casos confirmados de coronavírus naquele momento não tiveram esse campo preenchido. A falta de informações ocorre exatamente quando mapa da cidade mostra que é nas periferias, que está a maioria dos atingidos pela doença, como reconheceu o prefeito Bruno Covas numa coletiva da semana passada. “Semanalmente o número de mortos vai aumentando muito na periferia, Brasilândia, Grajaú, Sapopemba, Cidade Tiradentes, mostrando o quanto isso está se disseminando na periferia”, afirmou. É na periferia que vivem a maioria das famílias negras.
A Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, por sua vez, nunca apresentou tais informações. Mas a pedido da reportagem, fez um levantamento e apontou que, do total de óbitos no dia 12 de maio (3.949), 43% foram notificados com raça/cor branca, 17% parda, e 5% preta. Mas 34% não foram notificados com essa informação. Entre os infectados (46.131 no total) nessa mesma data, constavam 38% brancos, 14% pardos, 4% pretos. Porém, 43% das fichas não estavam preenchidas com as informações de raça.
Marcia Lima, professora de Sociologia da USP e coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial do Centro Brasileiro de Análise a Planejamento (Cebrap), explica que a ausência desses dados não é um fenômeno que surgiu com a pandemia. “A desigualdade contribuiu de forma crucial para que os dados fossem configurados dessa maneira”, diz. “Não é um efeito da pandemia. A pandemia, na verdade, encontra essa desigualdade e vai exacerbar essa desigualdade". Ela alerta que há outros fatores, além das subnotificações, que dividem os que têm privilégios, dos que não. "Todas essas comorbidades que colocam as pessoas no grupo de risco dependem de um diagnóstico. Ou seja, saber se você é ou não do grupo de risco já é um privilégio”.
Tanto a Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro, quanto a do município, foram procuradas pela reportagem já que a decisão da Justiça menciona diretamente esses locais. O município do Rio informou, por meio da assessoria de imprensa, que “os números de ignorados e em branco são altos porque, infelizmente, este ainda é um dado negligenciado no preenchimento das notificações”. A assessoria também apresentou números com a quantidade de casos cuja raça/cor foram ignorados, mas não explicou baseado em quais notificações eles foram colhidos, já que eles não batiam com o total de casos na cidade. O Estado do Rio não respondeu até o fechamento desta reportagem.
“A cor chega antes”
Na tentativa de orientar e proteger populações mais vulneráveis, entidades e organizações criam iniciativas para informar e esclarecer moradores das franjas das cidades. Na semana passada, a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), por meio do grupo de trabalho da População Negra, publicou a segunda edição de uma cartilha com orientações para a prevenção do coronavírus em favelas e nas periferias. No documento, há um capítulo especial que aborda o tema “homens negros e suas máscaras”, escrito pela psicóloga Jeane Sasyka Campos Tavares, doutora em saúde pública e professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).
A cartilha explica que as máscaras de proteção contra a covid-19 usadas por homens negros entraram na lista de acessórios que podem ser considerados “suspeitos” pela polícia, assim como pode ocorrer com bonés, capuzes, capacetes e até guarda-chuvas, que são adereços que cobram parte do rosto. “Essa questão do homem negro ser o tempo todo colocado em suspeição faz parte do cotidiano da população negra no Brasil”, afirmou a psicóloga ao EL PAÍS. “Independentemente dele ter uma classe social elevada, estudos ou posições, a cor chega antes nas pessoas”.
Por isso, as orientações da cartilha são objetivas. “Se, por qualquer razão, você tiver acesso a máscaras industrializadas descartáveis, prefira essas. Elas são associadas à saúde não à criminalidade”. Outra dica é, portanto, usar as máscaras que são distribuídas localmente, na comunidade. “É importante que se identifique rapidamente que você faz parte deste território”, diz o texto. De maneira geral, o que o uso de máscaras ou as subnotificações por raça e cor dos doentes e mortos pela corvid-19, revela, de acordo com a psicóloga é a falsa sensação de que não há racismo no Brasil. “O grande problema que enfrentamos aqui é a falácia da democracia racial”, diz. “Historicamente, a gente desconsidera, o tempo todo, o racismo”.
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