Divulgação falha e parcial de dados entra em choque com discurso de transparência no Governo Bolsonaro
Executivo não explica como está composta a fila de espera do Bolsa Família nem como recalculou as provas do Enem. Estatísticas de gasto público deixam de ser atualizadas e qualidade de informação cai
No mês em que completou um ano de mandato, o presidente Jair Bolsonaro recebeu reprimenda da Transparência Internacional por, segundo estudos da ONG, intervir nos mecanismos de fiscalização do país. O relatório divulgado em 23 de janeiro revelou que a percepção sobre corrupção no Brasil aumentou ao redor do mundo. Entre um dos fatores apontados pelo levantamento está a ingerência governamental nos órgãos de controle, como substituições em chefias da Polícia Federal e da Receita e a nomeação de um Procurador-Geral da República (Augusto Aras) fora da lista tríplice. Além das instituições anticorrupção, o diagnóstico indica que o Governo Bolsonaro segue a esteira de enfraquecimento dos instrumentos federais em prol da transparência, com acúmulo de episódios recentes de falhas ou divulgação parcial de dados.
Nesta sexta-feira, o EL PAÍS publicou uma reportagem em que mostra que o Governo não explica o tamanho real da fila de espera do programa Bolsa Família. O Ministério da Cidadania fala apenas em “uma média nacional” de 494.229 famílias à espera do programa em 2019, mas não disponibiliza os números absolutos mês a mês de entrada e saída de famílias e nem o número de habilitados a receber o benefício, mas que ainda estão sem a bolsa. Cálculos realizados pelo EL PAÍS, com base em dados públicos, estimam que 1,7 milhão de famílias, ou cerca de 5 milhões de pessoas, estariam atualmente aptas a ingressar no programa, ou seja, preenchem todos os critérios para receber o auxílio antimiséria —um valor três vezes maior do que o número divulgado pela pasta.
Desgastado pela repercussão negativa dos problemas no Enem, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), responsável pela aplicação do exame, se recusou a recalcular o peso de questões após corrigir o gabarito de 6.000 provas que tiveram erro na gráfica, informou o jornal Folha de S.Paulo. O órgão argumentou que, por se tratar de uma amostra pequena de candidatos afetados, o cálculo não seria alterado por uma nova revisão, mas para fontes ouvidas pelo jornal, isso poderia afetar a entrada de candidatos na universidade. O contratempo motivou o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) a apresentar requerimentos para convocar o ministro da Educação, Abraham Weintraub, a prestar esclarecimentos a respeito dos critérios de atribuição das notas.
Segundo o pesquisador Manoel Pires, economista do IBRE/FGV e organizador do Observatório de Política Fiscal, a qualidade e a frequência de informações estatísticas prestadas pelo Governo Federal tem apresentado queda nos últimos três anos. Ele salienta que o ponto de inflexão surge a partir da gestão de Michel Temer, reflexo da crise financeira que passou a afetar a prestação de serviços nos órgãos federais. Porém, a falta de transparência teria se acentuado no Governo Bolsonaro pela combinação de outros dois fatores ao cenário econômico. O primeiro tem a ver com as mudanças de pessoal promovidas pela administração, sobretudo pelo recrutamento de gestores oriundos do setor privado, pouco afeitos às práticas de governança pública. E o segundo, pelo apelo ideológico do Governo, com postura resistente à prestação de contas e a demandas da imprensa.
“Ainda é cedo para avaliar se a redução da transparência pelo Governo Federal será ou não uma tendência, mas, nos últimos anos, uma série de ocorrências nesse sentido tem se tornado cada vez mais comum, em vários órgãos”, afirma Pires. Como exemplo, ele cita os dados sobre gastos públicos, que não são atualizados desde março de 2018 pela Secretaria do Orçamento Federal, e os de carga tributária, que eram anualmente divulgados pela Receita Federal, mas pararam de ser publicados em 2017, tal qual o anuário estatístico da Previdência Social. Para o pesquisador, as informações são fundamentais em discussões em torno de reformas como a tributária e a administrativa, que estão na pauta do Congresso para este ano. “No aspecto doméstico, a falta de transparência dificulta a avaliação das propostas e políticas no debate público. Já do ponto de vista internacional, pode prejudicar alguns pleitos do país, como a intenção de ingressar na OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico).”
Dados sobre o funcionalismo público ainda não foram destrinchados pelo Governo Federal. Neste mês, o presidente Bolsonaro destacou em seu perfil no Twitter a divulgação em dados abertos dos pagamentos aos servidores aposentados e pensionistas, como parte de um suposto compromisso para “fortalecer a transparência em defesa do interesse público e combate à corrupção”. No entanto, a publicação das informações só aconteceu por determinação do Tribunal de Contas da União (TCU), que julgou procedente uma ação de 2017 protocolada pela agência de dados Fiquem Sabendo. De acordo com a entidade independente, “o atual Governo agiu contra a transparência ao tentar barrar a divulgação dos dados, apresentando recursos que atrasaram a decisão final do TCU”.
Na mesma semana, Bolsonaro reafirmou a pretensão de tornar seu Governo mais transparente, garantindo ter recomendado providências a todos os ministros e que deu mostras nesse sentido ao lançar painéis eletrônicos com informações relacionadas ao pagamento de benefícios do Bolsa Família e do INSS. “Nosso Governo tem o compromisso de apurar e sanar quaisquer irregularidades detectadas ou denunciadas e, acima de tudo, dar transparência às despesas públicas com o intuito de engajar nossa sociedade na fiscalização contínua dos recursos públicos”, disse o presidente.
Comparado a 2018, houve crescimento de 4,5% nas solicitações de dados federais, que podem ser feitas por qualquer cidadão, no primeiro ano de gestão bolsonarista, mas abaixo da média progressiva anual (5,1%) registrada desde a efetivação da Lei de Acesso à Informação (LAI), em 2012. Entretanto, segundo levantamento da Controladoria-Geral da União (CGU), o sistema ainda não é garantia de acesso irrestrito à prestação de contas dos órgãos públicos. Cerca de 8% dos pedidos são negados pelas instituições —a maioria por alegação de dados sigilosos—, enquanto 79% retornam aos solicitantes com atraso e 36% com informações incompletas.