Uma conversa com os policiais militares do Ceará
PMs do Estado defendem pauta de reivindicação do grupo radicalizado que segue amotinado, mas criticam politização do movimento. Também se dividem sobre anistia
O que pensam os policiais militares do Ceará sobre a crise instalada na segurança pública? Embora haja divisões internas, sejam elas ideológicas (direita x esquerda) ou de hierarquia (praças x oficiais), alguns pontos em comum surgem quando conversamos diretamente com profissionais que não aderiram à paralisação. Levar a opinião deles em consideração pode ser um caminho rumo a uma solução menos violenta do impasse que tragou o Estado para uma situação de indefinição permanente. Como pesquisador das forças de segurança do Ceará desde 2012, decidi conversar nos últimos dias com sete PMs, cinco oficiais e dois praças, sobre os acontecimentos mais recentes. A identidade dos interlocutores foi preservada por medo de possíveis retaliações.
Para se ter uma visão melhor do que está ocorrendo é preciso recuar à situação vivida pelo Estado em relação aos índices de violência. Por muitos anos, o Ceará viu os números de homicídios aumentarem sem que houvesse alguma medida que pudesse fazer com que eles arrefecessem. Desde o segundo semestre de 2018, contudo, os indicadores passaram a cair mês a mês. Muito desse resultado positivo se deve à atuação da Polícia Militar, certamente. O que deveria ter sido motivo de júbilo da tropa tornou-se, de certa forma, um fator importante na equação que levou os policiais a se amotinarem.
Silas (nome fictício) comenta que houve um crescimento muito grande do “ego” da corporação após a queda dos homicídios e a resposta dada aos dois ataques coordenados das facções ocorridos em 2019. “A tropa respondeu ao chamado do comando. O secretário também passava nas bases fixas prometendo que vinha coisa muito boa por aí. Os policiais começaram a sonhar também com isso, passando a achar que mereciam muito mais do que o Governo estava prometendo", explica.
Wendell (nome fictício) lamenta, contudo, a falta de reconhecimento do ponto de vista da remuneração: “O que a gente sente é uma desvalorização do profissional, uma falta de respeito com todos nós, haja vista que estamos empolgados com a redução de homicídios. Aí vem uma dessa... Sem falar que 90% da reestruturação salarial foi apenas uma redistribuição dos recursos e não um aumento de gastos.” De acordo com Gilberto (nome fictício), os resultados foram obtidos a um custo muito alto para os policiais, em especial por meio da sobrecarga de trabalho no período. “O Estado quer diminuir os homicídios e atingir seus resultados sem se importar como isso será feito.”
Demandas justas
Um ponto em comum aos entrevistados, independentemente da posição que ocupam na hierarquia, é o reconhecimento de que as demandas dos amotinados são justas. Silas contesta a versão de que o Governo do Estado teria atendido todas as reivindicações da pauta —o Governo do Estado havia oferecido 4.500 reais como salário base, o que foi rejeitado pelo grupo grevista. Uma nova proposta foi feita nesta quinta, na reabertura das negociações, mas os detalhes ainda não são conhecidos. “Há uma divulgação na mídia de que o Governo deu mundos e fundos e a tropa é que seria ingrata. É preciso reconhecer que eles (PMs do movimento grevista) têm razão em algumas coisas que estão sendo exigidas. Você tem todo um retrospecto de diversos anos sem reajuste pela inflação. Além disso, o valor da média salarial do Nordeste não foi concedido conforme o prometido em 2014 (ano em que Camilo Santana foi eleito)”.
Apesar de não participar e nem apoiar o movimento grevista, Paulo (nome fictício) afirma que os valores de reestruturação salariais apresentados pelo Governo aos policiais estão defasados. Ainda assim, a tabela salarial foi aprovada por lideranças políticas ligadas à corporação. “Essas lideranças não souberam conduzir a negociação de maneira que ela fosse favorável a nós. Foram muito atrapalhados. A gota d’água foi eles terem fechado uma tabela salarial com o Governo do Estado sem antes submeter à categoria para saber se nós concordávamos ou não. Esse foi o rastilho de pólvora que deu início a tudo isso”, relembra.
Wendell dá mais detalhes sobre o fechamento do acordo à revelia da corporação: “Quem foi negociar não queria greve e sabia que se levasse para a tropa decidir a proposta não seria aceita. Então o que aconteceu é que os líderes fecharam o acordo mesmo sabendo que era ruim. Quando fizeram o vídeo mostrando o resultado da reunião e o acordo que tinham aceitado... foi uma verdadeira bomba. Foi unânime a negação, foram muitas críticas, a maioria esmagadora não aceitou, aí começou o problema...”
Críticas à politização
A crítica à politização do que era inicialmente uma demanda salarial também encontra eco nos depoimentos dos PMs. Há uma certa irritação em torno dos caminhos que a negociação tomou. “Gostaria que se desse mais ênfase à questão da valorização da carreira policial e menos atenção à política, pois nós não estamos brigando por política, a nossa causa é justa”, comenta Wendell, indignado.
"Achei o movimento inadequado. Não deveria ter acontecido. É bem diferente do ocorrido em 2011. É basicamente um movimento de soldados e cabos liderados pelo Cabo Sabino. Acompanhei as duas últimas reuniões e a visão que pude ter é que a tropa estava em busca de um líder após o fracasso da negociação", critica Silas.
Ex-deputado federal, Cabo Sabino, liderança apontada como o pivô da eclosão do movimento, é visto com reservas pelos policiais: “Em 2018, ele tentou se reeleger para deputado estadual, mas não conseguiu, caindo no ostracismo político. Após a negociação ter sido um fracasso, o Cabo Sabino viu nesse momento a oportunidade de se tornar uma fênix, ressurgindo das cinzas”, afirma Paulo, de forma didática. “A categoria estava indignada, insatisfeita, e ele viu uma chance de preencher essa lacuna por lideranças indo, juntamente com as mulheres dos policiais, ao 18º Batalhão para dar início a tudo que está ocorrendo até agora. O que era um movimento político reivindicatório se tornou também um movimento político-ideológico”, acrescenta.
Jáder (nome fictício) se vale de uma expressão para explicar a situação atual: “Acima da polícia existe a política. Ser policial não está sendo uma carreira de Estado, mas sim uma carreira de Governo. Esse é um grande problema.”
Desafios em manter a tropa atuante
O cotidiano atravessado pela paralisação representa um imenso desafio aos oficiais. “Quem não adere ao movimento acaba sendo coagido em grupos de WhatsApp ou em conversas presenciais. Temos de conversar com os policiais para que não sejam cooptados”, revela Silas.
Matias (nome fictício) também busca motivar os subordinados a permanecerem em serviço: "Friso que não cabe à instituição militar fazer greve, que é proibido pela Constituição os militares realizarem greve, e que a proposta apresentada pelo governador foi aceita pelas associações e pelos representantes políticos".
Para Bergson (nome fictício), a reação do Governo está sendo a mais adequada. “Acredito que as ações se deram dentro da margem de segurança e legalidade possíveis, pois diante de homens amotinados com mulheres e crianças não havia possibilidade de nenhuma ação mais energética sem riscos para todos. A realidade salarial da PM hoje é muito diferente da vivida em 2011 quando ocorreu aquela greve. Hoje temos um governador que fez grandes investimentos na PM. Vejo esta paralisação como um ato de deslealdade para com o Governo, o comando e principalmente para com a sociedade”.
Enquanto o impasse persiste, o clima no interior dos quartéis é de apreensão, segundo Wendell. “Dentro da unidade militar o clima é muito ruim. Todos estão muito preocupados com os colegas que estão lá [no quartel ocupado]. A nossa segurança também está comprometida. Nossos familiares estão aflitos. Vejo muitos colegas chorando. Nunca tinha visto uma situação dessa. Esperamos que tudo seja resolvido o mais rápido e que nenhum irmão nosso seja punido”, desabafa. Enquanto a negociação segue, o presidente Jair Bolsonaro ainda não decidiu se vai autorizar ou não a permanência de agentes das Forças Armadas no Estado. Disse
A possibilidade de anistia, uma reivindicação dos amotinados para encerrar o movimento, causa divisões entre os entrevistados. Há quem defenda o perdão por parte do governador, mas há quem acredite que os responsáveis devam pagar pelo ocorrido. “Conceder anistia é vulnerabilizar a disciplina e chancelar futuros eventos como este que põem em risco toda a sociedade”, afirma Bergson.
Ricardo Moura é jornalista e sociólogo. Pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência, da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC) Twitter: @ricardoxmoura
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