Policiais militares amotinados aceitam proposta do Governo e encerram greve no Ceará
Após sete horas de negociação, policiais abrem mão de pedido de anistia, ponto central do motim
Depois de 13 dias amotinados, policiais militares do Ceará decidiram ceder mesmo sem conseguir a anistia, instrumento que os livraria de responder por transgressões realizadas ao longo da greve ilegal. A base estava insatisfeita pela não inclusão desse ponto na proposta fechada pela comissão especial e, por isso, a negociação neste domingo demorou mais de sete horas. Mas o grupo sentiu a pressão pela dificuldade de conseguir apoio popular e pela sinalização do governador Camilo Santana (PT), que tentou aprovar às pressas uma Proposta de Emenda à Constituição para proibir a anistia. A votação na Assembleia acabou adiada para terça-feira depois que o deputado André Fernandes, que apoia a greve, pediu vistas. O governador já tinha dito que esse ponto ―que virou o mais sensível da crise de segurança desde o episódio que deixou o senador Cid Gomes baleado― era inegociável. Ainda assim, durante o dia, policiais e familiares que seguiam ocupando o batalhão de Fortaleza diziam que só deixariam o local com a anistia garantida.
O clima entre os policiais era de tensão. Estavam divididos porque parte deles temia sofrer represálias pela participação na greve ilegal. Alguns também reclamavam de companheiros que acompanhavam as negociações de casa e não do batalhão, o que teria tirado forças do movimento. “Se estivessem aqui, a gente teria como ficar muito mais tempo”, afirmou um dos grevistas. A adesão vinha diminuindo desde que o governador Camilo Santana começou a instaurar procedimentos para punir os amotinados. Mais de 200 policiais foram afastados de suas funções. E outros 43 foram presos por não se apresentarem ao trabalho na operação de Carnaval. Eles continuaram detidos por decisão judicial da última sexta-feira, que converteu em preventiva a prisão em flagrante.
Na noite deste domingo, lideranças representantes dos grevistas pediam que dessem um “voto de confiança”, pois autoridades haviam prometido rever os processos administrativos caso a caso, e as punições deveriam ser mais brandas. O acordo fechado prevê o direito dos policiais a responderem a um processo legal sem perseguição. A ampla defesa e o direito ao contraditório seriam garantidos pelo acompanhamento de instituições sem ligações com o Estado, como a Defensoria Pública, o Exército e a OAB.
O impasse sobre o descontentamento da categoria com seus salários e suas escalas de trabalho começou no final do ano passado. O governador chegou a prometer acatar algumas das reivindicações e algumas associações ligadas aos policiais aceitaram um acordo, mas parte da base o rejeitou e se rebelou. O acordo deste domingo não aporta mais recursos estaduais ao pagamento dos agentes, mas considera que possa haver remanejamentos nos 495 milhões de reais já previstos no orçamento. Desde o início da paralisação, um clima de insegurança se apoderou do Estado. Mais de 200 homicídios foram contabilizados e soldados do Exército Brasileiro foram convocados para auxiliar a segurança no Estado.
A greve de PMs no Ceará ganhou os holofotes de todo o país pelo receio de que a crise local provocasse um efeito dominó violento no restante do país, em um contexto no qual outros estados já receberam demandas desses trabalhadores, que têm porte de armas de fogo e são proibidos por lei de fazer greve. A crise de segurança cearense também expôs um xadrez de políticos locais e nacionais. As declarações do presidente Jair Bolsonaro de que a presença do Exército não seria permanente no Estado e que caberia ao governador Camilo Santana resolver o problema foram vistas por aquartelados ouvidos pelo EL PAÍS como uma mensagem de apoio ao movimento. Nos bastidores, representantes do Supremo Tribunal Federal e do Congresso atuaram para garantir as forças nacionais. Antes, governadores de outros estados já haviam disponibilizado enviar policiais caso o presidente não renovasse a Garantia de Lei e Ordem, dispositivo que permite o auxílio do Exército na segurança pública. O ministro Sergio Moro comemorou o fim da greve pelo Twitter. “Prevaleceu o bom senso, sem radicalismos”, afirmou.
O último dia da greve no quartel
A decisão de acabar com o motim saiu oficialmente de um batalhão de Fortaleza, que se tornou o QG da greve no Ceará desde que o movimento atingiu o ápice da tensão em Sobral, quando pessoas encapuzadas em viaturas mandaram comerciantes fecharem as portas no último dia 19 de fevereiro. Outras cidades cearenses ―como Sobral e Caucaia― ainda mantinham unidades militares ocupadas até este domingo, mas o quartel da capital passou a ter papel central inclusive na tentativa de retomar o apoio da opinião pública. Era dali que saíam as principais deliberações sobre os novos passos a serem seguidos, com as assembleias da categoria transmitidas em lives nas redes sociais e uma comunicação intensa dos grevistas com agentes do interior e até de outros Estados por grupos de WhatsApp. Políticos locais que alcançaram cargos públicos a partir da participação em greves anteriores contabilizavam likes e tentavam surfar no movimento com vistas nas eleições deste ano. O aplicativo de mensagens também era usado o tempo todo na logística da ocupação da unidade militar, com diversos grupos criados para organizar tarefas da cozinha, limpeza e até cuidados com as crianças que acompanhavam os pais no local.
Enquanto a comissão especial discutia uma nova proposta para acabar a greve, o comentário no batalhão era de que os policiais só deixariam o local com a anistia. De olho no celular, aquartelados conversavam que a paralisação acabaria estendida e que não iriam embora com medo de serem presos ou transferidos. “Não tem como ficar pior pra gente aqui. Só saímos com a anistia”, dizia um dos grevistas, ao lado de outros três policiais e duas esposas, em uma sala da escola pública ocupada por eles na última sexta-feira. “Se o governador não ceder, pode ter intervenção federal como no Rio de Janeiro, aí a questão vai sair das mãos dele”, apostava outro. Um terceiro ponderava: “Não tem como saber o que vai acontecer”. O acordo fechado na noite deste domingo indica que não haverá transferência de PMs nos seis meses após a assinatura formal dos termos, que deve acontecer nesta segunda pela manhã.
A escola fica no terreno vizinho ao batalhão, e, durante as quatro horas em que o EL PAÍS esteve nos dois espaços, o clima era de tranquilidade. Não havia preocupação de que o Exército interviesse para a reintegração de posse no local, como havia pedido o governador Camilo Santana antes. Logo se soube que as Forças Armadas haviam respondido que não cabia a elas essa demanda. Os manifestantes ocupavam cinco salas de aula, a cozinha e os banheiros da escola, cujas aulas haviam sido suspensas dias antes pela diretoria em razão da proximidade ao quartel tomado. Argumentavam que estavam ali com a permissão dos funcionários, ainda que sem autorização formal. E diziam querer acabar a greve, mas sustentavam que desde o início do movimento contavam com o perdão das transgressões, como aconteceu em outras paralisações semelhantes. “Tentaram colocar a gente como bandido. Mas tinha um motivo pra gente usar as balaclavas. Era só para não sermos identificados porque poderíamos ser punidos pelo código militar”, explicou um policial.
“A anistia vai ter que vir. Ninguém sai daqui sem ela”, disse um agente que descansava em uma das salas de aula. Ali, as mesas e cadeiras dos alunos foram substituídas por colchões infláveis, fruto de doações de empresários e de associações policiais de outros estados, conforme contaram grevistas e familiares. Durante o início da tarde, um grupo de aproximadamente 20 pessoas chegou a se reunir em uma das salas para discutir o andamento das negociações. O EL PAÍS não pôde acompanhar esse momento.
No prédio vizinho, o auditório do batalhão teve seu espaço dividido para o depósito de mantimentos e também para uma espécie de brinquedoteca para as crianças, com tapetes de borracha e jogos de tabuleiro. Era este o espaço maior de convivência das mulheres que ocupavam o batalhão e que tentavam puxar para si a responsabilidade do motim. Em outras greves, a autoria de práticas como a ocupação de quartéis foi atribuída a elas como estratégia para que os maridos não respondessem por estes atos. No entanto, o Governo do Ceará afirmou que elas também poderão responder pelos crimes. Por isso, todas as pessoas ouvidas pediram para não serem identificadas. No auditório climatizado, elas conversavam enquanto observavam os filhos brincarem e faziam até manicure. “A gente cria nossos filhos sozinha. Eles já trabalham quase todos os feriados. E a proposta do Governo só piora as folgas. Foi aí que decidimos vir. Nós que começamos isso daqui”, disse uma das esposas.
Neste último dia de motim, todo o batalhão estava ocupado. Havia um grande fluxo de pessoas que entravam e saíam a todo momento das duas edificações ocupadas. Fazia calor, e a maioria das pessoas preferia permanecer nas salas transformadas em alojamento, que tinham ar-condicionado. Tanto familiares quanto os próprios policiais reclamavam o tempo todo por serem tratados como “amotinados”. “Foi uma palavra que o governador inventou pra criminalizar a gente”, justificou um deles. Motim é um crime previsto no Código Penal Militar por recusa de obediência conjunta e ocupação de quartel. Tem pena prevista de reclusão de quatro a oito anos.