Uma semana de terror e medo em uma Fortaleza refém das facções
Mesmo com a chegada de homens da Força Nacional, onda de atentados muda rotina no Ceará. Transporte escasso, falta de coleta de lixo e ataques a viadutos mantêm a população em pânico
A série de ônibus incendiados deixou o sistema de transporte público de Fortaleza em colapso e quintuplicou o preço de uma corrida de Uber. As ruas foram tomadas pelo lixo, que deixou de ser recolhido após caminhões do sistema público sofrerem ataques. E comércios estão impedidos de abrir as portas, sob pena de retaliação. Há uma semana, atentados orquestrados por facções criminosas que pretendem evitar a transferência de seus líderes para presídios federais levaram o pânico para a capital e outras 46 cidades cearenses. São ataques cada vez mais ousados —os criminosos já explodiram, até agora, dois viadutos e uma ponte. E não cessaram nem com a chegada de 400 homens da Força Nacional de Segurança, uma tropa especial federal, o que expõe o desafio que a escalada das facções pelo Brasil impõe à política de segurança do país.
Imerso em graves ondas de violência desde o início do ano passado, com uma guerra entre facções rivais, o Ceará vive uma situação sem precedentes no momento. Mensagens trocadas entre detentos apontam que, desta vez, elas entraram em acordo. E contra um alvo específico: o Estado. E a ineficiência na resposta contra o crime organizado deixou, desta vez, toda uma população como refém. Já foram 187 ataques até o momento. A última série deles ocorreu nesta madrugada, quando um ônibus e cinco carros foram incendiados e uma bomba explodiu a base da estrutura de um viaduto por onde passa o Metrô em Fortaleza. Até agora, 277 pessoas foram detidas, segundo balanço divulgado pelo Governo nesta quinta.
Mais do que pânico, o terror imposto pelas facções transformou a vida dos cearenses em caos. Moradores estão impedidos de sair de casa, enquanto comerciantes fecham as portas em plena luz do dia, durante um período de alta estação turística fundamental para enfrentar a crise econômica. "Lá no meu bairro, eles chegaram nas lojas e disseram que era pra fechar. Quem tentou abrir viu que eles passavam direto na rua, olhando se estava aberto. Eles dizem que é pra todo mundo ficar dentro de casa, senão tocam fogo em tudo", relata uma moradora de Caucaia, a segunda maior cidade do Ceará, onde um viaduto foi atacado com explosivos no terceiro dia do ano.
Na capital, o transporte público funciona precariamente. O sistema de trens, ônibus e vans no qual se locomove 40% da população é o mais afetado pelos incêndios criminosos. Algumas rotas deixaram de ser feitas ou acontecem apenas pela metade por conta das ameaças que motoristas e passageiros recebem de bandidos no meio da rua —já são inúmeros os relatos de pessoas que tiveram de deixar os veículos em que viajavam por ordem de algum criminoso. Com isso, todos os sete terminais de integração estão superlotados e a espera por linhas que habitualmente rodam a cada dez minutos ultrapassa duas horas. Quando deixam as plataformas, os veículos só saem em comboio e com policiais a bordo. Na Região Metropolitana, há casos de itinerários cuja oferta foi retirada de circulação cinco horas antes do normal. E, aproveitando-se da alta demanda, os aplicativos particulares chegam a praticar preços quase cinco vezes acima do normal.
"A gente fica refém dessa espera. Não tem o que se fazer porque quem é que vai pagar 100 reais numa corrida de Uber? O jeito é esperar e ainda pegar um ônibus entupido de gente. Naturalmente já é ruim, mas agora está horrível", resume a cuidadora de idosos Érica Dantas.
Feita por uma empresa privada, a coleta de lixo de Fortaleza também está prejudicada. Após um caminhão ser incendiado por supostos integrantes de facções, o serviço foi suspenso. Algumas localidades passaram cinco dias sem nenhum tipo de recolhimento de resíduos e a Prefeitura estima que o serviço só será normalizado em dez dias. Enquanto isso, ruas e avenidas acumulam montanhas de lixo e entulho. Para tentar amenizar a situação, uma operação extra de coleta será executada. Mas só ocorrerá com escolta policial.
O Sindicado dos Médicos do Ceará (Simec) também recomendou aos profissionais dos postos que não compareçam às unidades enquanto a onda de atentados prosseguir. A administração municipal de Fortaleza, no entanto, garante que quem não der expediente terá o ponto cortado e a falta será descontada no salário. Em Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza, o Hospital Municipal Abelardo Gadelha da Rocha, maior equipamento de saúde da cidade (cuja população é 90% usuária do SUS), recebeu ordem de integrantes de facções para fechar as portas. O mensageiro da ameaça, um adolescente de 13 anos, foi apreendido e o prédio manteve os atendimentos, mas quase 80% menores do que em dias comuns. "De 100 consultas marcadas, 20 pessoas estão comparecendo. Está todo mundo apavorado", revela uma servidora.
O município de Caucaia é, junto a Fortaleza, um dos mais afetados. Registrou incêndios em uma creche e em um carro da Prefeitura, luminárias e equipamentos de trânsito foram depredados em várias regiões da cidade, deixando trechos sem iluminação pública e com o trânsito caótico. E um prédio dos Correios foi atacado —a empresa anunciou que encomendas não serão mais entregues enquanto a situação não for normalizada; destinatários precisam retirá-las nas próprias agências.
Em todo o Estado, funcionários estão sendo dispensados mais cedo ou diante de qualquer vestígio de ataque. Há o temor de prédios oficiais e patrimônios particulares serem atacados por bandidos, a exemplo do ocorrido com um instrutor de autoescola, que teve o carro incendiado enquanto dava aula. Ele não conseguiu sair do veículo em chamas e está internado em estado grave.
Difícil normalização
Até o momento, não há qualquer indício de que a situação chegará ao fim em breve. O governador Camilo Santana (PT) garante que não vai recuar de suas mudanças nos presídios. Vinte e um líderes de facções já foram retirados do Ceará fruto de um acordo entre Estado e Justiça. Hoje com quase 30.000 detentos, mais da metade em regime provisório, a população carcerária cearense é uma pedra no sapato estatal. Praticamente dobrou em seis anos, junto ao aumento geométrico dos índices de criminalidade. É dos presídios a origem de boa parte das ordens de assassinatos que fizeram de Fortaleza em 2018 a segunda cidade mais violenta do Brasil e a sétima mais perigosa do mundo. Há anos, eles são divididos por grupos criminosos que cooptam novatos e comandam a violência nas ruas. Agora, pela primeira vez, o Estado —na figura do recém-empossado secretário de Administração Penitenciária, Luís Mauro Albuquerque —bate de frente com o crime organizado e diz com todas as letras não reconhecer as facções.
Segundo Santana, "a repressão aos criminosos vai continuar", mas a situação não foi amenizada nem com a chegada de cem policiais militares enviados como reforço pelo Governo da Bahia, com a convocação às pressas de agentes de segurança aprovados em concurso ou com a chegada das tropas federais. "Já determinei à cúpula da segurança que empregue todos os esforços necessários. Lideranças criminosas estão sendo identificadas e as transferências para presídios federais estão em curso. Não haverá tolerância com o crime", assegurou o petista em nota publicada no Facebook, meio que tem utilizado com mais frequência para se comunicar com a população durante a crise.
Governador reeleito em primeiro turno em outubro, com o maior percentual de votos do Brasil, ele enfrenta um desafio político neste começo de segundo mandato para superar a crise na segurança: precisa estabelecer um diálogo com a gestão ultradireitista de Jair Bolsonaro (PSL) e do ministro Sérgio Moro (Justiça e Segurança Pública).
Ambos são desafetos declarados do Partido dos Trabalhadores, legenda a qual Camilo pertence e a quem dirige duras críticas por, segundo o Governador, não ter discutido o problema da segurança pública de forma adequada nem nas eleições presidenciais nem durante as gestões dos ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff. "O Brasil foi dominado por facções criminosas por omissão dos governos. Até o governo que foi presidido pelo meu partido foi omisso", admitiu nesta quarta-feira, em entrevista à BandNews. Apesar de o Governo afirmar que investiu 1,8 bilhão só em segurança pública entre 2015 e 2018, o Estado sofre há anos com a escalada da criminalidade e com a execução de estratégias criticadas por especialistas.
Ainda não se sabe até quando os homens da Força Nacional permanecerão no Ceará ou se o Governo do Estado solicitará ainda mais reforço ao contingente policial que já está nas ruas. Mas a situação do Ceará escancara agora o desafio que se impõe ao desenho, ainda pouco claro, da Segurança Pública na gestão Bolsonaro. Há, agora, o temor de que a onda de ameaças das facções se espalhe por outros Estados brasileiros, cada vez mais reféns dos grupos criminosos.
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